Bombaim, quinta palestra pública. 15 de fevereiro de 1948

Todo domingo tenho tentado escolher um assunto diferente e abordar o problema da existência sob um ponto de vista diferente. Esta tarde vou tentar abordá-lo do ponto de vista do esforço, esta constante batalha que promovemos para superar alguma coisa, ter sucesso, conseguir, e ver se podemos ter um breve período para compreender o completo significado dessa luta. Há muito sofrimento e muito pouca felicidade em nossas vidas. Quando há felicidade, os problemas de poder, posição e realização, chegam ao fim. Quando há felicidade, a luta para se tornar cessa, e as divisões entre homem e homem se desfazem. Nós já devemos ter notado algumas vezes, nestes raros momentos quando estamos perfeitamente felizes, calmos, que todos os conflitos deixam de existir. Portanto, a felicidade só chega com a mais elevada forma de inteligência. Inteligência é a compreensão do sofrimento. Nós conhecemos o sofrimento, ele está sempre conosco, uma companhia constante; ele parece não ter fim – sofrimento sob diversas formas, em diferentes níveis, físico e psicológico. Conhecemos certos remédios para superar a dor física; mas psicologicamente é muito mais difícil. Os problemas psicológicos são muito mais complexos, exigem maior atenção e maior estudo, penetração mais profunda e mais vasta experiência; mas o sofrimento, seja qual for, em qualquer nível, é ainda doloroso.

Então o problema é: O sofrimento, a agonia, chegam ao fim pelo esforço, por um processo de pensamento? Você compreende, no momento não estou falando sobre o sofrimento fisiológico, a doença dolorosa, mas sobre o sofrimento psicológico. Esse sofrimento chega ao fim pelo esforço, pelo que chamamos processo do pensamento? A dor física pode ser superada pelo esforço, pela investigação das causas da doença. Mas o sofrimento psicológico, a dor, a ansiedade, a frustração, as inumeráveis dores – elas podem ser superadas pelo esforço, pelo pensamento?  Então, primeiro, temos que examinar o que é o sofrimento, o que é esforço, e o que é pensamento. É um problema muito grande para ser resolvido num tempo muito curto; mas se vocês acompanharem atentamente acho que é possível compreender seu significado; e talvez, compreendendo diretamente, seremos capazes de resolvê-lo, ou antes termos um vislumbre momentâneo desta felicidade que destrói esta dor, esta solidão e dor ardentes.

Então, o que é sofrimento? Não é o desejo de se tornar, com suas variadas frustrações? O sofrimento não é o resultado do desejo de ser aquilo que não se é? As ações baseadas nesse desejo não levam à desintegração, ao conflito, à interminável onda de confusão? Então, sofrimento, agonia é o desejo de se tornar, o desejo de ser, seja positivamente ou negativamente. Acho que podemos concordar com isso fundamentalmente. O sofrimento surge quando há o desejo de se tornar. Nesse se tornar, existe ação, seja ação social ou ação individual; e essa ação fica se expandindo constantemente em desintegração, em futilidade, em frustração, que vemos a nossa volta constantemente. Agora, pode esse desejo de se tornar, que é a causa do sofrimento, chegar ao fim pelo esforço? É isso que tentamos fazer, não? Quando estamos frustrados, quando há dor, quando há sofrimento, tentamos superá-lo tentamos lutar com isso. Este ataque positivo ou defensivo chamamos de esforço, não? Ou seja, o esforço existe ou surge quando existe ansiedade para mudar o que se é. Eu sou isso, e quero me tornar aquilo. Essa mudança, esse movimento de mudança disso naquilo, é chamado esforço. Agora, o que é mudança, o que é mudar – não o significado do dicionário, mas a significação interna disso? Certamente, mudança é uma continuidade modificada, eu sou isso, e quero me tornar aquilo; ou seja, eu quero me tornar o oposto daquilo que sou. Mas o oposto é a continuidade daquilo que eu sou sob uma forma diferente. Assim, o oposto, em que sempre existe esforço, é a continuidade modificada de seu próprio oposto. Não-ganância é a continuidade modificada da ganância; ela é ainda ganância, apenas com um nome diferente, porque nela o se tornar está implicado, e esse se tornar, em que o esforço está envolvido, é a causa do sofrimento. Vemos que esforço implica continuidade sob uma forma diferente. E pode o processo do pensamento, trazer um fim para o sofrimento?

Provavelmente isso é tudo um tanto abstrato e difícil, mas vamos simplificar quando eu começar a responder as perguntas sobre isso. Mas acho que teremos que deixar a abstração a nossa frente, e então, construir estruturalmente, concretamente; e faremos isso quando compreendermos o princípio deste problema do sofrimento – se o sofrimento pode ser superado pelo esforço que cria o oposto, e se o sofrimento, que é o desejo de se tornar algo aqui ou depois, pode ser eliminado pelo pensamento.

Agora, o que é pensar? Quando você diz, ‘Eu estou pensando’, o que isso significa? Você está tentando resolver o problema do sofrimento por meio do pensamento; e pode o pensamento dar um fim à dor, à ansiedade psicológica, ao medo e assim por diante? Certamente, pensar é a resposta da memória; se você não tivesse memória, não seria capaz de pensar. Memória é o resíduo da experiência, experiência que não é completamente, integralmente compreendida. Quando você compreende alguma coisa completamente, integralmente, ela não deixa marca. Só a experiência não digerida, incompleta, deixa marca, que chamamos de memória. Então, pensar é a resposta da memória; e quando você tenta resolver o problema do sofrimento pelo pensamento, pensamento sendo a resposta da memória, certamente não há solução; porque memória é a continuidade do esforço. Isso não é um quebra-cabeças resolvido com habilidade; mas se você pensar nisso, verá que três coisas estão envolvidas em seu processo de lidar com a dor: esforço, pensamento e memória. Não memorize isso – olhe isso operando em sua vida cotidiana, e você verá. Você não tem que ler livros filosóficos; mas, se você olhar para si mesmo quando há ansiedade, quando há dor, verá essas três coisas funcionando. E podem essas coisas superar, dissolver, a dor, o sofrimento? Obviamente não podem, porque o processo do pensamento é, simplesmente, o resultado da compreensão incompleta, e a mudança é, apenas, continuidade modificada, o que cria o oposto. Então, nosso problema é descobrir o que pode dar um fim ao sofrimento, o que pode provocar aquele estado de felicidade, que não é resultado de esforço obviamente. Não sei se você tentou ser feliz. Com certeza, nunca teve sucesso quando tentou ser feliz. A felicidade surge espontaneamente, sem ser convocada. Então, ela não pode ser um resultado de esforço e se buscamos felicidade nos livrando do sofrimento, então não compreenderemos. Porque esforço implica, como apontado, a criação da dualidade, dos opostos; e aquilo que é oposto ainda está dentro do campo de seu próprio oposto. Então, o que dá fim ao sofrimento? Quando você compreende o processo do pensamento, o processo do esforço, o processo da memória, quando realmente compreende, como eu expliquei, quando você está consciente desses três processos, o que acontece? Certamente, quando você está consciente de alguma coisa, não há atitude condenatória, há? Não há justificação ou identificação. Você está, simplesmente, consciente. Eu estou consciente daquele gramado, dos pássaros voando. Nessa conscientização, não há condenação, não há justificação.  Agora, se você estiver consciente do sofrimento sem os três processos funcionando tentando superá-lo, se estiver consciente sem condenação, então verá surgir uma passividade alerta, uma conscientização passiva sem nenhuma exigência. Você fica muito alerta; há parte de seu ser que está adormecida, porque você explorou, como dissemos, todo o processo de memória, pensamento, esforço e, portanto, está totalmente consciente; e nessa consciência há uma percepção, uma quietude, uma imobilidade, uma observação. Sem um preconceito, sem uma demanda; e você descobrirá que o sofrimento chega a um fim. Mas tal conscientização demanda vigilância extraordinariamente persistente para ver como a mente funciona quando existe sofrimento, para acompanhar o rápido movimento de cada pensamento e, assim, compreender todo o processo do esforço, do pensamento e da memória.

Interrogante: Você afirma que o amor é casto. Quer dizer que ele é celibato?

Krishnamurti: Agora vamos explorar este problema e ver suas implicações. Então, por favor, não fiquem na defensiva; porque, para compreender você tem que explorar, e a exploração cessa quando você fica tendencioso, quando está amarrado a uma tradição ou a uma crença. É como um animal preso a uma estaca: ele não pode ir longe, e você deve ir longe para descobrir o que é verdadeiro. Você deve ir muito profundamente para descobrir a verdade de um problema; mas, se você estiver ancorado num abrigo de crença, de tradição, ou de preconceito, então nunca descobrirá a verdade de nenhum problema. Então, por favor, ao menos nesta tarde, vamos explorar juntos sem estarmos ancorados – o que é uma árdua tarefa. Porque, quando você é preconceituoso, certamente o problema fica distorcido e, consequentemente, a resposta será distorcida também; a para encontrar a resposta, deve-se estudar o problema sem distorção, seja defensiva ou ofensiva, seja negativa ou positiva. Assim, vamos examinar o problema juntos e ver aonde ele nos leva.

Nesta pergunta está envolvida toda a complexa questão do sexo. Os mestres religiosos, os sistemas tradicionais, proibiram o intercurso sexual, dizendo que ele impede o homem de perceber aquilo que é mais elevado, que você deve ser celibatário a fim de encontrar Deus, a verdade, ou o que seja. Ora, tradicionalmente, isso é geralmente aceito. Mas, se quisermos descobrir a verdade de um problema, a tradição e a autoridade não têm significado. Ao contrário, elas se tornam um obstáculo – o que não significa que o homem deve se tornar licencioso. A verdade não é encontrada no oposto, pois o oposto é a continuidade de seu próprio oposto. A antítese é a continuação da tese sob forma diferente. Assim, para descobrir a verdade dessa questão, devemos abordá-la muito cuidadosamente, sem a inclinação da tradição, sem o medo da autoridade, e sem o prazer servil da indulgência. Devemos olhar para ela e ver seu significado completo.

Em primeiro lugar, por que o sexo se tornou um problema para a maioria de nós? Por que praticamente em todo lugar do mundo atualmente – este é um dos fatos mais extraordinários – homens e mulheres estão presos neste prazer sensorial? Por que ele se tornou um problema tão intenso e ardente? Se não compreendermos isso, o condenaremos ou cederemos a ele. Não estou dizendo que é certo ou errado, seria um modo estúpido de considerar o problema. Você deve ser celibatário porque os livros afirmam isso? Deve levar uma vida licenciosa porque outro livro afirma isso? Para refletir sobre o problema, devemos pensá-lo como novo; e para pensar nele como novo, devemos abandonar as linhas bem mapeadas do velho. Então o problema é: Por que o sexo se tornou uma questão tão ardente? Primeiro, obviamente, porque vem sendo estimulado por todos os meios possíveis na sociedade moderna; todo jornal, toda revista, o cinema e os quadros, estimulam o erotismo. O negociante usa uma mulher para atrair sua atenção, para fazê-lo comprar um par de sapatos, ou Deus sabe o quê. Assim, pela estimulação somos bombardeados com sexo o tempo todo. Isso é um fato. E a sociedade, a civilização atualmente, é essencialmente o resultado do valor sensorial. Coisas, coisas mundanas, se tornaram extraordinariamente importantes em nossas vidas; posição, riqueza, nome, se tornaram de vital significado, porque são meios de poder, meios para a chamada liberdade. Valores sensoriais se tornaram predominantemente significativos em nossas vidas, e essa é também uma das razões deste problema esmagador do sexo. No pensamento, no sentimento, vocês deixaram de ser criativos; vocês são apenas máquinas imitadoras, não? Sua religião é simplesmente hábito, seguir a autoridade, tradição e medo, copiar o livro, seguir a regra, o exemplo, o ideal. Ela se tornou uma rotina. Religião é, simplesmente, murmurar palavras, ir ao templo, ou praticar uma disciplina – que é tudo repetitivo, cópia, imitação, formar hábito. E o que acontece com sua mente e seu coração quando você é simplesmente imitador? Naturalmente, eles definham, não? A mente, que deve ser ágil, capaz de profunda penetração, profunda compreensão, foi transformada numa simples máquina, um toca-discos que imita, copia, segue. Deixou de ser uma mente, e sua religião se tornou uma questão de crença.  Portanto, emocionalmente, interiormente, não há criação, não há resposta criativa – apenas embotamento, vazio. O mesmo é verdade com o pensamento. O que é seu pensar, o que é sua existência? Uma rotina oca, vazia, não? – ganhar dinheiro, jogar cartas, ir aos cinemas, ler alguns livros baratos ou os muito, muito cultuados. Novamente, o que é isso? Não é apenas uma máquina repetitiva funcionando sem profundidade, sem pensamento, sem compaixão, sem vulnerabilidade? Como pode tal mente ser criativa? E o que acontece com sua vida? Você não é criativo, é desatento, descuidado, copia; assim, naturalmente, o único prazer que lhe resta é o sexo, que se torna sua saída; então, sendo seu único alívio, você fica preso nele, e surge a eterna questão de como sair. E seus ideais, sua disciplina, não deixarão você sair. Você pode suprimi-lo, pode se agarrar a ele, mas isso não é viver criativamente, felizmente, puramente, nobremente – é viver em medo constante. O sexo é uma das formas de auto-esquecimento; no sexo você, momentaneamente, esquece de si mesmo; e porque você vive tão superficialmente, tão imitativamente, o sexo é a única coisa que lhe resta, e ele se torna um problema. E naturalmente, quando o sexo é a única coisa que resta, não existe vida.

Nós não estamos tentando resolver o problema, estamos tentando compreendê-lo; e compreendendo-o completamente, descobriremos a resposta. Aos muito sérios problemas da vida, não há respostas categóricas, sim ou não; mas compreendendo o problema em si, descobriremos a resposta. A resposta é que o problema existirá enquanto não houver criatividade, enquanto você não estiver livre da imitação, do hábito, enquanto a mente estiver presa na simples repetição, no simples ganhar dinheiro – o que é uma existência cruel. Em simplesmente repetir, louvar e tudo o mais, não pode haver criatividade. Só existe criatividade pela liberação do pensar criativo, ser criativo, existência criativa, o que significa provocar uma revolução radical em nosso viver – não uma revolução verbal, mas uma revolução interior, uma completa transformação de nossas vidas. Só então este problema terá um diferente significado; então a vida em si terá significação diferente. Aqueles que estão tentando ser celibatários como meio de atingir a realidade, Deus – eles não são castos, são ignóbeis, pois seus corações estão secos. Certamente, sem amor, não pode haver pureza, e apenas o coração puro pode encontrar a realidade – não um coração disciplinado, não um coração reprimido, não um coração distorcido, mas um coração que sabe o que é amar. Mas você não pode amar se estiver preso no hábito, seja religioso ou físico, psicológico ou sensorial. Assim, um homem que está tentando ser celibatário não pode compreender a realidade; pois para ele o celibato é simplesmente a imitação de um exemplo; e a imitação de um ideal é simplesmente cópia, não é criativa. Mas um homem que sabe como amar, como ser gentil, como ser generoso, como se entregar a algo completamente sem pensar em si, esse homem conhece o amor; e tal amor é casto. Onde existe tal amor, o problema deixa de existir.

Interrogante: Você afirma que a crise atual é sem precedentes. De que maneira ela é excepcional?

Krishnamurti: Eu penso tudo, e vocês escutam tudo – isso é muito ruim. Senhor, existe um perigo em todos estes encontros, pois vocês se tornam a audiência e eu me torno o palestrante. É isso que vem acontecendo no mundo. Todos vocês vão ao futebol e jogos de críquete, ou ao cinema. Outros estão atuando, outros estão jogando, mas nunca vocês. Vocês se tornaram não criativos – por isso têm tantos problemas destrutivos corroendo seu coração. Então, por favor, se me permitem sugerir, não se tornem audiência aqui – isso seria muito ruim, e não teria significação. É muito fácil escutar outra pessoa falando, muito fácil ler livros que outra pessoa escreveu; mas se não houvesse livros, se não houvesse pregadores, vocês teriam que refletir sobre seus próprios problemas, e, então, seriam extremamente criativos, não? É isso que estamos tentando fazer aqui. Felizmente, eu não li livros, escrituras religiosas; mas vocês leram, e infelizmente, suas mentes estão abarrotas com as ideias de outras pessoas – e essa é sua dificuldade. Sua dificuldade é que vocês não estão pensando, ou estão pensando através de fórmulas, ideias, ditos e citações de outras pessoas. Portanto, não estão absolutamente pensando. Estas palestras não terão significado se vocês se tornarem simplesmente espectadores, ouvintes; porque descobrirão que não estou dando nenhuma resposta para nenhum problema. Isso seria muito fácil, seria muito estúpido – dizer sim ou não para qualquer questão. Mas, se pensarmos sobre o problema juntos, facilmente, sensatamente, sem estarmos ancorados a nenhum preconceito, então descobriremos a significação do problema; então haverá felicidade criativa na busca. Certamente, senhor, essa busca em si é devoção – não a uma imagem, a uma ideia, mas há devoção na própria busca do problema e de seu significado. Há alegria, há êxtase criativo, em descobrir o que é verdade; mas se simplesmente escutarmos, as palavras têm muito pouco significado. A palavra não é a coisa; para encontrar a coisa, você deve ir além da palavra.

Com certeza, a crise atual é excepcional, não? Não porque eu estou dizendo – eu direi muitas coisas, mas isso não será verdade se você, simplesmente, repetir. A propaganda é uma mentira, repetição é uma mentira. Obviamente a atual crise pelo mundo afora é excepcional, sem precedente. Tem havido crises de vários tipos em diferentes períodos na história do mundo, sociais, nacionais, políticas. As crises vão e vem; recessões econômicas, depressões acontecem, se modificam, e continuam sob forma diferente. Sabemos disso, estamos familiarizados com esse processo. Mas certamente, a crise atual é diferente, não? É diferente, primeiro, porque estamos tratando, não com dinheiro, não com coisas tangíveis, mas com ideias. A crise é excepcional porque é no campo da ideação. Estamos brigando com ideias, estamos justificando o assassinato; neste país, como em todo outro lugar do mundo, estamos justificando o assassinato como meio para um fim correto, o que em si mesmo é sem precedente. Antes, o mal era reconhecido como mal, assassinato era reconhecido como assassinato; mas agora, assassinato é um meio para se obter um resultado nobre. Assassinato, seja de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, é justificado, porque o assassino, ou o grupo que o assassino representa, o justifica como meio de obter um resultado que será benéfico ao homem. Ou seja, sacrificamos o presente pelo futuro – e não importa os meios que empregamos desde que nosso propósito declarado é produzir um resultado que será benéfico ao homem. Portanto, a implicação é que um meio errado produzirá um fim correto, e você justifica o meio errado pela ideação. Nas várias crises que aconteceram antes, a questão tem sido a exploração de coisas ou do homem; mas agora é a exploração de ideias, o que é muito mais pernicioso, muito mais perigoso, pois a exploração de ideias é muito devastadora, muito destrutiva. Nós aprendemos agora o poder da propaganda, e essa é uma das maiores calamidades que podem acontecer: usar ideias como meio de transformar o homem. Certamente é isso que está acontecendo no mundo hoje. O homem não é importante – sistemas, ideias, se tornaram importantes. O homem não tem mais qualquer significado. Podemos destruir milhões de homens desde que produzamos um resultado, e o resultado é justificado por ideias. Temos uma magnífica estrutura de ideias para justificar o mal; e, certamente, isso é sem precedente. Mal é mal, ele não pode produzir bem. A guerra não é um meio para a paz. A guerra pode gerar benefícios secundários, como aviões mais eficientes, mas não trará paz ao homem. A guerra é justificada intelectualmente como meio de trazer paz; e quando o intelecto leva vantagem sobre a vida humana, ele gera uma crise sem precedente.

Há outras causas que indicam uma crise sem precedente. Uma delas é a extraordinária importância que o homem está dando a valores sensoriais, à propriedade, ao nome, à casta e ao país, à marca particular que você veste. Ou você é maometano ou hindu, um cristão ou um comunista. Nome e propriedade, casta e país, se tornaram predominantemente importantes, o que significa que o homem está preso no valor sensorial, o valor das coisas, sejam feitas pela mente ou pela mão. Coisas feitas pela mão ou pela mente se tornaram tão importantes que estamos matando, destruindo, assassinando, liquidando uns aos outros por causa delas. Estamos nos aproximando da beira de um precipício; toda ação nos leva para lá, toda ação política, econômica está nos levando, inevitavelmente, para o precipício, nos arrastando para este abismo confuso e caótico. Então, a crise é sem precedente, e exige ação sem precedente. Para deixar, para sair dessa crise, é preciso uma ação atemporal, uma ação que não se baseie em ideia, em sistema; pois qualquer ação baseada em sistema ou em ideia, inevitavelmente, levará à frustração. Tal ação nos leva simplesmente de volta ao abismo por um caminho diferente. Assim, como a crise é sem precedente, deve haver também uma ação sem precedente, o que significa que a regeneração do indivíduo deve ser instantânea, não um processo de tempo, deve acontecer agora, não amanhã; pois amanhã é me transformar amanhã, eu convoco confusão, eu estou ainda no campo da destruição. E é possível mudar agora? É possível se transformar completamente no imediato, no agora? Eu afirmo que é. Fazer isso, transformar-se imediatamente, agora, exige certo acompanhamento próximo de tudo que venho dizendo; porque a compreensão está sempre no presente, não no futuro. Eu já falei um pouco sobre isso, e discutiremos depois, ao longo dos muitos domingos que virão.

O principal é que, como a crise é de caráter excepcional, para enfrentá-la deve haver revolução no pensar; e essa revolução não pode acontecer por meio do outro, por meio de um livro, de uma organização. Deve acontecer através de nós, de cada um de nós. Só assim podemos criar uma nova sociedade, uma nova estrutura fora deste horror, fora destas forças extraordinariamente destrutivas que vão se acumulando, empilhadas; e essa transformação só acontece quando você como indivíduo começa a ficar consciente de si mesmo em cada pensamento, ação e sentimento.

Interrogante: Não existem gurus perfeitos que nada oferecem para aquele que busca gananciosamente pela eterna segurança, mas que guie visível ou invisivelmente um coração amoroso?

Krishnamurti: Esta pergunta, se a pessoa precisa de um guru, é colocada vezes e vezes sob diferentes formas. Senhores, a grande maioria de vocês tem gurus – essa é uma das coisas mais extraordinárias aqui. Então, ao menos esta tarde, os deixem de lado e vamos investigar o problema. O interrogante pergunta: ‘Um coração amoroso precisa de guia?’ Compreendem? Certamente um coração amoroso não precisa de guia, pois o próprio amor é o real, o eterno. Um coração amoroso é generoso, gentil, sem reservas, nada retendo, e tal coração conhece o real; ele conhece aquilo que não tem começo nem fim. Mas a maior parte de nós não tem tal coração. Nossos corações estão secos, vazios, fazendo muito barulho. Nossos corações estão cheios das coisas da mente. E como nossos corações estão vazios, procuramos o outro para preenchê-los. Vamos em busca do outro procurando aquela segurança eterna que chamamos Deus; vamos em busca do outro para encontrarmos aquela gratificação permanente que chamamos realidade. Porque nossos próprios corações estão secos, buscamos um guru que os preencha. Pode alguém, seja visível ou invisível, preencher seu coração? Seus gurus lhes dão disciplinas, práticas; eles não lhes dizem como pensar, mas antes, o que pensar. E o que acontece? Você pratica, medita, se disciplina, se adapta, e, no entanto seu coração permanece embrutecido, vazio e sem amor; você se disciplina e tiraniza sua família. Você pensa que meditando, se disciplinando, conhecerá o amor? Senhor, sem amor, você não pode encontrar a realidade, pode? Sem ser afetuoso, gentil, atencioso, como pode conhecer o real? E pode alguém lhe ensinar como amar? Certamente, o amor não é uma técnica. Pela técnica, você não pode conhecê-lo? Você conhecerá qualquer coisa, mas não o amor. Assim, você não pode conhecer a realidade por meio de nenhuma disciplina, nenhuma prática, nenhum conformismo; porque, conformismo, disciplina, prática, é repetição, que embrutece a mente, congela o coração – e é isso que você quer. Você quer tornar sua mente embrutecida, pois sua mente é inquieta, errante, ativa, lutando incessantemente e, não compreendendo essa mente inquieta, você quer sufocá-la, quer discipliná-la segundo seu padrão, quer forçá-la segundo um conjunto de regras e regulamentos e, desse modo você estrangula a mente, torna a mente totalmente embrutecida. É isso que está acontecendo, não? Olhe para sua mente: como ela é embrutecida, insensível, porque você foi atrás dos gurus por tanto tempo. Isso se tornou um hábito, uma rotina, sair de um guru para outro. Cada guru lhe diz para fazer alguma coisa, e você faz até considerar que não é satisfatório, e você vai em busca de outro, exaurindo sua mente com este uso constante; pois aquilo que é usado constantemente se desgasta. O que você está realmente buscando em um guru não é compreensão, mas gratificação, segurança permanente, que você chama de eterno, Deus, o real, verdade, ou o que quiser. E desde que você busca gratificação, encontrará um guru que vai gratificá-lo; mas, certamente, isso não é compreensão, não traz felicidade, não traz amor. Ao contrário, destrói o amor. O amor é uma coisa nova, eterna de momento a momento. Ele nunca é a mesma coisa, nunca como era antes; e sem seu perfume, sem sua beleza e sua bondade, procurar através de um guru por aquilo que você deve encontrar por si mesmo é completamente inútil. Então, nosso problema não é se um guru visível ou invisível nos ajudará, mas como gerar este estado de ser em que conhecemos o que é o amor. Porque amor é virtude, e virtude não é uma prática; mas a virtude traz liberdade. E só quando existe liberdade o eterno pode surgir

Então, nossa pergunta é, como é possível para uma mente embrutecida, um coração vazio, chegar ao amor, ser sensível, conhecer a beleza, a riqueza do amor? Primeiro, você deve estar consciente de que sua mente é embrutecida, de que seu processo de pensamento não tem significação. Deve estar consciente de que seu coração está vazio sem encontrar desculpas para isso, sem justificá-lo ou condená-lo. Apenas estar consciente, tentem, senhores. Estejam conscientes e vejam se sua mente não está embrutecida, se seu coração não está vazio; embora você seja casado, tenha filhos e posses, ele não está vazio? Você não está vazio? Sua mente é embrutecida, embora você conheça todos os livros religiosos; embora sua mente seja uma enciclopédia, cheia de informação, ela é estúpida, está cansada, exausta. Apenas fique consciente, fique passivamente consciente sem condenar, sem justificar; esteja aberto para descobrir quanto estúpida, quanto cansada sua mente está e também que seu coração está vazio, solitário e dolorido. Não estou lhe hipnotizando – apenas esteja consciente de tudo isso e você verá, se estiver passivamente consciente, que surge uma transformação, uma resposta extraordinariamente ligeira; e nessa resposta, você conhecerá o que é amar. Nessa resposta, existe imobilidade, existe calma; e nessa calma você encontrará o indescritível, o indizível.

15 de favereiro de 1958.