Palestra no National College, La Plata, Argentina

Amigos

Para a maioria de nós, a profissão é separada de nossa vida pessoal. Existe o mundo da profissão e da técnica, e a vida de sentimentos sutis, ideias, medos e amor. Somos treinados para um mundo de profissão, e só ocasionalmente ao longo deste treinamento e compulsão, ouvimos o vago sussurro da realidade. O mundo da profissão tornou-se gradualmente dominante e exigente, tomando quase todo o nosso tempo, de modo que há pouca chance para o pensamento profundo e a emoção. E assim, a vida de realidade, a vida de felicidade, se torna mais e mais vaga e recua na distância. Assim, vivemos uma vida dupla: a vida da profissão, do trabalho, e a vida dos desejos sutis, sentimentos e esperanças. Esta divisão entre o mundo da profissão e o mundo da afinidade, amor e profundos devaneios do pensamento, é um impedimento fatal para a realização do homem. Como nas vidas da maioria das pessoas esta separação existe, vamos examinar se não podemos transpor este abismo destrutivo.

Com raras exceções, seguir qualquer profissão em particular não é a expressão natural de um indivíduo; não é a realização ou completa expressão da totalidade do ser. Se você examinar isto, verá que não é mais do que um treinamento do indivíduo para se ajustar a um sistema rígido e inflexível. Este sistema se baseia em medo, ambição e exploração. Nós temos que descobrir questionando profunda e sinceramente, não superficialmente, se este sistema, ao qual os indivíduos são forçados a se ajustar, é realmente capaz de libertar a inteligência do homem, e assim, gerar sua realização. Se este sistema é capaz de verdadeiramente libertar o indivíduo para a realização profunda, que não é meramente auto-expressão egoísta, então temos que dar todo nosso apoio a ele. Então devemos olhar para toda a base deste sistema e não sermos levados por seus efeitos superficiais.

Para um homem treinado numa profissão particular, é muito difícil discernir que este sistema se baseia em medo, cobiça e exploração. A mente dele já está investida de interesse próprio, assim ele é incapaz de verdadeira ação em relação a este sistema de medo. Pegue, por exemplo, um homem treinado para o exército ou a marinha: ele é incapaz de perceber que as forças armadas inevitavelmente criam guerras. Ou pegue um homem cuja mente está distorcida por uma crença particular: ele é incapaz de discernir que religião como crença organizada deve envenenar todo o seu ser. Assim, cada profissão cria uma mentalidade particular que impede a compreensão completa do homem integrado.

Como a maioria de nós está sendo treinada ou já foi treinada para se distorcer e se encaixar num molde particular, não vemos a importância de considerar os muitos problemas humanos como um todo e não os separar em várias categorias. Como fomos treinados e distorcidos, devemos nos libertar do modelo e reconsiderar, agir de novo, a fim de compreendermos a vida como um todo. Isto demanda que cada indivíduo, através do sofrimento, deverá se libertar do medo. Embora haja muitas formas de medo – social, econômico e religioso – existe apenas uma causa, que é a busca de segurança. Quando nós, individualmente, destruímos os muros e formas que a mente criou para se proteger engendrando medo, então surge a verdadeira inteligência, que produzirá ordem e felicidade neste mundo de caos e sofrimento.

De um lado existe o modelo da religião, impedindo e frustrando o despertar da inteligência individual, e do outro, o interesse investido da sociedade e da profissão. Nestes modelos de interesse investido o indivíduo vai sendo forçosa e cruelmente treinado, sem consideração por sua realização individual. Assim, o indivíduo é compelido a dividir sua vida em profissão como meio de sobrevivência, com toda sua estupidez e explorações, e as esperanças subjetivas, medos e ilusões, com todas as suas complexidades e frustrações. Desta separação nasce o conflito, sempre impedindo a realização individual. A condição caótica atual é resultado e expressão deste contínuo conflito e compulsão do indivíduo.

A mente deve se desembaraçar das várias compulsões, autoridades, que ela criou para si através do medo e, assim, despertar essa inteligência que é única e não individualista. Só essa inteligência pode trazer a verdadeira realização do homem. Esta inteligência é despertada através do contínuo questionamento daqueles valores aos quais a mente se acostumou, aos quais está constantemente se ajustando. Para o despertar desta inteligência, a individualidade é da maior importância. Se você acompanhar cegamente um padrão estabelecido, então não está mais despertando a inteligência, mas simplesmente se conformando, se ajustando, através do medo, a um ideal, a um sistema.

O despertar desta inteligência é a mais difícil e árdua tarefa, pois a mente é tão medrosa que está sempre criando abrigos para se proteger. Um homem que quiser despertar esta inteligência deve estar supremamente alerta, sempre consciente, para nunca escapar por alguma ilusão; pois quando você começa a questionar estes padrões e valores, há conflito e sofrimento. Para fugir desse sofrimento, a mente começa a criar outro conjunto de valores, entrando na limitação de um novo cercado. Assim, ela vai de uma prisão para outra, pensando que isso é viver, evoluir.

O despertar desta inteligência destrói a falsa divisão da vida – em profissão ou necessidade exterior, e o abrigo interior da frustração na ilusão – e traz a integralidade da ação. Assim, só através da inteligência pode haver a verdadeira realização e alegria do homem.

Interrogante: Qual é sua atitude em relação à universidade e ao ensino organizado oficial?

Krishnamurti: Para que o indivíduo está sendo treinado pela universidade? O que ela chama de educação? Ele está sendo treinado para lutar por si mesmo e, assim, se adequar a um sistema de exploração. Tal treinamento deve, inevitavelmente, criar confusão e miséria no mundo. Você está sendo treinado para certas profissões dentro de um sistema de exploração, goste você ou não do sistema. Ora, este sistema está fundamentalmente baseado no medo aquisitivo, e assim, deve haver a criação em cada indivíduo dessas barreiras que vão separá-lo e protegê-lo dos outros.

Pegue, por exemplo, a história de qualquer país. Nela você descobrirá que os heróis, os guerreiros desse país particular, são louvados. Lá descobrirá o estímulo ao egoísmo racial, poder, honra e prestígio, que apenas indicam estúpida estreiteza e limitação. Assim, gradualmente, o espírito do nacionalismo é instilado: pelos documentos, pelos livros, pelas bandeiras ondulando, nós somos treinados a aceitar o nacionalismo como uma realidade, de modo que possamos ser explorados. (Aplauso) Então, outra vez, pegue a religião. Porque se baseia no medo, está destruindo o amor, criando ilusões, separando os homens. E para encobrir esse medo, você diz que isto é o amor a Deus. (Aplauso)

Então, educação se tornou meramente conformismo a um sistema particular; em vez de despertar a inteligência do indivíduo, está meramente o impelindo a se conformar e, assim, obstrui sua verdadeira moralidade e realização.

Interrogante: Você acha que as leis atuais e o sistema atual, que se baseiam no egoísmo e no desejo de segurança individual, podem ajudar as pessoas no caminho de uma vida melhor, mais feliz?

Krishnamurti: Fico imaginando por que me fazem esta pergunta? O próprio interrogante não percebe que estas coisas impedem os seres humanos de viverem completamente? Se o fizesse, qual seria sua ação individual em relação a toda essa estrutura? Ficar simplesmente revoltado é, comparativamente, inútil, mas individualmente libertar a si mesmo através de sua própria ação libera inteligência criativa e, com isso, a alegria da vida. Isto significa que você mesmo deve ser responsável e não esperar por algum grupo coletivo para mudar o ambiente. Se cada um de vocês sentir verdadeiramente a necessidade de realização individual, estariam destruindo continuamente a cristalização da autoridade e a compulsão, que o homem sempre procura e a que se agarra para seu conforto e segurança.

Interrogante: É dito que você é contra todos os tipos de autoridade. Você quer dizer que não há necessidade de algum tipo de autoridade na família ou na escola?

Krishnamurti: Se a autoridade deve existir ou não numa escola ou na família será respondido quando você mesmo compreender toda a significação de autoridade.

Agora, o que eu quero dizer com autoridade é conformismo, pelo medo, a um padrão particular, seja do ambiente, da tradição e ideal, ou da memória. Tome a religião como ela é. Ali você verá que, através da fé e crença, o homem é mantido na prisão da autoridade, porque cada um está buscando sua própria segurança através daquilo que chama imortalidade. Isto não é nada além do anseio pela continuação egocêntrica, e um homem que diz que existe imortalidade dá uma garantia para sua segurança. (Riso) Assim, gradualmente, pelo medo, ele aceita a autoridade, a autoridade das ameaças religiosas, medos, superstições, esperanças e crenças. Ou ele rejeita as autoridades exteriores e desenvolve seus próprios ideais pessoais, que se tornam suas autoridades, se agarrando a eles na esperança de não ser ferido pela vida. Então a autoridade se torna o meio de autodefesa contra a vida, contra a inteligência.

Quando você compreende esta profunda significação da autoridade, não há caos, mas o despertar da inteligência. Enquanto existir medo, haverá formas sutis de autoridade e ideais aos quais a pessoa se submete para evitar sofrimento. Assim, pelo medo, cada um cria exploradores. Onde existe autoridade, compulsão, não pode haver inteligência, que pode gerar verdadeira cooperação.

Interrogante: Como poderia a liberdade do mundo ocidental ser organizada de acordo com a sensibilidade do oriental?

Krishnamurti: Receio não ter entendido bem a pergunta. Para muitas pessoas o oriente é uma coisa misteriosa e espiritual. Mas os orientais são pessoas exatamente como vocês; como vocês eles sofrem, eles exploram, têm medo, têm anseios espirituais e muitas ilusões. O oriente tem costumes e hábitos superficiais diferentes, mas, fundamentalmente somos todos semelhantes, seja no ocidente ou no oriente. Algumas raras pessoas no oriente dedicaram o pensamento à educação de si mesmo, à descoberta do verdadeiro significado de vida e morte, à ilusão e realidade. Muitas pessoas têm uma ideia romântica sobre a Índia, mas eu vou fazer uma palestra sobre esse país. Por favor, não procurem se ajustar a uma terra supostamente espiritual, como o oriente, mas estejam conscientes da prisão na qual vocês se mantêm. Compreendendo como ela é criada, e discernindo seu verdadeiro significado, a mente se libertará do medo e da ilusão.

Interrogante: Qual deveria ser a atitude da sociedade em relação aos criminosos?

Krishnamurti: Tudo depende de quem você chama criminosos. (Riso, aplauso) Um homem que rouba porque não pode evitar, deve ser cuidado e tratado como cleptomaníaco. O homem que rouba porque tem fome, nós também chamamos de criminoso, pois ele está tirando algo daqueles que têm. É o sistema que o faz ficar faminto, estar em necessidade, e é o sistema que o transforma em criminoso. Em vez de alterar o sistema, nós colocamos o chamado criminoso na prisão. E há o homem que, com suas ideias, perturba os interesses investidos da religião ou do poder mundano. Você também o chama de criminoso e se livra dele.

Ora, isto depende do modo como você olha a vida, bem como de quem você chama criminoso. Se você é ganancioso, possessivo, e o outro diz que a ganância leva à exploração, ao sofrimento e à crueldade, você chama essa pessoa de criminoso, ou idealista. Porque você não pode ver a grandeza e a natureza prática da não-ganância, de não ser apegado, você considera que ele é um perturbador da paz. Eu digo que você pode viver num mundo, onde há esta contínua ganância e exploração, sem ser apegado, possessivo.

Interrogante: Muito de nós temos consciência e tomamos parte desta vida corrupta a nossa volta. O que podemos fazer para nos libertarmos de seus efeitos sufocantes?

Krishnamurti: Você pode estar intelectualmente consciente, e assim não haverá ação; mas se você está consciente com todo o seu ser, então existe ação, que sozinha pode libertar a mente da corrupção. Se você está consciente apenas intelectualmente, então faz uma pergunta como esta. E você diz: “Diga-me como agir”, o que significa, “Me dê um sistema, um método para seguir, de modo que eu possa fugir dessa ação que pode requerer sofrimento”. Por causa dessa exigência, as pessoas criaram exploradores mundo afora.

Se você está realmente consciente com todo o seu ser que uma coisa é um obstáculo, um veneno, então ficará completamente livre dela. Se você está cônscio da cobra na sala – e essa consciência é, geralmente, aguda, pois o medo está envolvido nela – você não pergunta ao outro como se livrar da cobra. (Riso) Do mesmo modo, se você estiver completamente, profundamente cônscio – por exemplo, do nacionalismo ou alguma outra limitação – você, então, não perguntará como se livrar dele; você discerne por si mesmo sua total estupidez. Se você estiver inteiramente cônscio que a aceitação da autoridade na religião e na política é destruidora da inteligência, então você, o indivíduo, vai desenredar a mente de toda estupidez e ostentação da religião e da política. (Aplauso) Se você realmente sentisse tudo isto, então você não aplaudiria simplesmente, mas individualmente, agiria.

A mente impôs a si mesma muitos obstáculos, através de seu próprio desejo de segurança. Estes obstáculos impedem a inteligência e, por isso, a completa realização do homem. Se eu oferecesse um novo sistema, seria meramente uma substituição, que não faria você pensar de novo, desde o início. Mas se você se torna cônscio de como através do medo você cria muitas limitações, e liberta você mesmo delas, então haverá para você a vida de bela riqueza, a vida do eterno tornar-se.

É muito bom da parte de vocês, senhores, terem me convidado, e eu agradeço por terem me ouvido.

2 de agosto de 1935