4ª palestra 

Frognerseteren, Noruega 

Amigos, hoje vou fazer uma recapitulação do que venho dizendo aqui.

Temos a ideia de que a sabedoria é um processo de aquisição através da constante multiplicação da experiência. Pensamos que multiplicando experiências aprenderemos e que esse aprendizado nos dará sabedoria. E através dessa sabedoria na ação esperamos encontrar riqueza, autossuficiência, felicidade, a verdade. Isto é, para nós a experiência é apenas uma constante mudança de sensação, porque contamos com o tempo para nos dar sabedoria. Quando pensamos dessa maneira, que com o tempo adquiriremos sabedoria, temos a ideia de chegar em algum lugar. Isto é, dizemos que o tempo gradualmente revelará a sabedoria. Mas o tempo não revela sabedoria, porque usamos o tempo apenas como um meio para chegar em algum lugar. Quando temos a ideia de adquirir sabedoria através da mudança constante de experiência, estamos à procura de aquisição e, portanto, não há percepção imediata, que é sabedoria.

Tomemos um exemplo, talvez isso esclareça o que quero dizer. Esta mudança de desejo, esta mudança de sensação, esta multiplicação de experiências que essa mudança de sensação provoca, chamamos de “progresso”. Suponham que nós vemos um chapéu em uma loja e que desejamos possuí-lo, tendo obtido esse chapéu, queremos algo mais – um carro e assim por diante. Depois nos voltamos para as carências emocionais e mudando então de um desejo de um chapéu para uma sensação emocional, pensamos que progredimos. Da sensação emocional nos voltamos para as sensações intelectuais, para as ideias, para Deus, para a verdade. Isto é, pensamos que progredimos através da mudança constante de experiências, do estado de desejar um chapéu para o estado de desejar e procurar Deus. Assim, acreditamos que através das experiências, através das escolhas, progredimos.

Agora, para mim, isso não é progresso, é apenas mudança de sensação, sensação cada vez mais sutil, cada vez mais refinada, mas ainda uma sensação e, portanto, superficial. Apenas mudamos o objeto de nosso desejo. No início era um chapéu, agora se tornou Deus e nisso pensamos que fizemos um tremendo progresso. Isto é, pensamos que através desse processo gradual de refinamento da sensação, descobriremos o que é a verdade, Deus, a eternidade. Eu afirmo que vocês nunca encontrarão a verdade através da mudança gradual do objeto de desejo. Mas se vocês compreenderem que somente através da percepção imediata, do discernimento imediato, reside a totalidade da sabedoria, então essa ideia da mudança gradual do desejo desaparecerá.

Agora, o que estamos fazendo? Pensamos: “Eu era diferente ontem, sou diferente hoje e serei diferente amanhã”. Assim, contamos com a diferença, com a mudança – não com o discernimento. Tomemos, por exemplo, a ideia de desapego. Dizemos para nós mesmos: “Há dois anos eu era muito apegado, hoje sou menos apegado e em poucos anos serei ainda menos, eventualmente chegando a um estado em que serei bastante desapegado”. Portanto, pensamos que desenvolvemos do apego para o desapego através do choque constante da experiência, que chamamos de progresso, desenvolvimento do caráter.

Para mim, isso não é progresso. Se vocês perceberem com todo o seu ser o significado total do apego, então vocês não progridem em direção ao desapego. A mera busca do desapego não revela a superficialidade do apego, que só pode ser compreendido quando a mente e o coração não estão fugindo através da ideia do desapego. Essa compreensão não é ocasionada através do tempo, mas somente na compreensão de que no próprio apego há dor, bem como alegria transitória. Então, vocês me perguntam: “O tempo não me ajudará a perceber isso?” O tempo não o fará. O que os fará perceber é a transitoriedade da alegria ou a intensidade da dor no apego. Se vocês estiverem completamente conscientes disso, então vocês não estarão mais presos à ideia de serem diferentes agora em relação ao que vocês eram há alguns anos, e depois serem diferentes novamente. A ideia de tempo progressivo torna-se ilusória.

Em outras palavras, nós pensamos que através da escolha avançaremos, aprenderemos, que através da escolha mudaremos. Escolhemos na maioria das vezes o que queremos. Não há satisfação na escolha comparativa. Aquilo que não nos satisfaz chamamos de “não essencial”, e aquilo que nos satisfaz de “essencial”. Assim, estamos constantemente presos nesse conflito de escolha, com o qual esperamos aprender. A escolha, então, é meramente opostos em ação, é o cálculo entre opostos e não discernimento duradouro. Portanto, nós desenvolvemos do que chamamos de “não essencial” para o que chamamos de “essencial” e isso, por sua vez, se torna o não essencial. Isto é, nós desenvolvemos do desejo pelo chapéu, que pensávamos ser o essencial e que agora se tornou o não essencial, para o que pensamos ser o essencial, apenas para descobrir que isso também é o não essencial. Portanto, através da escolha, pensamos que chegaremos à completude de ação, à plenitude da vida.

Como eu disse, para mim a percepção ou discernimento é atemporal. O tempo não lhes dá discernimento de experiências, apenas os tornam mais espertos, mais astutos no encontro com as experiências. Mas se vocês perceberem e viverem completamente na própria coisa que vocês estão experimentando, então essa ideia de mudança do não essencial para o essencial desaparece e, portanto, a mente se liberta da ideia de tempo progressivo.

Vocês contam com o tempo para mudarem. Vocês dizem para si mesmos: “Através da multiplicação de experiências, tal como na mudança do desejo pelo chapéu para o desejo de Deus, aprenderei sabedoria, aprenderei compreensão”. Na ação nascida da escolha não há discernimento, escolha sendo um cálculo, uma lembrança da ação incompleta. Isto é, vocês enfrentam agora uma experiência parcialmente, com um viés religioso, com os preconceitos das distinções sociais ou de classe e essa mente pervertida, quando enfrenta a vida, cria a escolha, não lhes dá a completude da compreensão. Mas se vocês enfrentarem a vida com liberdade, com abertura, com simplicidade, então a escolha desaparece, porque vocês vivem completamente, sem criar o conflito dos opostos.

Interrogante: O que você quer dizer com viver integralmente, abertamente, livremente? Por favor, dê um exemplo prático. Por favor, explique também, com um exemplo prático, como é que na tentativa de viver integralmente, abertamente e livremente, uma pessoa se torna consciente das suas limitações que impedem a liberdade e como, tornando-se completamente consciente delas, uma pessoa pode se libertar delas.

Krishnamurti: Suponham que eu seja um esnobe e não tenha consciência de que sou um esnobe. Isto é, tenho preconceito de classe e enfrento a vida sem ter consciência desse preconceito. Naturalmente, tendo minha mente distorcida por essa ideia de distinção de classe, não posso compreender, não posso enfrentar a vida abertamente, livremente, simplesmente. Ou mais uma vez, se eu fui educado com fortes doutrinas religiosas ou com alguma formação específica, os meus pensamentos e emoções estão pervertidos. Com esse contexto de preconceito, saio ao encontro da vida e esse preconceito naturalmente impede minha compreensão completa da vida. Estamos presos em tal pano de fundo de tradição e de falsos valores, de distinção de classes e de influências religiosas, de medo e preconceito. Com esse pano de fundo, com esses padrões estabelecidos, internos ou externos, saímos tentando encontrar a vida e tentando compreender. Desses preconceitos surgem conflitos, alegrias transitórias e sofrimentos. Mas nós estamos inconscientes disso, inconscientes de que somos escravos de certas formas de tradição, do ambiente social e político, de falsos valores.

Agora, para se libertarem dessa escravidão, afirmo, não tentem analisar o passado, o pano de fundo da tradição, da qual vocês são escravos e da qual vocês não têm consciência. Se você é um esnobe, não tente descobrir depois que sua ação terminar se você é um esnobe. Esteja totalmente consciente, e através do que você diz e do que você faz, o esnobismo do qual você não tem consciência entrará em atividade, então você poderá se libertar dele, porque essa chama da consciência cria um intenso conflito que dissolve o esnobismo.

Como eu disse outro dia, a autoanálise é destrutiva, porque quanto mais você se analisa, menos ação haverá. A autoanálise ocorre apenas quando o incidente termina, quando ele já passou. Então você retorna intelectualmente a esse incidente e intelectualmente tenta dissecá-lo, compreendê-lo. Não há compreensão em uma coisa morta. Em vez disso, se vocês estiverem totalmente conscientes na sua ação, não como um observador que apenas observa, mas como um ator que está totalmente consumido nessa ação – se vocês estiverem completamente conscientes dela e não separado dela, então o processo de autoanálise não existe. Ele não existe porque vocês estão encontrando a vida integralmente, vocês não estão separados da experiência. E nessa chama de consciência, vocês colocam em atividade todos os seus preconceitos, todos os falsos padrões que feriram sua mente. E ao trazê-los para sua plena consciência, vocês se libertam deles, porque eles criam problemas e conflitos, e através desse mesmo conflito vocês se libertam.

Nós nos apegamos à ideia de que o tempo nos dará compreensão. Para mim, isso é apenas um preconceito, um obstáculo. Agora, suponham que vocês pensem sobre essa ideia por um momento – vocês não a aceitam, mas pensam sobre ela e desejam descobrir se é verdadeira. Vocês descobrirão que podem testá-la apenas na ação, não teorizando sobre ela. Então, vocês não perguntarão se o que eu digo é verdade – vocês testarão na ação. Afirmo que o tempo não traz compreensão. Quando vocês olham para o tempo como um processo gradual de revelação, vocês estão criando um obstáculo. Vocês só podem testá-la através da ação. Somente na experiência, vocês podem perceber se essa ideia tem algum valor em si mesma. Mas, vocês perderão seu profundo significado se tentarem usá-la como um meio para algo mais. A ideia do tempo como um processo de revelação é um método de adiamento cultivado. Vocês não enfrentam aquilo que os confronta porque têm medo; vocês não querem enfrentar a experiência integralmente, seja por causa dos seus preconceitos ou por causa do desejo de adiar.

Quando vocês torcem um tornozelo, vocês não podem destorcê-lo gradualmente. Essa ideia de que aprendemos através de muitas e crescentes experiências, através da multiplicação da alegria e do sofrimento, é um dos nossos preconceitos, um dos nossos obstáculos. Para descobrir se isso é verdade, vocês têm que agir; vocês nunca descobrirão apenas se sentando e discutindo sobre isso. Vocês só podem descobrir no movimento da ação, vendo como sua mente e seu coração reagem, não modelando-os, empurrando-os para um determinado fim, então vocês verão que eles estão reagindo de acordo com o preconceito da acumulação. Vocês dizem: “Há dez anos eu era diferente, hoje sou diferente e daqui a dez anos serei mais diferente ainda”, mas o encontro com as experiências com a ideia de que vocês serão diferentes, que vocês aprenderão aos poucos, os impedem de compreendê-las, de discernir instantaneamente, integralmente.

Interrogante: Você poderia também dar um exemplo prático de como a autoanálise é destrutiva. O seu ensinamento nesse ponto surge de sua própria experiência?

Krishnamurti: Em primeiro lugar, eu não estudei filosofias ou livros sagrados. Estou lhes dando o fruto das minhas próprias experiências. Muitas vezes me perguntam se estudei livros sagrados, filosofias e outros escritos semelhantes. Eu não estudei. Estou lhes dizendo o que para mim é verdade, sabedoria e cabe a vocês, que são instruídos, descobrir. Eu penso que nesse mesmo processo de acumulação, que chamamos de aprendizado, está o nosso infortúnio. Quando está sobrecarregada com conhecimento, com aprendizado, a mente fica ferida – não que não devamos ler. Mas a sabedoria não se compra, deve ser experimentada na ação. Acho que isso responde a segunda parte da pergunta.

Responderei à pergunta de forma diferente e espero explicá-la mais claramente. Por que vocês acham que devem se analisar? Porque vocês não viveram integralmente as experiências, e essas experiências criou uma pertubação em vocês. Portanto, vocês dizem a si mesmos: “Na próxima vez que eu a encontrar, devo estar preparado, portanto deixe-me olhar para o incidente que passou e aprenderei com ele; então enfrentarei a próxima experiência integralmente e ela não me perturbará”. Portanto, vocês começam a analisar, o que é um processo intelectual e, portanto, não totalmente verdadeiro; como vocês não a compreenderam completamente, vocês dizem: “Aprendi algo com essa experiência passada, agora com esse pequeno conhecimento, deixe-me enfrentar a próxima experiência com a qual aprenderei um pouco mais”. Assim, vocês nunca vivem completamente na própria experiência, esse processo intelectual de aprendizado, de acumulação está sempre acontecendo.

Isso é o que vocês fazem diariamente, só que inconscientemente. Vocês não têm o desejo de enfrentar a vida harmoniosamente, completamente; em vez disso, vocês pensam que aprenderão a enfrentá-la harmoniosamente através da análise; isto é, acrescentando pouco a pouco ao celeiro da mente, vocês esperam ficar cheios e ser capazes de enfrentar a vida integralmente, plenamente. Mas sua mente nunca ficará livre por meio desse processo; poderá ficar cheia, mas nunca livre, aberta, simples. E o que os impede de ser simples, abertos, é esse processo constante de análise de um incidente do passado, que deve necessariamente ser incompleto. Só pode haver compreensão completa no próprio movimento da experiência em si. Quando vocês estão em uma grande crise, quando deve haver ação, então vocês não analisam, não calculam; vocês colocam tudo isso de lado, porque nesse momento sua mente e coração estão em harmonia criativa e existe ação verdadeira.

Interrogante: Qual é a sua opinião sobre as práticas religiosas, cerimoniais e ocultistas? Só para mencionar algumas atividades que ajudam a humanidade. Sua atitude em relação a elas é apenas de completa indiferença ou é de antagonismo?

Krishnamurti: Dedicar-se a essas práticas parece-me um desperdício de esforço. Quando você diz “prática”, você quer dizer seguir um método, uma disciplina que você espera que lhe dê a compreensão da verdade. Já falei muito sobre isso e não tenho tempo para voltar a entrar em detalhes. Toda a ideia de seguir uma disciplina torna a mente e o coração rígidos e coerentes. Já tendo estabelecido um plano de conduta e desejando ser coerente, você diz para si mesmo: “Devo fazer isso e não devo fazer aquilo”, e sua memória dessa disciplina o guia pela vida. Isto é, devido ao medo dos dogmas religiosos e da situação econômica, você enfrenta as experiências parcialmente, através do véu desses métodos e disciplinas. Você enfrenta a vida com medo, o que cria preconceitos; portanto há compreensão incompleta e daí surgem conflitos. E para vencer esses conflitos, você encontra um método, uma disciplina segundo a qual você julga se “deve” ou se “não deve”. Portanto, tendo estabelecido uma coerência, um padrão, você se disciplina de acordo com isso através da memória constante, e isso você chama de autodisciplina, práticas ocultas. Eu afirmo que essa autodisciplina, essa prática, esse contínuo ajustamento a um padrão ou o não ajustamento a um padrão, não liberta a mente. O que liberta a mente é enfrentar a vida integralmente, estar totalmente consciente, o que não exige prática. Vocês não podem dizer para si mesmos: “Tenho que estar consciente, tenho que estar consciente”. A consciência vem em completa intensidade de ação. Quando vocês sofrem muito, quando vocês desfrutam muito, nesse momento vocês enfrentam a vida com plena consciência e não com uma consciência dividida; então vocês enfrentam todas as coisas completamente e nisso há liberdade.

No que diz respeito às cerimonias religiosas, o assunto é muito simples do meu ponto de vista. Uma cerimônia é apenas uma sensação glorificada. Alguns de vocês provavelmente não concordam com essa opinião. Vocês sabem, acontece com as cerimonias religiosas o que acontece com a pompa mundana: quando um rei reúne a corte, os espectadores ficam tremendamente impressionados e enormemente explorados. A razão pela qual a maioria das pessoas vai à igreja é encontrar conforto, escapar, explorar e ser explorada. E se alguns de vocês ouviram o que eu tenho dito durante os últimos cinco ou seis dias, vocês terão compreendido minha atitude e ação em relação às cerimonias.

“Sua atitude em relação a elas é apenas de completa indiferença ou é de antagonismo?” Minha atitude não é de indiferença nem é antagônica.  Eu afirmo que elas detêm sempre a semente da exploração e, portanto, elas são pouco inteligentes e injustas.

Interrogante: Já que você não busca seguidores, então por que você pede às pessoas que deixem suas religiões e sigam seus conselhos? Você está preparado para arcar com as consequências de tal conselho? Ou você quer dizer que as pessoas necessitam de orientação? Se não, por que você discursa?

Krishnamurti: Lamento, eu nunca criei tal coisa como um seguidor. Eu nunca disse a alguém: “Deixe sua igreja e siga-me”. Isso seria apenas pedir para vocês virem para outra igreja, para outra prisão. Eu afirmo que seguindo outro, vocês se tornam apenas escravos, sem inteligência; vocês se tornam uma máquina, um autômato imitativo. Ao seguirem alguém, vocês nunca poderão descobrir o que é a vida, o que é a eternidade. Eu afirmo que seguir alguém é destrutivo, cruel, leva à exploração. Estou interessado em lançar a semente. Eu não estou pedindo para seguir. Eu afirmo que o próprio seguimento de alguém é a destruição dessa vida, desse devir eterno. Em outras palavras, ao seguirem alguém, vocês destroem a possibilidade de descobrir a verdade, a eternidade. Por que vocês seguem? Porque vocês querem ser guiados, querem ser ajudados. Vocês pensam que não podem compreender, portanto dirigem-se ao outro e aprendem sua técnica, e tornam-se escravos do seu método. Vocês se tornam o explorador e o explorado, e ainda assim esperam que praticando continuamente esse método, liberarão o pensamento criativo. Vocês nunca poderão liberar o pensamento criativo seguindo. É somente quando vocês começam a questionar a própria ideia de seguir, de estabelecer autoridades e adorá-las, que vocês poderão descobrir o que é a verdade. E a verdade libertará sua mente e coração.

“Você quer dizer que as pessoas necessitam de orientação?” Eu afirmo que as pessoas não precisam de orientação, elas precisam despertar. Se vocês forem guiados a certas ações corretas, essas ações não serão mais corretas, elas serão apenas imitativas, forçadas. Mas se vocês mesmos, por meio de questionamentos, por meio de consciência contínua, descobrirem valores verdadeiros – e vocês só poderão fazer isso por si próprios, por mais ninguém – então toda a questão de seguir, guiar, perde seu significado. A sabedoria não é uma coisa que vem através da orientação, através do seguimento, através da leitura de livros. Vocês não podem aprender sabedoria em segunda mão, mas é isso que vocês estão tentando fazer. Portanto, vocês dizem: “Guia-me, ajuda-me, liberta-me”. Mas, eu afirmo, tenham cuidado com o homem que os ajuda, que os liberta.

“Por que você discursa afinal?” Isso é muito simples: porque não posso evitar e porque há tanto sofrimento, tanta alegria que se desvanece. Para mim, existe um devir eterno que é um êxtase e quero mostrar que esta existência caótica pode ser mudada para uma cooperação ordenada e inteligente, na qual o indivíduo não é explorado. E isso não se faz através de uma filosofia oriental, através de se sentarem sob uma árvore, retirando-se da vida, mas muito pelo contrário, é através da ação que vocês descobrirão, quando estiverem completamente despertos, completamente conscientes em grande sofrimento ou alegria. Essa chama da consciência consome todos os obstáculos auto-criados que destroem e pervertem a inteligência criativa do homem. Mas a maioria das pessoas, quando experimenta sofrimento, procura alívio imediato ou tenta, através da memória, captar uma alegria passageira. Assim, suas mentes estão constantemente em fuga. Mas eu afirmo, tornem-se conscientes e vocês próprios libertarão suas mentes do medo; e essa liberdade é a compreensão da verdade.

Interrogante: A sua experiência da realidade é algo peculiar para esta época? Se não, por que não foi possível no passado?

Krishnamurti: Certamente que a realidade, a eternidade, não pode ser condicionada pelo tempo. Você quer perguntar se as pessoas não buscaram ou lutaram pela realidade ao longo dos séculos. Para mim, essa mesma luta pela verdade as impediu de compreender.

Interrogante: O senhor diz que o sofrimento não pode nos dar compreensão, mas pode apenas nos despertar. Se é assim, por que o sofrimento não cessa quando ficamos totalmente despertos?

Krishnamurti: É precisamente isso. Não são totalmente despertos pelo sofrimento. Suponham que alguém morre. O que acontece? Vocês querem um alívio imediato dessa tristeza, então vocês aceitam uma ideia, uma crença ou procuram diversões. Agora, o que aconteceu? Houve verdadeiro sofrimento, uma luta desperta, um choque e para vencer esse choque, esse sofrimento, vocês aceitaram uma ideia tal como a reencarnação, a fé no além ou a crença na comunicação com os mortos. Tudo isso são formas de fuga. Isto é, quando vocês estão despertos existe conflito, luta, o que vocês chamam de sofrimento, mas imediatamente vocês querem colocar essa luta de lado, esse despertar, vocês anseiam pelo esquecimento através de uma ideia, uma teoria ou explicação, que é apenas um processo de adormecer novamente.

Portanto, esse é o processo diário da existência, vocês são despertados pelo impacto com a vida, com a experiência, o que causa sofrimento e vocês querem ser confortados, então vocês procuram pessoas, ideias, explicações que lhes deem conforto, satisfação e isso cria o explorador e o explorado. Mas, se nesse estado de intenso questionamento, que é sofrimento, se nesse estado de interesse desperto, vocês enfrentarem as experiências integralmente, então vocês descobrirão o verdadeiro valor e o significado de todos os abrigos e ilusões que vocês criaram; e a compreensão deles, por si só, libertará vocês do sofrimento.

Interrogante: Qual é o caminho mais curto para nos livrarmos de nossas preocupações, problemas, ressentimentos e alcançar a felicidade, liberdade?

Krishnamurti: Não há caminho mais curto; mas os próprios ressentimentos, preocupações e problemas os libertam, se vocês não tentarem fugir deles através do desejo de liberdade e felicidade. Vocês dizem que querem liberdade e felicidade, porque ressentimentos e problemas são difíceis de suportar. Portanto, vocês estão apenas fugindo deles, vocês não compreendem porque eles existem, vocês não compreendem porque têm preocupações, problemas, ressentimentos, amargura, sofrimento e alegria transitória. E já que vocês não compreendem, vocês querem saber o caminho mais curto para sair da confusão. Eu afirmo, tenham cuidado com o homem que lhes mostra o caminho mais curto. Não há saída do sofrimento e do problema, exceto através desse próprio sofrimento e problema. Essa não é uma declaração difícil; vocês vão compreendê-la se vocês pensarem sobre ela. No momento em que vocês param de tentar fugir, vocês compreenderão. Vocês não podem deixar de compreender, porque assim não estarão mais enredados em explicações. Quando todas as explicações cessam, quando elas não têm mais nenhum significado, então existe a verdade. Agora, vocês estão buscando explicações, vocês estão procurando o caminho mais curto, o método mais rápido, vocês contam com práticas, cerimônias, com a mais recente teoria da ciência. Tudo isso são fugas. Mas quando vocês realmente compreenderem a ilusão da fuga, quando estiverem confrontando integralmente a coisa que cria conflito dentro de vocês, então essa mesma coisa os libertará.

Agora, a vida cria grandes perturbações em vocês, problemas de posse, sexo, ódio. Então, vocês dizem: “Deixe-me encontrar uma vida mais elevada, uma vida divina, uma vida de não-posse, uma vida de amor”. Mas seu próprio esforço por tal vida é apenas uma fuga dessas perturbações. Se vocês se conscientizarem da falsidade da fuga, o que só podem compreender quando há conflito, então vocês verão como sua mente está habituada a fugir. E quando vocês deixam de fugir, quando sua mente não está mais buscando uma explicação, que é apenas uma droga, então aquela mesma coisa da qual estavam tentando fugir, revela o seu completo significado. Essa compreensão liberta a mente e o coração do sofrimento.

Interrogante: Você não tem nenhuma fé no poder da Divindade que traça o destino do homem? Se não, você é ateu?

Krishnamurti: A crença de que existe uma Divindade que pode moldar o ser humano é um dos obstáculos da humanidade. Mas, quando eu afirmo isso, não significa que sou ateu. Eu penso que as pessoas que dizem acreditar em Deus são ateus, não só as que não acreditam em Deus, porque ambas são escravas de uma crença.

Vocês não podem acreditar em Deus; vocês têm que acreditar em Deus somente quando não há compreensão, e vocês não podem ter compreensão procurando por ela. Mais precisamente, quando sua mente está realmente livre de todos os valores, que se tornaram o próprio centro da consciência do ego, então Deus existe. Nós temos a ideia de que algum milagre nos mudará, pensamos que alguma influência divina ou externa trará mudanças em nós mesmos e no mundo. Temos vivido com essa esperança há séculos e é isto que está acontecendo com o mundo – caos completo, irresponsabilidade na ação, porque pensamos que alguém vai fazer tudo por nós. Descartar essa falsa ideia não significa que devemos nos voltar para o seu oposto. Quando libertamos a mente de opostos, quando vemos a falsidade da crença de que alguém está cuidando de nós, então uma nova inteligência é despertada em nós.

Vocês querem saber o que é Deus, o que é a verdade, o que é a vida eterna, então vocês me perguntam: “Você é ateu ou teísta? Se você é um crente em Deus, então me diga o que é Deus.” Afirmo que o homem que descreve o que é a verdade ou Deus, a verdade não existe na vida dele. Quando ela é colocada na gaiola das palavras, então a verdade não é mais uma realidade viva. Mas se vocês compreenderem os falsos valores em que estão presos, se vocês se libertarem deles, então existe uma realidade eterna.

Interrogante: Quando sabemos que nosso modo de vida inevitavelmente repugnará outros e produzirá um equívoco completo em suas mentes, como devemos agir se quisermos respeitar seus sentimentos e seus pontos de vista?

Krishnamurti: Essa pergunta parece tão simples que não vejo onde está a dificuldade. “Como devemos agir para não incomodar os outros?” É isso que você quer saber? Receio, então, que não deveríamos agir de forma alguma. Se você vive completamente, suas ações podem causar incômodos, mas o que é mais importante: descobrir o que é a verdade ou não incomodar os outros? Isso parece tão simples que dificilmente precisa ser respondido. Por que você quer respeitar os sentimentos e pontos de vista de outras pessoas? Você tem medo de ter seus próprios sentimentos feridos, de mudar seu ponto de vista? Se as pessoas têm opiniões diferentes das suas, você só pode descobrir se elas são verdadeiras questionando-as, entrando em contato ativo com elas. E se você descobrir que essas opiniões e sentimentos não são verdadeiros, sua descoberta pode causar incômodos naqueles que os apreciam. Então, o que você deve fazer? Você deve deixar de agir de acordo com eles ou se comprometer para não ferir seus amigos?

Interrogante: Você acha que a comida pura tem alguma coisa a ver com a realização de suas ideias de vida? Você é vegetariano? (Riso)

Krishnamurti: Vocês sabem, o humor é impessoal. Espero que o interlocutor não fique magoado quando as pessoas riem. Se eu for vegetariano, o que isso significa? Não é o que entra em sua boca que os libertará, mas sim a descoberta dos verdadeiros valores, dos quais surge a ação completa.

Interrogante: Sua mensagem de distanciamento desinteressado, de desapego, tem sido pregada em todas as épocas e em muitas religiões para alguns discípulos escolhidos. O que o faz pensar que essa mensagem agora é adequada para todos, em uma sociedade humana onde há necessidade de interdependência em todas as ações sociais?

Krishnamurti: Lamento muito, mas nunca disse que se deve ser remotamente desinteressado, que se deve ser desapegado, muito pelo contrário. Portanto, primeiro, por favor, compreenda o que eu digo e depois veja se tem algum valor.

Tomemos a questão do desapego. Vocês sabem, durante séculos nós estivemos reunindo, acumulando, nos tornando seguros. Intelectualmente, vocês podem ver a estupidez da posse e dizerem para si mesmos: “Deixe-me ser desapegado”. Ou melhor, vocês não veem a estupidez disso, portanto começam a praticar o desapego, que é apenas outra maneira de obter, de armazenar. Porque se vocês realmente perceberem a estupidez da posse, então estarão livres tanto do desapego quanto do seu oposto. O resultado não é uma inatividade remota, mas uma ação completa. Vocês sabem, nós somos escravos da legislação. Se amanhã fosse aprovada uma lei decretando que não deveríamos possuir propriedades, seríamos obrigados a respeitá-la, com uma boa dose de queixas. Nisso também haveria segurança, a segurança da não-posse. Então, eu digo, não sejam o joguete da legislação, mas descubram exatamente do que vocês são escravos – isto é, da aquisitividade. Descubram o seu verdadeiro significado, sem fugir para o desapego. Descubram como isso lhes dá distinções sociais, poder, conduzindo a uma vida vazia e superficial. Se vocês renunciarem às posses sem as compreenderem, vocês terão o mesmo vazio na não-posse – a sensação de segurança no ascetismo, no desapego, que se tornará o refúgio para o qual vocês se retirarão em tempos de conflito. Enquanto houver medo, deve haver a busca de opostos. Mas se a mente se libertar da verdadeira causa do medo, que é a autoconsciência, o “eu”, a consciência limitada, então haverá realização, plenitude de ação.

12/09/1933.