3ª palestra em Bombay

Não é importante, o tempo todo, não apenas durante estes dias críticos, pensar muito claramente e conhecer nossos sentimentos bem intimamente? Obviamente, não estamos separados da crise; o que quer que aconteça a uma nação, a um grupo de pessoas, está acontecendo realmente com cada um de nós individualmente; e desde que estamos tão intimamente conectados, devemos ficar totalmente cientes e deliberadamente conscientes de nossos pensamentos e sentimentos. Porque, se formos influenciados, se tomarmos partido, se formos persuadidos por eventos e não estivermos conscientes das causas dos eventos, então seremos simplesmente levados pelos eventos; e como eventos, locais e mundiais, estão ocorrendo com extraordinária rapidez, e como o impacto deles é muito forte e violento, certamente isso nos leva a sermos extremamente claros em nossos pensamentos, e muito básicos em nossos sentimentos. Porque quanto mais forte o evento, quanto maior a confusão exterior, mais intenso o tumulto e o caos dentro de nós. Eventos externos, sendo tão próximos de nós, devem, naturalmente, desnortear e perturbar muitas pessoas; e acho que isso é certo, – não? – ter sentimentos muito fortes, emoções diretas, sem distorções e intencionais, pois sem nenhum sentimento, a pessoa está morta. Simples palavreado intelectual não tem significação em momentos de grande importância; e existe o perigo de traduzir grandes eventos intelectualmente e superficialmente, e deixá-los passar. Por outro lado, se formos capazes de acompanhar bem de perto e muito claramente as causas psicológicas da perturbação e mantivermos atenção emocional sem a interferência do intelecto, então, talvez, sejamos capazes de perceber a significação das questões. Não estou, simplesmente, lançando palavras para vocês ouvirem, mas antes, discutindo juntos, como estamos fazendo agora, talvez sejamos capazes de esclarecer o estado confuso de nossa própria mente e emoções.

Então, como vou responder a perguntas esta tarde, espero que vocês acompanhem não apenas verbalmente ou intelectualmente, pois isso tem bem pouca significação; mas antes acompanhem o que está sendo dito como se estivesse realmente acontecendo. Porque, certamente, a responsabilidade por qualquer crise não está com o outro – está em você e em mim como indivíduos; e para compreender qualquer crise, como a atual que se localiza na Índia, precisamos abordá-la muito diligentemente, com intensidade, com esclarecimento, com a intenção de entrar nela muito completamente, e ver toda a sua significação, todas as suas profundezas. Como eu disse, vou responder perguntas esta tarde; e as respostas têm pouco significado se vocês estiverem meramente esperando por uma resposta; mas se analisarmos, ponderarmos o problema juntos – não meramente vocês ouvindo e eu explicando – se entrarmos nisso juntos, então talvez, este próprio processo de pensamento criará uma compreensão, uma revelação.

Interrogante: Quais as verdadeiras causas da morte precoce de Mahatma Gandhi?

Krishnamurti: Pergunto-me qual foi sua reação ao ouvir as notícias. Qual foi sua resposta? Você se afligiu como se fosse uma perda pessoal, ou como uma indicação da tendência dos eventos mundiais? Se foi sentido meramente como uma perda pessoal identificada, então você tem que analisar este sentimento muito cuidadosamente, muito inteligentemente, muito objetivamente; e se foi visto como uma indicação da tendência de eventos na crise mundial, isso também tem que ser rigorosamente acompanhado. Então, devemos descobrir como abordamos esse problema, se como uma perda pessoal, ou como indicação de toda a catástrofe que vem ocorrendo no mundo. Agora, se for uma perda pessoal identificada, então tem uma significação bem diferente. Existe em todos nós a tendência de nos identificarmos com alguma coisa maior, seja uma nação, uma pessoa, uma ideia, uma imagem, um pensamento, ou uma consciência superior; porque é muito mais satisfatório estar identificado com um grupo, com uma nação, ou com uma pessoa representando uma nação – Hitler ou Stalin de um lado, e Gandhiji do outro, e assim por diante.

Então, existe identificação com algo maior; e quando alguma coisa acontece com essa pessoa, ou essa ideia, ou esse grupo ou nação, há um abalo nessa reação. Você está sentindo isso, senhor? O desejo de nos identificarmos com alguma coisa é óbvio, não? Porque em si mesma a pessoa é nada, vazia, superficial, pequena; e identificando-se com um país, com um líder, com um grupo, ela se torna alguma coisa, ela é uma coisa. Nessa própria identificação está o perigo; pois se você estiver consciente disso, verá que leva às mais extraordinárias barbáries na história, na nossa vida cotidiana. Ou seja, se você se identifica com um país, com uma comunidade, com um grupo de pessoas, com uma ideia, com o espírito comunal, então, certamente, você é responsável por qualquer calamidade que aconteça; pois, se você for meramente um instrumento que se identifica com alguma causa ou pessoa, então você será usado, e a calamidade, a crise, a catástrofe, é criada por essa própria identificação.

Então, este é um dos lados do problema; e a pergunta deveria ser realmente, quais são as causas contribuintes que eu criei para gerar este incidente, esta miséria, esta catástrofe? Certamente essa é a verdadeira pergunta, não? Porque nós somos, individualmente, responsáveis por tudo que está acontecendo no mundo atualmente. Os eventos mundiais não são incidentes sem relação; eles se relacionam. A verdadeira causa da morte prematura de Gandhiji está em você. A causa verdadeira é você. Porque você é comunal, você encoraja o espírito de divisão através da propriedade, através da casta, da ideologia, por ter religiões diferentes, seitas, líderes. Assim, obviamente, você é responsável, não? E não adianta enforcar apenas um homem – todos vocês contribuíram para esta morte. A pergunta é, de que modo você contribuiu para ela? Estou, intencionalmente, me excluindo disso, porque não sou comunal, eu não sou hindu ou indiano, não sou nacionalista ou internacionalista. Portanto, estou me excluindo disso, não porque sou superior, mas porque não penso nestes termos de fato – de pertencer a um grupo ou a uma religião, de ter propriedade que seja ‘minha’. Estou, deliberadamente, conscientemente me excluindo – por favor, compreenda que não é porque me sinto superior aos outros. A identificação com um grupo, com uma nação, com uma comunidade, com propriedade, leva à miséria, não? Tal identificação leva à assassinatos, à desastres, ao caos, e você é responsável por isso, pois você acredita em hinduísmo com suas muitas facetas diferentes, o que é absurdo. Você é hindu, ou parsi, ou budista, ou muçulmano – você sabe, toda a podridão da divisão identificada, do isolamento. Assim, desde que você se identificou com um grupo, você é responsável, não? Você é a verdadeira causa deste assassinato. Não estou sendo dramático, o que seria muito absurdo; mas esse é o fato, não? Então, a verdadeira causa é você – não alguma causa misteriosa, desconhecida. Quando uma chamada nação é formada de grupos separados, cada um buscando poder, posição, autoridade, riqueza, você está fadado a produzir, não a morte de um homem, mas milhares e milhões de mortes – isso é inevitável.

Então, a questão fundamental é, realmente, se os seres humanos podem existir em isolamento identificado; e a história vem mostrando vezes e vezes que isso é a destruição do homem. Quando você chama a si mesmo hindu, muçulmano, parsi, ou Deus sabe o que mais, isso está fadado a provocar conflito no mundo. Se você observar a chamada religião, religião organizada, verá que ela se baseia, essencialmente, em isolamento, separatismo: o cristão, o hindu, o muçulmano, o budista; e quando você adora uma imagem ou nenhuma imagem, quando impede alguém de entrar em seus templos – como se a realidade estivesse no templo! – certamente você é responsável pelo conflito e violência, não? Por favor, não estou enrolando, não estou interessado em convencê-lo; mais nós dois estamos interessados em descobrir a verdade sobre o assunto. Então, isso não é apenas uma arenga política, o que não tem realmente valor. Para descobrir a verdade, para ver que somos responsáveis por aquilo que acontece, devemos pensar muito rigorosamente, diretamente. Quando você tem uma religião a que pertence, uma religião organizada, esse próprio fato cria conflito entre homem e homem; e quando a religião se torna mais forte que o afeto, mais forte que amor, quando a crença é mais importante que a humanidade e toda sua maquiagem é a da crença – seja crença em Deus ou numa ideologia, no comunalismo ou no nacionalismo – obviamente você é a própria causa da destruição. Não sei se você sente a extraordinária importância de tudo isso – ou pondera muito claramente e não se esconde atrás de palavras.

E existe o fato óbvio da divisão através da propriedade, do sentido de aquisição. A propriedade em si tem muito pouco significado: você pode dormir num único cômodo, numa cama; mas o desejo de posição, o impulso para adquirir, se sentir seguro quando todos a sua volta estão inseguros – certamente esta sensação de aquisição, esta sensação de propriedade, esta sensação de posse, é uma das causas da apavorante miséria no mundo. Não é que você deva abrir mão da propriedade, mas vamos ficar conscientes de sua significação, de sua intenção em ação; e quando se está consciente, naturalmente se abre mão de todas essas coisas. Não é difícil renunciar, não é uma luta abrir mão da propriedade, quando você vê diretamente que sua relação com a propriedade leva à miséria, não de uma pessoa, mas de milhões; e que você está lutando pela propriedade.

Estas não são apenas palavras, se você analisá-las – propriedade e crença, realmente, são as duas principais causas de conflito. A propriedade como meio de engrandecimento pessoal, propriedade como meio de permanente autocontinuidade, lhe dá poder, prestígio. Sem propriedade você nada é, obviamente; assim, a propriedade se torna extraordinariamente importante, por ela você fica preparado para matar, lesar, destruir pessoas. Do mesmo modo, com as religiões organizadas e ideologias políticas, implicando crenças. A crença se torna muito importante, pois, sem crença, onde está você? Sem se reconhecer por um nome comunal, isolador, onde está você? Está perdido, não? Então, porque você sente a ameaça a si mesmo, você se identifica com propriedade, com crença, com ideologias e assim por diante, o que, inevitavelmente, gera destruição. De quantas formas diferentes vocês tentam se isolar dos outros! Esse isolamento é a causa verdadeira de conflito e violência. Então, vocês são responsáveis, senhores – e senhoras, com seus belos sáris, e saias da moda.

Este evento também tem uma significação mundial. Nós justificamos e aceitamos o mal como meio para o bem. A guerra é justificada porque dizemos que ela vai nos trazer paz o que, obviamente, é usar um meio errado para produzir um fim correto. Mas a tendência do mundo é nesta direção; grupos de pessoas, nações inteiras, estão se preparando para a destruição derradeira – como se fossem ser pacificadas ao final. Esse evento é, realmente, uma indicação da tendência dos seres humanos de sacrificarem o presente pelo futuro. Nós vamos criar um mundo maravilhoso, mas nesse meio tempo vamos massacrar você; vamos liquidá-lo em nome do futuro. Você não importa; o que importa é a ideia, o futuro – o que quer que isso possa significar. Afinal, o futuro, seja para a esquerda ou para a direita, é tão incerto para mim como para você; o futuro é mutável, possível de ser modificado, e estamos sacrificando o presente por um futuro desconhecido. Essa é a maior forma de ilusão, não? Mas essa é uma das tendências do mundo – e é isso que está acontecendo agora. Ou seja, temos um futuro ideológico pelo qual os seres humanos são sacrificados; para salvar o homem estamos matando o homem. E estamos presos nisso – vocês estão presos nisso. Vocês querem segurança futura, e estão destruindo a segurança presente. Certamente a compreensão está no presente e não no futuro. A compreensão é hoje não amanhã.

Agora, essas duas tendências que prevalecem no mundo atualmente, indicam completa ausência de amor – não um amor misterioso do Supremo e toda esta sujeira, mas o amor comum entre dois seres humanos. Sabe, notamos quando viajamos pelo mundo uma completa ausência de amor nos seres humanos. Há muitas sensações, sexual, intelectual ou sensações ambientais, mas verdadeira afeição por alguém, amar alguém com todo o seu ser – isso não existe, pela razão óbvia que você cultivou o intelecto. Você é maravilhoso em passar nos exames, detalhar teorias, especular no mercado, ganhar dinheiro – que são todas indicações da supremacia do intelecto. E quando o intelecto se torna supremo, você está fadado a ter desastre, pois o coração está vazio, então você o preenche com palavras e as fabricações do intelecto. É isso que notamos de maneira extraordinária no mundo atualmente. Você não está cheio de teorias, de esquerda ou de direita, sobre como resolver o problema do mundo? Mas seu coração está vazio, não? E certamente o problema é muito simples, se você olhar para ele de fato. Enquanto você estiver identificado com propriedade, nome, casta, com um governo particular, comunidade, ideologia, crença, está fadado a criar destruição e miséria no mundo. Assim, é você a verdadeira causa do assassinato, foi você que produziu esta morte do homem pelo homem. Você aceita a matança organizada em grande escala como meio justo durante a guerra, mas quando ela é feita a uma pessoa, fica horrorizado. Não é verdade, senhor, que você como indivíduo perdeu toda a sensibilidade, todo o sentido dos valores reais e da significação da existência? Para compreender esta questão, temos que nos transformar radicalmente, porque é isso que é necessário para revolucionar completamente nossas formas de pensar e sentir e agir. Você quer produzir uma revolução na ação simplesmente, o que não tem significação de fato; porque sem uma revolução em você e em seu sentimento, você não pode produzir uma revolução na ação; você não pode produzir uma revolução exceto individualmente. Já que você é responsável, já que você é a causa deste assassinato, e para evitar futuros assassinatos, você mesmo tem que mudar radicalmente – não? – e não falar sobre deuses e carma e reencarnação; você tem que estar realmente consciente do que está acontecendo dentro de você. E como é extremamente difícil e árduo estar consciente, você detalha teorias, foge através de propriedade, nome e família e todos os absurdos que provocam destruição. Então, como você é responsável por este assassinato, e por assassinatos passados e futuros, de uma pessoa ou de milhões, você tem que mudar. Você deve ser transformado, não começando lá longe, mas começando bem perto, observando os caminhos de seu pensar e sentir e agir todo dia. Certamente, se você estiver interessado, se for sério, esse é o único caminho para produzir transformação, não? Mas se você estiver emocionalmente excitado pelos eventos, se foi embotado por discursos políticos durante muitos anos, naturalmente sentirá pouca resposta. Mas, goste ou não, você é responsável pelas misérias externas, pois em si mesmo você é miserável, confuso, ansioso, sem amor,

Interrogante: A terceira guerra é inevitável?

Krishnamurti: Não existe tal coisa como inevitabilidade, existe? Um país, estando ciente de sua própria fraqueza, de sua própria força, pode dizer, ‘Não, nós não vamos lutar’. É uma das tendências da esquerda empurrar quando não há muita pressão, e ceder quando a pressão é muito grande; assim você pode sempre recuar e esperar e se organizar. Não existe inevitabilidade em relação à guerra, mas parece assim, porque os assuntos envolvidos são muito vastos. Ideologias estão em guerra, a direita e a esquerda. Existe a ideologia que afirma que a matéria se movimenta por si mesma, e a ideologia que afirma que a matéria é movimentada, atua sob a ideia divina. De um lado existe a ideia de Deus agindo sobre a matéria, e no outro, a ideia de que a matéria em si está em movimento e produzindo circunstâncias externas e, assim, o controle rígido do ambiente é importante. Eu não estou discutindo ideologias, sejam elas certas ou erradas. Entraremos nessa questão em outro domingo. Mas essas duas ideias são diametralmente opostas – pelo menos, elas consideram que são opostas. E isso traz um problema muito complexo; se a esquerda não se baseia na direita, não é uma continuação da direita; se todo oposto não é a continuação de seu próprio oposto. Mas se cada partido forte está determinado a ter posição, poder, naturalmente ele vai destruir o homem, preso no meio; e é isso que está acontecendo neste país, em sua própria família. Quando você domina sua esposa ou seu marido, quando você é possessivo, quando você se prende ao poder num pequeno círculo, não está contribuindo para o caos mundial? Quando a crença no nacionalismo o domina. Quando seu país se torna de suprema importância – o que está acontecendo em toda nação – então uma catástrofe de grande destruição não é inevitável? Certamente, senhor, a própria existência de um exército é uma indicação de guerra. A função do general é preparar para a guerra; e quando você desenvolveu uma arma como a bomba atômica, onde vai experimentá-la? Então, novamente, a guerra está diretamente relacionada conosco. Se você for nacionalista, está contribuindo para a guerra. Se você se enclausurou na propriedade, está contribuindo para a guerra. Se nacionalismo, comunalismo, se seu próprio país ou seu próprio grupo se torna a coisa mais importante, obviamente você está contribuindo para a guerra. Nossa própria existência diária produz guerra porque não temos absolutamente paz. Certamente, se deve haver paz no mundo, você mesmo tem que ser pacífico. Se eu quiser ser pacífico com você, devo ser adaptável, devo ter consideração, não devo ser dominador; mas se nem eu nem você formos adaptáveis, se insistirmos em dominar, isso está fadado a produzir catástrofe.

Uma senhora americana veio me ver alguns anos atrás, durante a guerra. Ela disse que havia perdido seu filho na Itália, e que tinha outro filho que queria salvar; então discutimos e falamos sobre isso. Sugeri a ela que, para salvar seu filho, ela tinha que deixar de ser americana; tinha que deixar de ser gananciosa, deixar de acumular riqueza, buscar poder, dominação, e ser moralmente simples – não meramente simples nas roupas, nas coisas exteriores, mas simples em seus pensamentos e sentimentos, em suas relações. Ela disse ”Isso é demais. Você está pedindo muito: não posso fazer isso, pois, as circunstâncias são muito poderosas para eu alterá-las”. Portanto, ela era responsável pela destruição de seu filho. As circunstâncias podem ser controladas por nós, porque criamos as circunstâncias. A sociedade é o produto da relação, da sua e da minha juntas. Se mudarmos em nossa relação, a sociedade muda; mas simplesmente confiar na legislação, na compulsão, para a transformação da sociedade exterior enquanto permanecemos interiormente corruptos, enquanto continuamos internamente buscando poder, posição, dominação, é destruir o exterior, por mais cuidadoso e cientificamente construído. Aquilo que está dentro sempre domina o exterior.

Então, novamente, senhor, a inevitabilidade ou cessação da guerra depende de nós, de você e de mim. Certamente podemos mudar, não? Podemos nos transformar – não é difícil se colocamos nossas mentes e corações nisso. Mas somos muito preguiçosos, deixamos isso para o outro companheiro; queremos caminhos fáceis, pensamentos tranqüilos, segurança interior. Desejando segurança interior, procuramos em coisas externas, na propriedade, na crença, em templos, igrejas e mesquitas. Quando você busca segurança interior, cria insegurança. Pelo próprio desejo de estar psicologicamente seguro, você cria destruição. Isso é óbvio – se repete na história vezes e vezes novamente. A segurança exterior é essencial – alimento, roupa e abrigo. Mas o homem quer estar seguro psicologicamente; então ele usa alimento, roupa, abrigo, e ideias, como meio de segurança psicológica – e assim, traz destruição. Então, novamente, cabe a você e a mim impedir o que parece inevitável. As guerras serão inevitáveis enquanto os seres humanos individuais estiverem em conflito uns com os outros, o que é uma indicação de que estão em conflito dentro deles mesmos. Nós queremos transformação por meio de legislação, da revolução externa, dos sistemas, mas, contudo, ficamos internamente inalterados. Interiormente somos perturbados, somos confusos; e sem trazer ordem, paz e alegria internamente, não podemos ter paz e alegria externamente no mundo.

Pergunta: Podemos perceber imediatamente a verdade de que você fala sem nenhuma preparação prévia?

Krishnamurti: O que você quer dizer com verdade? Não vamos usar uma palavra da qual não conhecemos o significado; mas podemos usar uma palavra mais simples, mais direta. Você pode entender, pode compreender um problema diretamente? É isso que está implicado, não? Você pode compreender o que é imediatamente, agora? Porque compreendendo o que é, você compreenderá a significação de verdade; mas dizer que se deve compreender a verdade, tem muito pouco significado. Então, você pode compreender um problema diretamente, integralmente, e se libertar dele? É isso que está implicado nesta pergunta, não? Você pode compreender uma crise, um desafio, imediatamente, ver toda a sua significação e se libertar dela? Porque, o que você compreende não deixa marcas; assim, compreender, ou verdade, é o que liberta. E você pode se libertar agora de um problema, de um desafio? A vida é – não é? – uma série de desafios e respostas; e se sua resposta a um desafio for condicionada, limitada, incompleta, então esse desafio deixa sua marca, seu resíduo, que será fortalecido por outro novo desafio. Então, há constante memória residual, acumulações, cicatrizes; e com todas essas cicatrizes, você tenta encontrar o novo, e nunca encontra o novo. E você nunca compreende, nunca há libertação de nenhum desafio. Espero estar sendo claro.

Então, o problema, a questão é, se posso compreender um desafio completamente, diretamente, sentir toda a sua significação, todo o seu perfume, sua profundeza, sua beleza e sua feiúra e, assim, ficar livre disso. Senhor, o desafio é sempre novo, não? O problema é sempre novo, não? O problema é sempre novo – uma pergunta assim é sempre nova. Não sei se você compreende isso. Um problema que você teve ontem, por exemplo, passou por tal modificação que quando você o encontra hoje, ele já é novo. Mas você o encontra com o antigo, porque o encontra sem transformar, sem modificar seus próprios pensamentos.

Deixe-me apresentar de forma diferente. Eu o encontrei ontem. Nesse meio tempo, você mudou. Você passou por uma modificação, mas eu ainda tenho sua imagem de ontem. Então, eu encontro você hoje com minha imagem de você e, por isso, não compreendo você – só compreendo a imagem de você, que adquiri ontem. Senhor, se quero compreender você que está mudado, modificado, devo remover, devo me livrar da imagem de ontem. Ou seja, para compreender um desafio, que é sempre novo, também devo encontrá-lo novo, não deve haver resíduo de ontem; assim, devo dizer ‘adieu’ a ontem. Afinal, o que é vida? É uma coisa nova o tempo todo, não? É uma coisa que está sempre passando por mudança, criando um novo sentimento. Hoje nunca é o mesmo que ontem, e essa é a beleza da vida. Então, posso eu, pode você encontrar qualquer problema como novo? Pode você, quando chega em casa, encontrar sua esposa e seu filho como novo, encontrar o desafio como novo? Você não será capaz de fazê-lo se estiver carregado com as memórias de ontem. Portanto, para compreender a verdade de um problema, de uma relação, você deve chegar a ele renovado – não com uma ‘mente aberta’, pois isso não tem significado. Você deve chegar nele sem as cicatrizes das memórias de ontem – o que significa, conforme cada desafio surge, estar consciente de todas as respostas de ontem; e estando consciente do resíduo de ontem, memórias, você descobrirá que elas se desfizeram sem luta e, assim, sua mente está renovada.

Então, pode-se perceber a verdade imediatamente, sem preparação? Eu digo que sim – não a partir de alguma fantasia minha, não a partir de alguma ilusão; mas experimente psicologicamente com isso, e você verá. Tome qualquer desafio, qualquer pequeno incidente – não espere alguma grande crise – e veja como você responde. Esteja consciente dele, de sua resposta, de suas intenções, de suas atitudes, e você irá compreendê-las, compreenderá sua bagagem. Eu lhe asseguro, você pode fazer isso imediatamente se der toda sua atenção. Ou seja, se você estiver em busca do completo significado de sua bagagem, isso desvenda sua significação; e, então, você descobre a verdade num golpe, a compreensão do problema. Certamente a compreensão surge no agora, o presente, que é sempre eterno. Embora possa ser amanhã, é ainda agora; e, simplesmente, adiar, preparar para receber aquilo que é amanhã, é impedir-se de compreender o que é agora. Certamente, você pode compreender diretamente o que é agora, não? Mas para compreender o que é, você deve estar inalterado, sem distração, você deve dar sua mente e coração a isso. Esse deve ser seu único interesse neste momento, completamente. Então o que é lhe oferece sua total profundidade, seu total significado; e, assim, você fica livre daquele problema.

Senhor, se você quiser conhecer a verdade, a significação, o significado psicológico da propriedade, se quiser realmente compreendê-la diretamente, agora, como vai abordá-la? Certamente deve se sentir próximo ao problema, não deve ter medo dele, não deve ter nenhum credo, nenhuma resposta entre você e o problema. Só quando está diretamente relacionado com o problema, você descobrirá a resposta. Mas se você interpuser uma resposta, se julgar, tiver uma indisposição psicológica, então você adiará, vai se preparar para compreender amanhã aquilo que está sempre ali. Assim, você nunca compreenderá. Então, para perceber a verdade não é preciso preparação; preparação implica tempo, e tempo não é o meio para compreender a verdade. Tempo é continuidade, e a verdade é atemporal, não é contínua. A compreensão não é contínua, ela acontece de momento a momento, é não-residual.

Receio estar tornando tudo isso muito difícil, não? É fácil, simples de compreender, se você experimentar; mas se você entrar por um sonho, meditar sobre isso, se torna muito difícil. Certamente, se não houver barreira entre você e mim, eu o compreendo. Se eu estiver aberto a você, eu o compreendo diretamente – e estar aberto não é uma questão de tempo. O tempo me fará aberto? Preparação, sistema, disciplina, me abrem para você? Não, senhor. O que me fará aberto a você é minha intenção de estar aberto, eu quero estar aberto porque não tenho nada a esconder, não tenho medo; portanto estou aberto, e, portanto há comunhão instantânea, há verdade. Para receber a verdade, conhecer sua beleza, conhecer sua alegria, deve haver receptividade instantânea, desanuviada de teorias, medos e respostas.

São sete e quinze. Devo continuar? Sim?

Interrogante: Gandhiji continua a existir hoje?

Krishnamurti: Você quer mesmo saber? Sim? O que está implicado nesta pergunta? Se ele continua a viver, então você também continuará a viver; então, você quer conhecer a verdade da continuidade. Se eu morrer, continuarei? Terei um ser, ou serei completamente destruído? Agora, senhores, provavelmente a maioria de vocês crê em reencarnação, em continuidade. Assim, sua crença os impede de descobrir a verdade desta questão. Compreendem? Eis aqui um desafio. Vamos experimentar com o que eu disse em resposta à pergunta anterior. Vamos experimentar, descobrir a verdade deste assunto – diretamente, não amanhã. Para compreender diretamente, você deve deixar de lado sua crença em reencarnação, não? Você não sabe, é só uma crença. Mesmo que você possa pensar que tem prova da continuidade, ela está ainda no campo do pensamento. A mente pode se iludir e fabricar o que quiser. Então, queremos descobrir a verdade deste desafio, e para descobrir sua verdade, devemos chegar a ele novos, com uma nova mente; porque, para compreender agora, não amanhã, é necessária uma nova mente, uma mente fresca.

Ora, a fim de descobrir a verdade, devo descobrir o que impede a mente de ser fresca. Não estou respondendo se Gandhiji vive ou não – chegaremos nisso mais tarde. Mas para compreender, deve haver frescor. Então, vou descobrir se minha mente está obscurecida. Como estou cheio de ansiedade, cheio de esperança, cheio do desejo de continuidade, obviamente estou obscurecido; portanto, não posso compreender o novo desafio, ‘Existe continuidade?’. Para compreender isso agora, imediatamente, devo compreender os vários bloqueios que estão impedindo a mente de estar fresca, nova, de modo que receba o novo. Agora, o que é continuidade? Vocês estão interessados nisso tudo, senhores, ou estão apenas escutando? Por ora, esqueçam que estão apenas escutando, e experimentem comigo enquanto sigo, estou pensando alto com vocês sobre este problema. É problema de vocês bem como meu – só estou dando expressão a ele. É problema de vocês, então acompanhem, experimentem passo a passo.

Agora, o que nós chamamos de continuidade? O que é isso que continua? Uma ou duas coisas. Ou é uma entidade espiritual e, portanto, está fora do tempo, ou é apenas memória, se concedendo continuidade através do resíduo da experiência. Entendem? Estou sendo claro? Ou seja, se sou uma entidade espiritual, então sou eterna; assim, não há continuidade. Pois isso que é espiritualidade, verdade, religiosidade, está fora do tempo; portanto não é a continuidade que conhecemos como amanhã e o futuro. Entendem? Se o que sou é uma entidade espiritual, deve ser sem continuidade, não pode progredir, não pode crescer, não pode se tornar; mas de fato, o que eu sou pensa que deve se tornar, isto é, estou pensando em termos de se tornar. Então não sou uma entidade espiritual. Porque se sou uma entidade espiritual, não vou me tornar; então morte e vida são uma coisa única, existe atemporalidade, existe eternidade. Mas você está pensando em termos de se tornar, então está preso no tempo. Não vão dormir com isso – estamos experimentando juntos.

Então, se você for uma entidade espiritual, não precisa se preocupar com isso, e você não precisa descobrir se existe continuidade ou não. Está acabado – há imortalidade. Mas você não é assim; você está amedrontado, e por isso quer saber se existe continuidade. Então, você está com uma coisa só, que é memória. Entendem, senhores? Vocês não podem fazer esse jogo de palavras com as duas. Se você é uma entidade espiritual, então não está preocupado com morte, continuidade, tempo; pois aquilo que é espiritual, é eterno, imortal. Mas você não está nesse estado de ser. Você está no estado de se tornar, no estado da continuidade, querendo saber se existe continuidade ou não. Essa própria pergunta indica que você não está no outro estado de ser – então podemos deixar isso de lado. Assim, o que é isso que continua? O que continua na sua vida diária? Obviamente, não a entidade espiritual. É sua memória identificada com propriedade, nome, relações e ideias, não? Se você não tivesse memória, a propriedade não teria significado. Se você não tivesse memória do ontem, a propriedade não teria qualquer valor, nem a relação teria, nem as ideias teriam. Você está em busca de continuidade e a estabelece pela propriedade, pela família, pela ideia, que é o ‘Eu’, e quer saber se o ‘Eu’ continua. Agora, quando fala do ‘Eu’, o que ele é? É nome, qualidades, ideias, sua conta no banco, sua posição, caráter, concepção – que é tudo memória, não? Senhor, não estou lhe forçando a aceitar nada. Estou afirmando o que de fato é, não tratando de teorias ou especulações.  Estamos experimentando para ver se podemos descobrir a verdade da questão e ficamos livres do problema da continuidade.

Então, o que causa continuidade? Obviamente, a memória. Como surge a memória? Muito simplesmente: há percepção, contato, sensação desejo, e identificação. Eu percebo um carro, há percepção de um carro, e há contato, e sensação, e o desejo de possuí-lo, e, então, ele é ‘meu’. Assim, o ‘Eu’ é o resíduo da memória; por mais que seja dividido, como o ego mais elevado, e o mais baixo, ainda está no campo da memória – o que é óbvio, aceite você ou não. Quando você pensa em Deus, está ainda no campo da memória. Quando fala do ego mais elevado, quando fala sobre Brahman, ainda está dentro do campo da memória; e memória é compreensão incompleta. Ou seja, você não percebeu que quando compreende uma coisa, ela não deixa cicatriz de memória? Por isso amor não é memória. Amor é um estado de ser, não é uma continuidade. Ele se torna continuidade apenas quando não existe amor. Então, não há continuidade se não houver memória. Ou seja, o pensamento identificado deve continuar; mas se não houver identificação, não há continuidade, e a memória é a própria base da identificação. Pela continuidade, há renovação? Compreende? O ‘Eu’ continua de memória em memória – a memória de minhas conquistas, minhas faculdades, minhas propriedades, minha família, minha concepção, meus pensamentos e assim por diante. Tudo isso é o ‘Eu’, o ego, seja um ego elevado ou um inferior. Isso é o ‘Eu’. Agora, esta continuidade vai trazer renovação, um renascimento, frescor, novidade? A continuidade trará a compreensão da verdade? Certamente não. Aquilo que continua não tem renovação, não tem frescor, novidade, porque, simplesmente, está continuando sob forma modificada aquilo que foi ontem. É memória, e memória não é um processo de renovação. Não existe renovação através da memória, através da continuidade – só existe renovação quando há um fim, há frescor apenas quando há morte, quando a ideia cessa. Então todo dia há renovação. Quando ‘Eu’ cesso de existir a cada dia, a cada minuto, há renovação. Onde existe continuidade, não há renovação; e é por continuidade que todos nós ansiamos. Esta pergunta sobre se Gandhiji continua significa realmente, ‘Eu continuo?’ – ‘Eu’, identificado com ele. Você continuará, obviamente, enquanto houver identificação, porque a memória continua; mas nisso não existe renovação. Memória é tempo, e o tempo não é a porta para a realidade; através do tempo, você não pode chegar ao eterno. Portanto, deve haver um fim, o que significa que a fim de encontrar o real deve haver morte a cada minuto, morte para as suas posses, sua posição, não para o amor. Obviamente, existe continuidade quando o pensamento está identificado. Mas a continuidade nunca pode levar ao real, porque continuidade é, simplesmente, pensamento identificado como o ‘Eu’ que é memória; e existe renovação, renascimento, frescor, novidade, um estado eterno de ser, apenas quando há uma morte, um fim de momento a momento. A verdade, a realidade, Deus, ou o que você quiser, não vai surgir através do processo do tempo. Ele surge apenas quando o tempo, quando a memória cessa. Quando você como memória está ausente, quando você como memória não funciona, quando esta atividade como o ‘Eu’ cessa, então há um fim. Nesse fim, existe renovação; e nessa renovação está a realidade.

Bombay, 01 de fevereiro de 1948.