Segunda palestra no Town Hall, 

Auckland, Nova Zelândia.

Amigos,

Provavelmente, a maioria de vocês veio aqui porque estão buscando algo. Ao menos, a maioria de vocês veio a esta reunião porque esperam obter algo dessa maneira, porque estão buscando algo que não conhecem, mas que esperam descobrir. Vocês estão aqui porque desejam alcançar a felicidade, uma vez que todos, de uma maneira ou de outra, sofrem. Há uma persistente inquietação em nossas mentes e corações, nós estamos insatisfeitos, incompletos, ansiando por respostas. Já recebemos numerosas explicações para nossos inumeráveis sofrimentos, e assim vocês estão aqui com a esperança de obter uma recompensa por sua busca. Assistindo a esta palestra, vocês esperam descobrir uma resposta para os seus problemas, compreender a razão de seu penar.

Mas, geralmente, o que acontece quando vocês sofrem? Vocês desejam um remédio para isso. Quando enfrentam um problema, vocês querem uma solução. Quando há dor, vocês querem saná-la. Por isso, partimos de um remédio para outro. Sofremos e desejamos saber se há uma solução para este sofrimento, e assim buscamos sem cessar novas lições, experiências, remédios, explicações, sistemas, crenças, seitas – ou seja, indo de uma gaiola para outra, batendo-nos em vão contra essas grades, tentando entender o porquê do sofrimento; e o tempo todo, a mente e o coração estão meramente buscando um remédio, uma solução. Mas vocês nunca encontrarão a resposta; pois, afinal, o que acontece quando se encontram em sofrimento? Sua necessidade imediata é que o sofrimento seja mitigado, que a dor seja aliviada, e por isso aceitam o primeiro remédio que lhes é dado, sem examiná-lo adequadamente, sem averiguar de fato o seu verdadeiro significado. Vocês o aceitam porque, psicologicamente, estão tomados de esperança, e essa esperança cega, a ponto de impedir uma compreensão clara do remédio. Se vocês refletirem a respeito disso, perceberão que as coisas se processam desse jeito. Vocês procuram um médico; ele lhes prescreve um remédio. Vocês nunca perguntam a ele qual é a verdadeira natureza desse remédio. Tudo que importa a vocês é que a dor acabe.

E agora que vocês estão aqui, neste encontro, vocês manifestarão essa mesma atitude mental se estiverem em busca de algo. Se estiverem aqui devido à curiosidade, bem, receio não ter muito a lhes dizer. E se estiverem aqui para descobrir, se estiverem buscando um remédio, então ficarão desapontados, porque não desejo lhes fornecer um remédio, uma explicação. Porém, se considerarmos juntos esses problemas, se raciocinarmos juntos, poderemos descobrir a causa de nosso sofrimento.

Portanto, para descobrirem a causa do sofrimento, não busquem um remédio; ao invés disso, tentem perceber qual é a causa do sofrimento. Podemos lidar com isso superficialmente, no nível dos sintomas; mas, desse modo, vocês não descobrirão a causa real básica, fundamental; e vocês só poderão descobrir essa causa se não perturbarem o seu entendimento com o desejo urgente de se ver livres do sofrimento. Por exemplo, se vocês perdem alguém que amam muito, passam por um intenso sofrimento. Então, alguém lhes oferece um paliativo – a ideia de que a pessoa está viva “do outro lado”, a ideia da reencarnação, e assim por diante. Vocês aceitam esse remédio para o seu sofrimento, mas aquele pesar continua. Aquela solidão, aquele vazio ainda está lá; vocês apenas o encobriram com uma explicação, um remédio, uma droga de efeito superficial. Ao passo que, se vocês realmente tentassem descobrir a causa daquele sofrimento, então vocês examinariam, tentariam identificar o inteiro significado do remédio que lhes é oferecido, seja a ideia de que o ente amado vive “do outro lado”, seja a crença na reencarnação. Para quem se encontra nesse estado mental, no momento em que ocorre o sofrimento, há uma agudeza de pensamento, há um intenso questionamento; e esse intenso questionamento é, de fato, o que causa o sofrimento. Não é? Se vocês viveram com a esposa, com o irmão, ou com qualquer outra pessoa, e essa pessoa morreu, então vocês se veem face a face com a sua própria solidão, que cria em sua mente a atitude questionadora – a inteira consciência da solidão. Esse momento de agudo despertar, de inteira consciência, é a oportunidade para enxergar a causa do sofrimento.

A meu ver, para descobrirmos a causa do sofrimento, deve haver aquele agudo estado da mente e do coração que realmente buscam a verdade. Naquele estado, vocês perceberão que a mente e o coração se tornaram escravos do mundo exterior. A mente, na grande maioria das pessoas, nada mais é do que um reflexo do mundo exterior. A mente e o coração são o mundo exterior e, enquanto forem escravos dele, deverá haver sofrimento, deverá haver uma persistente luta do indivíduo contra a sociedade. O indivíduo somente se libertará da influência do mundo exterior quando, por meio do questionamento desse contexto, conseguir superar as limitações que lhe foram impostas por ele. Isto é, apenas quando vocês entenderem o verdadeiro significado de cada situação com que se deparam, o verdadeiro valor do mundo que lhes é apresentado pela sociedade, pelas religiões, vocês conseguirão romper as limitações que lhes foram impostas, de um modo que representará o nascimento da verdadeira inteligência.

Afinal de contas, uma pessoa sente-se infeliz porque não há inteligência, que é entendimento. Quando vocês compreendem um problema, não há mais conflito, não há mais submissão às imposições da autoridade, da tradição, de preconceitos profundamente enraizados. Portanto, precisamos de inteligência para conquistarmos a felicidade suprema, e, para despertarmos essa inteligência, a mente deve estar livre do mundo exterior. As inumeráveis incrustações criadas pelas religiões e pela sociedade, no decorrer das eras, tornaram-se o nosso mundo. Vocês só conseguirão se libertar deste mundo, que os indivíduos criaram, quando entenderem seus padrões, seus valores, seus preconceitos, suas autoridades. E então, vocês começarão a descobrir a causa fundamental do sofrimento, que é a falta de verdadeira inteligência, inteligência que não deverá ser descoberta por meio de algum processo miraculoso, mas por meio de uma contínua atenção, e, portanto, de um contínuo questionamento, em que se tenta identificar o falso e o verdadeiro neste mundo que se apresenta a nós.

Entregaram-me algumas perguntas e tentarei respondê-las nesta tarde.

Pergunta: Você acredita em Deus? Você é um ateísta?

Krishnamurti: Presumo que todos vocês acreditam em Deus. Todos vocês são cristãos, ou pelo menos afirmam ser, de modo que devem acreditar em Deus.

Por que vocês creem em Deus? Por favor, responderei à pergunta logo em seguida, então não comecem me chamando de teísta ou ateísta. Por que vocês creem em Deus? O que é uma crença? Vocês não acreditam em algo que é evidente, como o pôr do sol, como a pessoa sentada a seu lado; vocês não precisam crer nisso. Por conseguinte, sua crença em Deus não se refere à realidade. É uma certa esperança, uma certa ideia, um certo desejo preconcebido que pode não ter nada a ver com a realidade. Se vocês não acreditarem, mas realmente perceberem a realidade de sua vida, tal como percebem o pôr do sol, então o seu inteiro modo de vida será diferente. No presente, sua crença nada tem a ver com sua vida diária; portanto, para mim, sua crença ou descrença em Deus é algo secundário. (Aplausos.) Por favor, não se incomodem em aplaudir. Há muitas questões a responder.

Para mim, sua crença e sua descrença em Deus significam a mesma coisa, porque não têm consistência. Se vocês estivessem realmente conscientes da verdade, como estão conscientes daquela flor, se vocês estivessem conscientes da verdade como estão do ar fresco ou da falta de ar fresco, então toda a sua vida, toda a sua conduta, todo o seu comportamento, suas próprias emoções, seus próprios pensamentos, seriam diferentes. Chamem a si mesmos de crentes ou descrentes, o fato é que sua conduta revela muitas contradições; portanto, acreditarem em Deus ou não é de muito pouca importância. É meramente uma ideia superficial, imposta pelas circunstâncias e pelo mundo, através do medo, da autoridade, da imitação. Assim, quando vocês perguntam: “Você acredita em Deus? Você é um ateísta?”, não posso lhes responder categoricamente; pois, para vocês, a crença é muito mais importante do que a realidade. Eu afirmo que existe algo imenso, imensurável, insondável; que existe uma suprema inteligência; mas que isso não pode ser descrito. Como vocês poderiam descrever o gosto do sal se nunca o tivessem provado? E são pessoas que nunca provaram o sal, que nunca estão conscientes desta imensidade em suas vidas, que começam a questionar se eu acredito ou não acredito, porque a crença para elas é muito mais importante do que a realidade – realidade que elas poderiam descobrir se vivessem corretamente, de maneira sincera. Mas, como não desejam viver desse modo, elas pensam que a crença em Deus é essencial para sermos verdadeiramente humanos.

Assim, ser um teísta ou um ateísta, para mim, são ambas atitudes absurdas. Se vocês soubessem o que é a verdade, o que é Deus, vocês não seriam nem teístas nem ateístas, porque, quando há conhecimento, a crença é desnecessária. É apenas o homem que carece de conhecimento que tem esperança e elabora suposições, que recorre à crença ou à descrença, buscando algo que o apoie e que o leve a agir de uma determinada maneira.

Agora, se vocês abordarem essa questão de forma muito diferente, vocês descobrirão por si mesmos, como indivíduos, algo real, que está além de todas as limitações das crenças, além das ilusões das palavras. Mas isso – a descoberta da verdade, de Deus – requer grande inteligência, que não significa afirmar crer ou descrer, mas reconhecer os obstáculos criados pela falta de inteligência. Assim, para descobrir Deus ou a verdade – e eu afirmo que tal coisa existe, pois eu a encontrei –, para reconhecer isso, para realizar isso, a mente deve estar livre de todos os impedimentos que foram criados ao longo de eras, e que se baseiam no desejo de autoproteção e segurança. Vocês não podem se libertar do anseio por segurança simplesmente afirmando que estão livres. Para romper esses obstáculos, vocês precisam ter uma grande quantidade de inteligência, e não melhor nível intelectual. A inteligência, a meu ver, significa mente e coração em harmonia; desse modo, vocês descobrirão por si mesmos, sem perguntar a ninguém, o que é a realidade.

Mas o que está acontecendo no mundo? Temos o Deus cristão, os deuses hindus, a concepção de Deus elaborada pelos muçulmanos – cada pequena seita com sua verdade particular. E todas essas verdades estão se convertendo em doenças no mundo, pois estão separando as pessoas. Estas verdades, manipuladas por uns poucos, estão se tornando meios de exploração. Você recorre a uma depois da outra, experimentando todas elas, porque você perdeu a sua capacidade de julgamento, porque você está sofrendo e deseja um remédio para isso, e portanto aceita qualquer um que lhe é oferecido por alguma seita, seja cristã, hindu ou outra. Então, o que está ocorrendo? Seus deuses estão dividindo vocês, suas crenças em Deus estão dividindo vocês, e ainda assim vocês falam sobre irmandade dos homens, união em Deus. Vocês estão negando aquilo mesmo que desejam encontrar, na medida em que se aferram a essas crenças, pensando que são os melhores meios para superar as barreiras humanas, enquanto elas só fazem intensificá-las.

Tudo isso é tão óbvio. Se vocês são protestantes, vocês têm horror ao catolicismo romano; e se são católicos romanos, têm horror a tudo mais. Isso acontece em todo lugar, não apenas aqui. Na Índia, entre os maometanos, entre todas as seitas religiosas, o mesmo se verifica; porque para todos a crença – esta coisa cruel – é mais vital, mais importante, do que buscar descobrir a verdade, busca que representa o verdadeiro sentido de ser humano. Portanto, as pessoas que acreditam tanto em Deus não estão de fato apaixonadas pela vida. Estão apaixonadas por uma crença, mas não pela vida, de modo que seus corações e mentes definham e se reduzem a nada, tornando-se vazios, superficiais.

Pergunta: Você acredita na reencarnação?

Krishnamurti: Antes de tudo, não sei quantos de vocês estão familiarizados com a ideia de reencarnação. Explicarei brevemente a vocês o que isso significa. Significa que, tendo em vista alcançar a perfeição, vocês devem passar por uma série de vidas, acumulando mais e mais experiência, mais e mais conhecimento, até chegarem àquela realidade, àquela perfeição. Em termos breves e simples, sem entrar em sutilezas, isto é reencarnação: a ideia de que o “Eu”, a entidade, o ego, assume uma série de formas, vida após vida, até se tornar perfeito.

Agora, responderei se acredito ou não em reencarnação, tendo em vista lhes mostrar que a reencarnação é um problema secundário. Não rejeitem imediatamente o que eu disser. O que é o ego? O que é esta consciência que chamo de “Eu”? Vou lhes dizer o que é, e, por favor, considerem esta explicação; não a rejeitem. Vocês estão aqui para entender o que estou dizendo, e não para, por força de suas crenças, erguer uma barreira entre vocês e eu. O que é o “Eu”, o ponto focal que vocês chamam de “Eu”, aquela consciência que a mente percebe o tempo todo? Isto é, quando vocês estão conscientes do “Eu”? Quando vocês têm consciência de si mesmos? Apenas quando estão frustrados, quando estão embaraçados, quando enfrentam uma resistência; do contrário, vocês permanecem totalmente inconscientes de seu pequeno ego, o “Eu”. Não é assim? Vocês se tornam conscientes de si mesmos apenas quando há um conflito. Então, já que nossas vidas consistem em nada mais do que conflito, permanecemos conscientes do “Eu” na maior parte do tempo; e, dessa maneira, surge aquela consciência, aquela concepção, que é nascida do “Eu”. O “Eu”, nesses conflitos, nada mais é do que a consciência de si como uma forma dotada de nome, preconceitos, idiossincrasias, tendências, faculdades, desejos, frustrações; e isso, pensam vocês, deve continuar e se desenvolver até alcançar a perfeição. Como o conflito pode alcançar a perfeição? Como aquela consciência limitada pode alcançar a perfeição? Ela pode se expandir, pode se desenvolver, mas isso não será a perfeição, não importa o quão ampla e abrangente se mostre, porque suas bases se resumem em conflitos, desentendimentos, barreiras. Então, vocês dizem a si mesmos: “Devo continuar vivo como uma entidade espiritual depois da morte, e retornar a esta vida até alcançar a perfeição”.

Mas então, vocês podem dizer: “Se você remover esta concepção do ‘Eu’, qual será o ponto focal na vida?”. Espero que estejam acompanhando isso. Vocês dirão: “Se removermos a consciência de nós mesmos como o ‘Eu’, se nos libertarmos desse conceito, então o que restará?” O que resta quando vocês se sentem sumamente felizes, criativos? Resta apenas aquela felicidade. Quando vocês estão realmente felizes, ou quando vocês estão tomados por amor, não há “vocês”. Existe aquele tremendo sentimento de amor, aquele êxtase. Eu digo, aquilo é a realidade; tudo mais é falso.

Então, vamos descobrir o que cria esses conflitos, o que cria esses impedimentos, essa contínua fricção; vamos descobrir se essas coisas são artificiais ou reais. Se são reais, se essa fricção deve ser o próprio processo da vida, então a consciência do “Eu” deve ser real. Mas, eu digo que essa fricção é uma coisa falsa, pois não poderia existir se a humanidade fizesse um planejamento eficaz para satisfazer as necessidades humanas, se fosse capaz de experimentar a verdadeira afeição. Assim, vamos descobrir se o “Eu” é o produto falso de um mundo falso, de uma sociedade falsa, ou se o “Eu” é algo permanente, eterno. Para mim, essa consciência limitada não é eterna. Ela é o resultado de um ambiente e de crenças falsas. Se vocês estivessem fazendo o que realmente querem fazer na vida, sem serem forçados a exercer um determinado trabalho que abominam, se vocês estivessem seguindo a sua verdadeira vocação, preenchendo-se em sua verdadeira vocação, então o trabalho não causaria mais fricção. Um pintor, um poeta, um escritor, um engenheiro que realmente ama o seu trabalho, para ele a vida não é um fardo.

Mas o seu trabalho não é a sua vocação. Fatores sociais, externos, forçam vocês a realizar certos trabalhos, quer vocês os apreciem ou não, de modo que isso faz surgir uma fricção. Além disso, certos padrões morais, certas autoridades definem vários ideais como sendo verdadeiros, ou falsos, ou virtuosos, e vocês aceitam isso. Vocês colocaram essa máscara sem entendê-la, sem descobrir o seu exato valor, e, dessa maneira, fizeram surgir a fricção. Assim, gradualmente, toda a sua mente se vê aprisionada e pervertida e em conflito, ao menos até que vocês se tornem conscientes daquele “Eu”, e de nada mais. Portanto, vocês começam com uma causa errada, produzida por um contexto social errado, e assim obtêm uma resposta errada.

Assim, saber se a reencarnação existe ou não, para mim, é um problema secundário. O que importa é a autorrealização, que significa alcançar a perfeição. Vocês não podem se autor realizar em um momento futuro. Autopreenchimento não é questão de tempo. O autopreenchimento se verifica no presente. Então, o que está acontecendo? Devido à fricção, devido ao perpétuo conflito, a memória é gerada, memória como o “Eu” e o “meu”, que se torna possessividade. Essa memória tem várias camadas, e constitui a consciência que chamamos de “Eu”. Digo que esse “Eu” é o resultado falso das influências de um ambiente falso, de modo que suas dificuldades, suas soluções, são inteiramente falsas, ilusórias. Por conseguinte, se vocês, como indivíduos, começarem a despertar para as limitações que lhes foram impostas pelo mundo exterior, pela sociedade, pelas religiões, pela economia, e passarem a questionar tudo isso, entrando assim em choque com essas influências, vocês dissiparão aquela pequena consciência que chamam de “Eu”; então, vocês descobrirão o que é aquele preenchimento, uma vida criativa focalizada no presente.

Para colocar a questão em outros termos, diversos cientistas afirmam que a individualidade, esta limitada consciência, permanece depois da morte. Eles observaram o ectoplasma e outros fenômenos desse tipo, e afirmam que a vida continua após a morte. Vocês terão que me acompanhar um pouquinho cuidadosamente, como espero que tenham me acompanhado até aqui; do contrário, não entenderão isso. A individualidade, esta consciência, esta limitada autoconsciência, é um fato na vida. É um fato em suas vidas, não é? Ela é um fato, mas não tem realidade. Vocês estão a todo momento conscientes de si, e isso é um fato, mas, como mostrei a vocês, trata-se de algo sem realidade. É meramente o hábito de séculos de influências de um mundo falso, que converteu em fato algo que não é real. E ainda que o fato possa existir, como realmente existe, enquanto nosso foco continuar nele, não poderá haver autopreenchimento. E eu afirmo que o autopreenchimento suscitado pela perfeição não decorre da acumulação de virtudes, não se verifica em algum momento no futuro, mas consiste na completa harmonia de viver focado no presente. Senhores, imaginem que vocês estão famintos e que eu lhes prometo comida na próxima semana; qual o valor que isso tem? Ou, suponham que vocês perderam alguém que amam intensamente; mesmo que ouçam falar sobre a vida “do outro lado”, mesmo que tenham certeza dessa outra vida, de que isso lhes serve? O que importa, o que se verifica em realidade, é que existe aquele vazio, aquela solidão em sua mente e em seu coração, aquele imenso vazio. E vocês pensam que podem escapar disso, graças ao conhecimento de que seu irmão, sua esposa, seu marido, ainda vive. Mas, nessa consciência, a morte ainda se faz presente; nela ainda existe uma limitação, um vazio, o contínuo tormento do pesar. Por conseguinte, se vocês libertarem a sua mente dessa consciência do “Eu”, através da descoberta dos verdadeiros valores relativos ao mundo, o que é algo que ninguém pode lhes ensinar a fazer, então vocês descobrirão por si mesmos uma forma de autorrealização que é a verdade, que é Deus, ou seja lá que nome queiram lhe dar. Mas por meio do desenvolvimento daquela limitada autoconsciência, que é um resultado ilusório de uma causa ilusória, vocês não descobrirão o que é a verdade, o que é Deus, o que é a felicidade, o que é a perfeição; pois, naquela autoconsciência, haverá sempre contínuo conflito, contínuo esforço, contínua miséria.

Pergunta: Você é o Messias?

Krishnamurti: Será que isso importa de fato? Vocês sabem, esta é uma das perguntas que me fazem em todo lugar onde vou. Jornalistas me perguntam isso porque querem escrever uma matéria; audiências me perguntam isso porque desejam saber, porque pensam que uma autoridade poderá convencê-las. Mas, eu nunca neguei nem afirmei que sou o Messias, que sou o Cristo que voltou; isso não importa. Ninguém pode lhes responder isso. Mesmo que eu lhes respondesse, isso seria totalmente sem valor, e por esse motivo não lhes direi; para mim, essa é uma questão irrelevante, sem importância, fútil. Afinal de contas, quando vocês veem uma maravilhosa escultura, ou uma maravilhosa pintura, vocês experimentam júbilo; mas receio que a maioria de vocês está mais interessada em saber quem fez a pintura, em saber quem é o escultor. Vocês não estão realmente interessados na pureza da ação, seja na confecção de uma imagem ou de uma estátua, ou no âmbito do pensamento; vocês estão interessados em saber quem está falando. Então, isso indica que vocês não têm a capacidade de averiguar o mérito intrínseco de uma ideia, mas antes estão preocupados com a identidade de quem fala. Eu receio que se esteja cultivando cada vez mais uma forma de esnobismo espiritual, assim como se cultiva o esnobismo mundano; mas, todo esnobismo é a mesma coisa.

Assim, amigos, não se preocupem com isso, mas procurem descobrir se o que digo é verdadeiro; dessa maneira, vocês se libertarão de toda autoridade, que é uma coisa perniciosa. Para seres humanos realmente criativos e inteligentes, não pode haver autoridade. Para verificar se o que digo é correto, vocês não podem abordá-lo com mero antagonismo, ou dizendo “Disseram-nos que isto é verdade”, “Certos livros disseram isto e aquilo”, “Nossos guias espirituais disseram que…”. Vocês sabem, este é o derradeiro truque: “Nossos guias espirituais disseram isto”. Não sei porque vocês atribuem mais importância a esses guias, que estão mortos, do que a quem está vivo. Vocês sabem que os vivos podem contrariá-los, e por isso não lhes dão muita atenção; entretanto, os espíritos, da mesma maneira, sempre podem enganá-los.

Nós treinamos as nossas mentes para valorizarem algo não pelo que é, mas por ser obra de determinado criador, pintor, orador. Assim, nossas mentes e corações se tornaram mais e mais superficiais, vazios, e nisso não existe nem afeição, nem pensamento realista e razoável. Existe apenas uma massa de preconceitos.

Pergunta: O que é espiritualidade?

Krishnamurti: Eu digo que é uma vida harmoniosa. Agora, esperem um minuto. Explicarei o que quero dizer. Vocês não podem viver harmoniosamente se forem nacionalistas. Como poderiam? Se estão centrados em sua raça, em sua classe social, como podem viver de maneira inteligente, completa, livre? E como podem viver harmoniosamente se são possessivos, se cultivam a ideia de “meu” e “seu”? Ou, como podem viver harmoniosamente se estão dominados por crenças? Afinal, a crença é apenas uma fuga dos conflitos presentes. Um homem que se encontra em imenso conflito com a vida, e que deseja compreendê-la, não tem crenças, pois está num processo de experimentação; ele não forma conclusões, e assim dá continuidade aos experimentos. Um cientista não começa seus experimentos com uma crença formada, ele parte dos próprios experimentos. E um homem que está enredado pela autoridade, social ou religiosa, com certeza não pode viver de modo harmonioso, isto é, espiritualizado e inteligente. A autoridade, então, é meramente um processo de imitação, de falsificação. Um homem que está tomado por seus próprios pensamentos não está livre da autoridade; e a autoridade simplesmente faz dele uma máquina de imitar, uma peça de engrenagem – seja social ou religiosa. Mas o homem que se libertou de tudo isso, esse homem pode viver harmoniosamente, e em tal harmonia sua mente e seu coração encontram-se normais, sãos, preenchidos, completos, não oprimidos pelo medo.

Pergunta: O estudo da música, ou da arte em geral, tem valor para alguém que deseja atingir a realização da qual você fala?

Krishnamurti: A pergunta, em outras palavras, refere-se a alguém que, por exemplo, ouve música como se fosse obter algo em retorno? Certamente, música não é algo para ser comerciado, comprado. Vocês ouvem música por gosto, não para obter algo em troca. Ela não é como uma loja. Sem dúvida, nossa ideia de descobrimento da verdade ou de uma vida de êxtase espiritual não consiste numa acumulação contínua de objetos, ideias, sensações. Vocês contemplam uma bela pintura, uma obra arquitetônica – qualquer coisa assim –, porque a apreciam, e não porque isso lhes dará algo em retorno. Mas, desejar uma recompensa é a verdadeira atitude materialista, concentrada em negociar, comerciar. Esta é a nossa abordagem usual da realidade, de Deus. Vocês invocam Deus com orações, flores, confissões, sacrifícios, porque receberão algo em troca. Porém, seus sacrifícios, suas orações, suas súplicas, são desprovidos de valor, porque vocês têm em vista ganhar uma recompensa. É como um homem que os trata com gentileza, porque vocês lhe darão algo em troca; e o inteiro processo da civilização ocorre dessa maneira. O amor tornou-se um objeto a ser comerciado. A espiritualidade, ou a realização da verdade, é algo que vocês buscam como recompensa por agir de maneira correta. Senhores, quando um comportamento bondoso é motivado pelo interesse de obter algo em troca, ele não é uma ação correta.

Pergunta: Se os sacerdotes e as igrejas, e outras organizações desse tipo, atuarem junto aos indivíduos à maneira de um tratamento emergencial, tendo em vista aliviar os sintomas de seus males, até que o Grande Médico venha para combater as causas, isso seria errado?

Krishnamurti: Então, vocês consideram os sacerdotes e as religiões como um degrau inicial. Está correto? Vocês esperam que alguém venha e lhes revele a causa de seus problemas? Se estou entendendo bem, vocês estão dizendo: “Uma vez que há tantos sintomas, tantos sofrimentos – manifestos como sintomas superficiais –, é preciso que haja sacerdotes e igrejas”. Agora, é isso que vocês afirmam? Vocês reconhecem isso? Reconhecem e afirmam que as igrejas e os sacerdotes lidam com meros sintomas? Se vocês realmente reconhecem isso, então vocês descobrirão a causa de seus problemas. Mas, vocês não o farão. Vocês não afirmam que sacerdotes e igrejas atuam superficialmente, no nível dos sintomas. Se vocês realmente afirmassem e sentissem isso, então vocês descobririam a razão dos problemas por si mesmos, imediatamente; mas, naturalmente, vocês não fazem essa afirmação. Vocês alegam que os sacerdotes e as igrejas os levarão a descobrir a causa de tudo, e por isso a questão não é colocada de maneira correta. Para a grande maioria das pessoas, praticamente todas elas, igrejas e sacerdotes poderão nos ajudar a realizar a verdade; ninguém diz que eles lidam com sintomas. Se vocês reconhecessem isso, dispensariam todo esse aparato imediatamente. Eu gostaria que o fizessem! Então, seriam capazes de descobrir. Ao fazerem isso, ninguém mais precisa lhes indicar a causa de seus problemas, porque vocês estão funcionando com inteligência, estão começando a questionar, sem aceitar o que outros dizem. Dessa forma, vocês estão se tornando verdadeiros indivíduos, e não máquinas guiadas pelo ambiente ou pelo medo. Uma mudança assim suscitaria mais sensatez, mais afeição, mais humanidade no mundo, em lugar dessas horríveis divisões.

Pergunta: Considerando que a sociedade humana deve ser cooperativa e coletiva, qual o valor que o indivíduo pode ter nesse processo? A liderança suprime a liberdade individual e torna sem valor a singularidade das pessoas.

Krishnamurti: “Considerando que a sociedade humana deve ser cooperativa e coletiva, qual o valor que o indivíduo pode ter nesse processo?” Vamos agora averiguar se uma pessoa, na medida em que se tornar um verdadeiro indivíduo, irá ou não irá cooperar. Isto é, será que uma pessoa, ao invés de apenas ser levada pelas circunstâncias a agir em cooperação, como acontece agora – eu prefiro não dizer “agir em cooperação”, já que vocês não são cooperativos –; será que uma pessoa, ao invés de apenas ser levada pelas circunstâncias a agir em interesse próprio (o que, portanto, não é cooperação verdadeira, inteligente), conseguirá cooperar a partir do momento em que se tornar um verdadeiro indivíduo? Eu afirmo que isso é possível; que, na medida em que alguém se converte num verdadeiro indivíduo, haverá cooperação natural e verdadeira, não forçada pelas circunstâncias. Investiguemos isso.

Será que vocês são indivíduos, com inteiro domínio de si próprios? Pois este é o significado de ser um verdadeiro indivíduo, não é? Um homem funcionar com inteira liberdade. Do contrário, vocês não são indivíduos, mas simples peças de uma engrenagem comandada por outrem. Então, eu digo que somente quando vocês forem verdadeiros indivíduos haverá cooperação de fato. Agora, o que é um indivíduo? Não é um ser humano compelido à ação pelo ambiente, pelas circunstâncias. Eu afirmo, a verdadeira individualidade consiste em libertar a mente das ilusões impostas pelo mundo; dessa maneira, haverá cooperação.

Por favor, já é tarde, e não posso entrar em maiores detalhes, mas se vocês estiverem interessados, continuarão refletindo sobre isso, e verão que neste mundo, tal como ele está constituído, cada indivíduo está lutando contra seu vizinho, buscando sua própria segurança, proteção, preservação. Assim não pode haver cooperação. Isso é uma impossibilidade. Só pode haver cooperação inteligente, humana, criativa – não cooperação egoísta – quando vocês, como indivíduos, tornarem-se verdadeiros indivíduos. Isto é, quando vocês enxergarem que, para haver verdadeira cooperação no mundo, não deve haver busca competitiva por segurança pessoal. Isso significa alterar a inteira estrutura de nossa civilização, com seus interesses, sua possessividade, suas nacionalidades, conflitos raciais, divisões religiosas. Quando vocês, como indivíduos, tornam-se realmente livres, quando vocês enxergam a significação dessas coisas, sua falsidade, então vocês se transformam em verdadeiros indivíduos, capazes de cooperar inteligentemente; isso é inevitável. O que está nos mantendo divididos são nossos preconceitos, nossa falta de percepção dos valores corretos, de todas essas barreiras que nós, como indivíduos, fizemos surgir; e é apenas como indivíduos que podemos derrubar esse sistema. Isso significa que vocês não devem ter qualquer nacionalidade, não devem ser possessivos, ainda que conservem suas casas, suas roupas. Esse senso de possessividade desaparece quando vocês descobrem suas necessidades reais, quando o seu inteiro comportamento deixa de refletir uma possessiva consciência de classe. Quando cada indivíduo leva em conta o bem-estar da comunidade, então pode haver verdadeira cooperação. Agora não há cooperação porque vocês estão sendo meramente compelidos em uma ou outra direção, à maneira de ovelhas. Seus líderes os oprimem, tratando-os como instrumentos para a realização de interesses. E vocês são explorados porque seu inteiro modo de pensar, sua inteira estrutura, visa à autopreservação, às custas de todas as outras pessoas. E eu digo que pode haver autopreservação, segurança verdadeira, em termos mundiais, quando vocês, como indivíduos, destroem aquilo que mantém as pessoas separadas, lutando entre si em guerras incessantes, as quais são resultado da existência de nacionalidades e governos soberanos. Eu lhes asseguro, vocês não terão paz, vocês não terão felicidade, enquanto essas coisas existirem. Tudo isso apenas ocasiona mais e mais discórdia, mais e mais guerras, mais e mais calamidades, sofrimento e dor. Tais coisas foram criadas por indivíduos, e como indivíduos vocês precisam começar a derrubá-las, a se libertar delas, pois somente assim vocês descobrirão o êxtase da vida.

01/04/1934.