https://jkrishnamurti.org/content/new-york-city-2nd-public-talk-4th-june-1936

Segunda Palestra em Nova York

No meio de grande confusão e pressão ficamos presos na luta por sucesso e segurança, e perdemos o profundo sentimento pela vida, a verdadeira sensibilidade que é a essência da compreensão. Admitimos, intelectualmente, que existe exploração, crueldade, mas de algum modo não existe aquela compreensão que leva à ação drástica e à mudança. A ação verdadeira e vital só pode brotar de uma visão compreensiva e inteligente da vida.

Existe toda forma concebível de exploração nas atividades sociais, religiosas e criativas do homem. Vemos o homem vivendo do homem, fazendo outros trabalharem para seu próprio lucro e vantagem pessoal, comprando e vendendo para seu próprio benefício e, cruelmente, procurando e estabelecendo sua própria segurança pessoal. Há distinções de classes com seus antagonismos e ódios, há distinções no trabalho: uma espécie é considerada superior e outra inferior, um tipo é desprezado e outro é glorificado. É um sistema de competição e eliminação cruel daqueles que são, talvez, menos espertos, menos agressivos, e que não tiveram as oportunidades favoráveis de vida.

Nós temos orgulho racial e preconceitos nacionais que, muitas vezes, nos levam à guerra, com todos os seus horrores e crueldades. E mesmo os animais não escapam das crueldades do homem.

E temos a exploração das religiões, com suas crueldades, a competição entre crenças, com suas igrejas, deuses e templos. Cada sistema de crença e fé mantém seu próprio direito divino, sua própria certeza para levar o homem ao mais elevado, e o indivíduo perde aquela verdadeira experiência religiosa que não está sobrecarregada com crenças e dogmas da religião organizada. Existe superstição sistematizada em nome da realidade, a instilação e manutenção do medo com suas afirmações e doutrinas. Assim, há confusão de crenças, ideias e doutrinas.

E, no campo do trabalho criativo, há uma imensa lacuna entre a expressão criativa e a arte de viver. Nesse trabalho criativo existe ambição pessoal, presunção e competição produzindo uma reação superficial que é, muitas vezes, confundida com expressão criativa e realização.

Nesta civilização somos forçados, queiramos ou não, por um sistema que cada indivíduo ajudou a criar, a viver sem profunda realização, e poucos escapam de suas crueldades. Em toda avenida da vida existe confusão, miséria, e todos como entidades sociais ou religiosas estão presos neste mecanismo de exploração e crueldade. Alguns estão conscientes deste processo, com seu sofrimento, e embora reconheçam sua feiura, eles continuam nos velhos hábitos de pensamento e ação, dizendo a si mesmos que devem, por necessidade, viver neste mundo. Existem outros que estão completamente inconscientes deste sistema de miséria.

Quando você começa a examinar as várias ideias propostas para solucionar a miséria do homem, perceberá que elas se dividem em dois grupos: uma que sustenta que deve haver uma completa reorganização social do homem, de modo que a exploração, a aquisição e as guerras possam cessar; o outra que afirma e dá ênfase às atividades da vontade do homem.

Dar ênfase a uma delas é errado. A reorganização social é necessária obviamente. Mas se examinar criticamente esta ideia de organizar o homem e sua expressão, perceberá – se não for levado pelas certezas superficiais de resultados imediatos de segurança e conforto – que nisso há muitos perigos graves. A mera criação de um novo sistema pode, mais uma vez, se tornar uma prisão onde o homem será mantido, apenas por diferentes dogmas, ideias e credos.

Há aqueles que sustentam que devemos dar o pão primeiro, e outras coisas vitais para o homem se seguirão corretamente. Ou seja, sustentam que deve haver controle do ambiente e, com isto, o homem chegará a sua verdadeira realização. Esta ênfase exclusiva no pão frustra seu próprio propósito, pois o homem não vive apenas do pão.

Assim então, o que devemos enfatizar, o interior ou o exterior? Começaremos primeiro com o exterior, controlando, dirigindo e dominando; ou devemos dar ênfase ao processo interno do homem? Enfatizar um ou outro destrói seu próprio fim. Dividir o homem em exterior e interior é impedir a verdadeira compreensão do homem. Para compreender o problema da distinção de classe, guerras, exploração, crueldades, ódios, ambição, devemos discernir o homem como um todo, e desse ponto de vista considerar suas atividades, desejos e realização.

Ver o homem como mero resultado do ambiente ou da hereditariedade, dar ênfase só ao pão e descartar o processo interior, ou se preocupar inteiramente com o interior e descartar o exterior, é totalmente errado, e isto deve levar à confusão e miséria. Temos que compreender o homem como um todo integral, não uma entidade com funções separativas – como aquelas de um trabalhador, um cidadão ou um ser espiritual – mas como um ser completo, interdependente e interativo. Devemos ter o insight para saber que a ignorância de nosso próprio ser é a condição prévia de todo sofrimento e conflito. Enquanto não compreendemos a nós mesmos – o oculto e o consciente – então o que quer que façamos, em qualquer tipo de atividade, devemos, inevitavelmente, criar sofrimento.

Esta compreensão de si mesmo, isto é, do processo de construção do “Eu”, com sua ignorância, tendências e ânsias, deve se tornar presente e não permanecer teórico. Ela só pode se tornar presente, real para você, se você discernir e compreender pela experimentação que o processo da ignorância pode ser levado a um fim. Com a cessação da ignorância – ignorância sendo sempre a falta de compreensão de si mesmo e do processo do “Eu” – surge a realidade e a alegria da iluminação.

Existem dois tipos de experiência: a do desejo e a da realidade. Mas para experimentar o real, o atual, as experiências do desejo devem cessar. A experiência do desejo é a simples continuação da autoconsciência separativa, e isto impede a compreensão da realidade. Embora possa pensar que está experimentando o real, está experimentando, realmente, seus próprios desejos, e estes desejos se tornam tão reais, tão concretos, tão definidos, que você os toma como realidade. A experiência do desejo continua a criar divisão e conflito.

Quais são os resultados das experiências do desejo? Elas são as capas ou as máscaras que desenvolvemos por meio de nossas próprias atividades volitivas, baseadas no medo e na busca por segurança – a segurança do aqui com sua ganância, ou da próxima vida com suas esperanças e anseios; a segurança de opinião, crenças e ideais. Estas máscaras e capas, o produto da atividade volitiva de ânsia, dão continuação ao processo sem começo do “Eu”, essa consciência que chamamos de individualidade. Enquanto estas máscaras existirem não pode haver a compreensão do real, do atual.

Você perguntará: “Como posso viver sem nenhuma ânsia ou desejo?” Você faz esta pergunta porque, para você, esta concepção é apenas teórica, pois não experimentou, não provou a si mesmo sua validade, sua realidade. Se experimentar, perceberá que pode viver sem ânsia – integralmente, completamente, realmente – e, assim, compreender a realidade, a beleza e a plenitude da vida. Se você pode viver, trabalhar e criar sem ansiar, desejar, isto não pode ser descoberto por outra pessoa, mas apenas por você mesmo.

Enquanto o processo de reformar o “Eu” continua através das experiências da vontade, deve haver confusão, sofrimento e atrito de que a mente tenta fugir indo atrás da imortalidade ou de outro conforto e segurança, engendrando, assim, o processo de exploração. Com o fim de todas as experiências do querer, que sustentam a individualidade separativa, surge a inominável, imensurável realidade, alegria. Para ser capaz de experimentar a realidade você deve estar livre de todas as máscaras que desenvolveu na luta por aquisição, nascida da ânsia.

Estas máscaras não dissimulam a realidade. Estamos inclinados a pensar que, nos livrando destas máscaras, descobriremos a realidade, ou que revelando as muitas camadas de desejo descobriremos aquilo que está oculto. Assim, admitimos que por trás desta ignorância, ou nas profundezas da consciência, ou fora deste atrito da vontade, da ânsia, está a realidade. Esta consciência de muitas máscaras, de muitas camadas, não dissimula dentro de si a realidade; mas quando começamos a compreender o processo de desenvolvimento destas máscaras, destas camadas de consciência, e quando a consciência se liberta de seu crescimento volitivo, surge a realidade. Nossa concepção de que o homem é divino, mas limitado, que a beleza é dissimulada pela feiura, a sabedoria enterrada sob a ignorância, inteligência suprema escondida nas trevas, está completamente errada. No discernimento de como esta ignorância sem começo e suas atividades deram origem ao processo do “Eu” e dando fim a esse processo, está a iluminação. Esta é a experiência daquilo que é imensurável, daquilo que não é descrito, mas existe.

Como discerniremos esta ignorância sem início com suas atividades volitivas? Como se provoca seu fim? Como a pessoa se torna profundamente zelosa, integralmente ciente do processo da consciência com suas muitas camadas de tendências, anseios, ódios e desejos? Pode alguma disciplina ou sistema ajudar a reconhecer e encerrar este processo de ignorância e sofrimento?

Experimentando perceberá que nenhum sistema, nenhum guia e nenhuma disciplina pode ajudá-lo a discernir este processo ou dar um fim à ignorância. Você precisa de uma mente flexível, viva, capaz do discernimento direto em que não existe escolha. Mas como sua mente é preconceituosa, dividida em si própria, ela é incapaz de verdadeiro discernimento. Como você é preconceituoso, tem que ficar cônscio desse fato antes de começar a discernir o que é real e o que é ilusório. Para discernir deve haver vigilância, tem que estar ciente do movimento de seu pensamento e suas atividades. O que quer que você faça, faça com a plenitude da mente, e perceberá que nesse processo de despertar, muitos pensamentos e anseios ocultos e sutis são revelados. Quando a mente não está mais limitada pela escolha, há a experiência da realidade. Pois a escolha se baseia no desejo, e onde há desejo não pode haver discernimento. Pelo esforço correto do interesse despertado, o processo de ignorância sem início, com suas atividades autossustentadas, é levado a um fim. É pelo empenho correto que a mente, livrando-se de seus medos autocriados, tendências e anseios, é capaz de discernir o real, o imensurável.

Interrogante: Eu perdi todo o entusiasmo e gosto pela vida que alguma vez tive. Tenho o suficiente para minhas necessidades materiais, agora a vida para mim não tem propósito, é uma concha vazia, uma existência dolorosa que se arrasta. Você poderia apresentar alguns pensamentos que pudessem romper esta esfera de vazio, aparentemente, sem esperança?

Krishnamurti: Perde-se o entusiasmo ou o gosto pela vida quando não há realização. Enquanto se é, meramente, escravo de um sistema, ou meramente treinado para se adaptar a um molde social particular, ou se ajustar irrefletidamente a um modo de conduta estabelecido, não pode haver realização. Ao, simplesmente, responder a uma reação e pensar que isto é a expressão completa do seu ser, deve haver frustração, deve haver vazio e sofrimento.

Se estamos profundamente conscientes da frustração, então existe alguma esperança, pois isto cria tal miséria e descontentamento que somos forçados a despir-nos das muitas tendências que desenvolvemos pela ânsia e libertarmo-nos das ilusões e imposições da opinião. Isto demanda esforço correto, pois é necessário sair dos costumes antigos e estabelecidos de pensamento e ação. Onde existe frustração, deve haver vazio, um vácuo doloroso e sofrimento; mas realizar é árduo – é preciso profunda compreensão e uma mente-coração vigilante.

Interrogante: O desejo de segurança não é um instinto natural, como a autoproteção na presença do perigo? Então, como podemos superá-lo, e por que deveríamos tentar fazê-lo?

Krishnamurti: A busca por segurança indica frustração e o tormento do medo constante. A inteligência, que não tem preocupação com o conceito de segurança, harmoniza o bem-estar do todo e não apenas do particular. Ora, cada pessoa está, individualmente, buscando sua própria segurança e, assim, criando confusão e miséria. Cada pessoa está preocupada consigo mesma, buscando sua própria segurança individual aqui e na próxima vida, e está sempre entrando em conflito com o outro que está, também, no encalço de seu próprio objetivo. Então existe constante atrito, antagonismo, ódio e disputa. Só a inteligência pode harmonizar, humanamente, as necessidades de vida de todos.

Isto é realidade, e para experimentá-la deve discernir o verdadeiro significado da segurança. Se considerar isto profundamente, perceberá que esta ideia de buscar segurança não tem valor permanente, aqui ou na próxima vida. Isto vem sendo provado vezes e vezes durante revoltas, mas apesar disto, cada pessoa vai atrás de sua própria segurança e, assim, continua a viver em constante medo e confusão. Onde não existe busca de segurança, só aí pode estar a alegria do real.

Interrogante: Diz-se que o exemplo é melhor do que o preceito. Não pode o valor do exemplo pessoal para o outro ser considerável, como o seu próprio?

Krishnamurti: Qual é o motivo por trás desta pergunta? Não é que o interrogante deseja seguir um exemplo, pensando que isto pode levá-lo à realização? Seguir o outro nunca leva à realização. Uma violeta não pode se tornar uma rosa, mas a violeta em si pode ser uma flor perfeita. Estando incerto, busca-se certeza na imitação de outra pessoa. Isto produz medo, de onde surge a ilusão de abrigo e conforto no outro e todas as muitas ideias de disciplina, meditação, e a sujeição da pessoa a um ideal. Tudo isto indica, apenas, a falta de compreensão de si mesmo, a perpetuação da ignorância. Esta é a raiz do sofrimento, e em vez de discernir a causa, você pensa que pode compreender a si mesmo através do outro. Olhar para o exemplo do outro só leva à ilusão e ao sofrimento.

Enquanto não há a compreensão de si mesmo, não pode haver realização. Realização não é um processo de racionalização, nem o simples acúmulo de informação, nem está no outro, mesmo que ele seja fantástico. É a fruição da profunda compreensão de sua própria existência e ações.

Interrogante: Se a reencarnação é um fato na natureza – e também a ideia de que o ego reencarna até atingir a perfeição – então atingir a perfeição ou a verdade não envolve tempo?

Krishnamurti: Muitas vezes perguntamos se a reencarnação é uma realidade porque não podemos encontrar a felicidade inteligente, nem a realização do indivíduo no presente. Se estamos em conflito e miséria e não temos oportunidade e esperança nesta vida, ansiamos pela vida futura ou a realização livre de disputa e dor. Este estado futuro de alegria gostamos de chamar perfeição.

Para compreender esta pergunta devemos descobrir o que o ego é. O ego não é uma coisa real em si mesmo que, como a minhoca que vai de uma folha para outra, vagueia de uma existência para outra, juntando experiência e aprendendo sabedoria até encontrar o mais elevado, que imaginamos ser a perfeição. Essa concepção é errada, é meramente uma opinião e não uma realidade. O processo real do “Eu”, o ego, pode ser discernido na percepção de como, pela ignorância, tendências, anseios, ele é reformado e sua continuidade restabelecida a cada momento. A vontade de ansiar se perpetua por suas próprias atividades volitivas. Por meio desta ação da ignorância e seu processo auto-sustentável, a limitação como consciência cria sua própria limitação e sofrimento. Neste círculo vicioso toda existência está presa.

Pode esta limitação, atrito, esta resistência contra o movimento da vida, conhecida como o ego, ser perfeito? Pode a ânsia se tornar perfeita? Certamente o egoísmo não pode se tornar mais nobre, egoísmo mais puro – ele sempre será o que ele é. Esta ideia de que, através do tempo, o ego se tornará perfeito é totalmente falsa e errônea. O tempo é o resultado daquelas atividades volitivas de ânsia que ligam e conferem um sentido de continuidade à vida, que, na realidade, está sempre num estado de estar nascendo; um estado que nunca existiu nem existirá, mas que sempre está se tornando novamente, sempre em movimento.

O ponto de vital importância para cada pessoa é descobrir se, pela ignorância com suas atividades volitivas, o processo do “Eu” está se perpetuando ou não. Se este processo auto-sustentável continua, não pode surgir aquilo que é real, verdadeiro. Só com a cessação da vontade de ansiar, com suas experiências de querer, existe realidade. Este processo sem início do “Eu” com suas limitações automáticas não pode ser testado, ele deve ser discernido. Não é uma fé, mas uma compreensão profunda, de vigilância integral, de esforço correto para discernir como a ânsia cria sua própria limitação, e como qualquer ação nascida da ânsia deve engendrar atrito, resistência e sofrimento.

Interrogante: Como a técnica psicanalítica de lidar com fixações, inibições e complexos atinge você, e como você lidaria com tais casos?

Krishnamurti: Pode outra pessoa libertar você destas limitações, ou isto é apenas um processo de substituição? A busca da psicanálise se tornou um hobby dos abastados. (Riso) Não ria, por favor. Você pode não ir a um analista, mas passa pelo mesmo processo de forma diferente quando procura uma organização religiosa, um líder, ou alguma disciplina para libertá-lo de fixações, inibições e complexos. Estes métodos podem ter sucesso ao criarem efeitos superficiais, mas, inevitavelmente, eles devem desenvolver novas resistências contra o movimento da vida. Nenhuma pessoa e nenhuma técnica podem, realmente, libertar alguém destas limitações. Para experimentar essa liberdade é necessário compreender a vida profundamente e discernir por si mesmo o processo de criar e manter a ignorância e a ilusão. Isto exige vigilância e percepção aguda, não a mera aceitação de uma técnica mas, como se é indolente, depende-se de outra pessoa para a compreensão e por isso aumenta o sofrimento e a confusão. A compreensão deste processo de ignorância e suas atividades autossustentáveis, desta consciência focalizada e só perceptível ao indivíduo, só ela pode gerar profunda e abrangente alegria ao homem.

4 de junho de 1936