Leena Sarabhai

PÁGINAS DE UM DIÁRIO (1933-34)

 

PREFÁCIO

Em 1933, J. Krishnamurti veio pela primeira vez a Ahmedabad onde ficou em “The Retreat” (O Retiro), em Shahibaug, em nossa casa, com meus pais Shri Ambalal Sarabhai e Snit Sarladevi Sarabhai e nossa família de cinco irmãs e três irmãos. Extratos de meu diário entre 1933-34 foram reproduzidos neste livro. A maior parte do livro consiste de diálogos com J. Krishnamurti – Krishnaji como era chamado pelos que o conheciam. Estes foram originalmente registrados por mim tanto em gujarati como em inglês e incluídos nos esboços que fiz de pessoas eminentes, como o poeta Rabindranath Tagore, os artistas Abenindranath e Nandalal Bose, e o mestre Karunashankar Bhatt, que apareceram primeiramente em 1955, na publicação gujarati Vyakti Chitro.

O capítulo sobre J. Krishnamurti da segunda edição do Viakti Chitro foi publicado por Gurjar Granthratna Karyalaya, Ahmedabad, pelos esforços do Comitê de Publicação (gujarati e marathi) da Krishnamurti Foundation. O senhor B. D. Dave do Comitê sugeriu que eu publicasse este em inglês, com o que concordei. A doutora Radhika Herzberger da KFI aceitou a proposta do senhor Dave. Como resultado, o senhor Dave conseguiu que fosse publicado por nosso amigo senhor I. M. Doctor. Expresso meus agradecimentos a estes queridos amigos por seus esforços e espero que o trabalho seja de interesse dos leitores.

Leena Sarabhai

Krishnaji chegou em 23/1/33. Ontem, isto é, 26/1, perguntei a Krishnaji, “Como você foi criado e educado?” Nessa tarde, na hora do almoço,  ele começou a me contar sua história com muita seriedade e grandeza de coração, sem me considerar jovem e insignificante. Como sempre, havia um sorriso em seu rosto. Enquanto conversávamos, o resto do grupo podia ver apenas seus gestos. Isto criou tanto interesse que todos mostraram uma grande ânsia para ouvi-lo. Ele então falou para todos nós.

Eu não lembro de todas as palavras dele, mas aquelas que lembro, eu registrei. Enquanto ele falava, fomos levados às lágrimas.

Krishnaji disse: “Dificilmente eu lembro de algo dos incidentes de minha infância ou juventude. O que quer que eu conte a vocês, é o que  ouvi de outros, como faz uma criança. Minha memória é muito ruim. Se vocês me perguntarem como era meu irmão eu não seria capaz de dizer porque não lembro.

“Meu pai teve treze filhos, imaginem! Meu pai era pobre. O que ele era?” Ele então tentou pensar e seus dois acompanhantes tiveram que relembrá-lo. “Oh! Ele era escrevente. Sabe, que coisa! De todos os filhos, apenas dois estão vivos. Um terceiro está vivo mas não é bom da cabeça.” (Mais tarde eu soube que este segundo irmão, que é mais velho que Krishnaji, é médico em Madras).

“Minha mãe morreu quando eu tinha cinco anos. Ela era extremamente ortodoxa. Eu fui seu oitavo filho. Nosso pai costumava nos bater. Ele recebia apenas cinco rupias de salário. Vivíamos em profunda pobreza, fome e sujeira, e éramos miseráveis em todos os sentidos. Meu pai era teosofista, e algumas vezes íamos a Adyar.

“Lá, a doutora Annie Besant nos viu – a mim e a meu irmão, Nitya, que era um ano mais novo que eu. Nessa época eu tinha dez ou onze anos. Ela criou algumas esperanças para nós. Prometeu-nos belas roupas e boa comida se ficássemos com ela. Éramos crianças, e o que mais podíamos querer? Recebemos com alegria sua sugestão e a doutora Besant tomou-nos sob sua responsabilidade. Ela mandou-nos para o exterior. Nesta época a doutora Besant costumava nos ensinar e também arranjou tutores para nós. Na maior parte do tempo ela nos lia Dickens, Alice no País das Maravilhas, The Jungle Book, etc. Durante muito tempo nós mesmos não líamos e preferíamos que alguém lesse para nós. Na época e mesmo hoje, eu odeio Scott. Naqueles dias, nosso cabelo era longo e chegava aos ombros. Um jornal inglês escreveu, ‘a doutora Besant chegou com seus dois macacos negros’.

“Nesse meio tempo, alguns adversários da doutora Besant instigaram meu pai contra ela e financiaram procedimentos legais contra nós. Foi feita uma busca por nós; por isso, vagueamos por toda Europa nos escondendo com Jinaradasa e o doutor Arundale. Durante este tempo não podíamos nos mostrar abertamente. Lemos muito, vimos muito. Vimos pinturas em museus. Investigamos quem é quem. Fomos à Sicília. Lá um instrutor de golfe me disse, ‘Se você  aprender golfe em três meses, eu lhe darei mais dois.’ Fiz o que ele disse e consegui. Na Inglaterra vivíamos com aristocratas e ficamos em contato próximo com eles. Éramos íntimos da família da irmã de Lady Willingdon, Lady De La Warr. Cinco anos se passaram.

“Meu pai levou o caso para o Privy Council mas a doutora Besant ganhou a causa e ficamos sob sua responsabilidade. Assim, pela primeira vez fomos mandados para uma escola. Embora estivéssemos levando uma vida rica e irregular, não encontramos dificuldade de nos estabelecer na escola em Kent; mas custou-nos cerca de uma semana para nos acostumarmos com os outros meninos comendo carne na mesma mesa. Eu detestava álgebra e geometria, mas gostava de latim e francês. Mas mais que tudo, eu gostava de ficar horas num canto sozinho. Costumava olhar para o céu e pensar. Você sabe, eu era muito sonhador. Meu irmão era inteligente. Se ele visse um livro uma vez, podia ter boas notas nele. Estudamos durante quatro anos naquela escola depois do que a doutora Besant decidiu que devíamos ir para o Balliol College, em Oxford. As autoridades disseram, ‘Por Deus ou por esses meninos, não os tragam para cá. Não queremos Deuses aqui. Eles serão atormentados até o fim.’ Através de Lord Curzon, a doutora Besant tentou influenciar Lord…; ele tentou pressionar as autoridades mas nada pode ser feito.

“Nesta época fui proclamado Mestre Universal. Em conseqüência sofremos muito. Aqueles que não me aceitavam  como Mestre nos ridicularizavam. Aqueles que acreditavam em mim faziam tal espalhafato que ficávamos encabulados ao encontrá-los.

“No início, eu costumava brincar com os colegas de escola mas daí comecei a evitar a companhia deles; cuspir uns nos outros, caluniar. As crianças inglesas têm cada brincadeira suja! Costumavam nos chamar de diabos negros, negrinhos, duendes mas nós também os maltratávamos. Neste sentido, nós saíamos bem uns com os outros.

“Na escola, tínhamos que aprender alguma coisa mas aprendíamos mais nas férias. Costumávamos ficar com Lady De La Warr. Fomos para sua grande casa em Londres. Lá, entre mordomos e criados, linhos e pratarias, vivemos prodigamente. Conhecemos pessoas dos círculos políticos e tivemos oportunidade de conhecer os líderes trabalhistas McDonald, Lansbury e outros, e ouvir suas discussões. Eu pertencia ao Partido Trabalhista. Eles perguntavam nossa opinião mas não podíamos expressá-la; contudo, quando eu e meu irmão estávamos sozinhos, os criticávamos duramente, nós os arrasávamos. Começamos a participar das reuniões trabalhistas e pedir votos para o partido deles. Encontramos membros da guarda e as pessoas mais elegantes. A maioria delas era aristocrata – pessoas de boa criação – boas companhias, mas sem cérebro.

Deste modo nossos dias na escola finalmente chegaram ao fim. Tivemos que fazer exames. Eu podia repetir muito bem todas as palavras que tinha aprendido com meu professor; mas quando fui para as provas fiquei confuso, muito nervoso, e deixei a prova em branco. Mas meu irmão conseguia ir para Lincoln’s Inn, ler um livro meia hora antes da prova e passar nos exames de direito com boas notas. Assim, tentei passar em três provas respectivamente – London Matric, Senior Cambridge e Responsions mas fracassei em todas. Desisti dos meus estudos. Meu irmão queria muito ir para a faculdade; mas desistiu da idéia por minha causa e nós fomos ficar com Lady De La Warr.

“Aí  começamos a criticar e censurar todos abertamente. Nós não aliviamos nem com a senhora Besant. Discutíamos com o senhor Arundale, também um advogado. Um senhor W… foi feito nosso guardião. Ele levava uma vida muito folgada; mas depois que se tornou nosso guardião, desistiu de tudo. Ele gostava muito de nós. Sempre que estávamos em dificuldades, ele nos dava dinheiro.

“A guerra começou e em sua excitação nos alistamos na Cruz Vermelha. Vivíamos com Lady De La Warr e, como faltavam criados e homens nós, meninos e meninas, ordenhávamos as vacas e as alimentávamos.. Lá entramos em contato com a filha de Lord Curzon, Lady Cynthia Morley, e com algumas pessoas das  relações de Lord Lintton e Lady Emily.

“A maioria de nossos conhecidos se irritava com nossos pontos  de  vista. Um dia Lady De La Warr nos disse, ‘Se vocês querem falar essas coisas e sustentar tais opiniões, não podem ficar aqui’. Assim, saímos da casa. Foram feitos muitos esforços para que voltássemos mas escolhemos viver por conta própria em Picadilly, em grande estilo.

“Gostávamos muito de boas roupas. Rejeitávamos uma roupa depois que a usávamos duas vezes numa semana. Nossos alfaiates diziam que éramos os homens mais bem vestidos de Londres. Éramos tão exigentes com nossos sapatos que para dar a eles um brilho especial, costumávamos poli-los com nossas próprias mãos. Tínhamos uma mesada de apenas setecentas libras; acabávamos com ela. Podíamos pedir mais se quiséssemos mas não gostávamos de fazer isso. O jeito mais fácil e melhor era reduzir nossa dieta. Todo nosso dinheiro era gasto em teatros e “resorts” da moda. Como não tínhamos dinheiro para comida, tratávamos de ser convidados para almoços e jantares com nossos amigos.

“Devido à má nutrição meu irmão desenvolveu tuberculose e começou a cuspir sangue. Éramos jovens e inexperientes e não sabíamos o que significava a doença. Nosso médico nos avisou para sairmos da Inglaterra. A doutora Besant soube de algum modo de nossas dificuldades e mandou-nos imediatamente duas mil libras, mas nós as devolvemos.

“Assim, deixamos a Inglaterra e fomos para a França e ficamos com uma conhecida família francesa. Nossa anfitriã tratou de Nitya cuidadosamente. Ela mesma fazia tudo para ele, que ficou bem. Sua filha mais velha era cantora e a mais nova era dançarina. Através delas conhecemos intelectuais e artistas. Logo podíamos discutir arte com qualquer pessoa.

“Logo que Nitya sentiu-se um pouco melhor começamos a  aproveitar. Íamos a corridas de cavalo. Um dia Nitya apostou trinta libras num cavalo que eu tinha visto num sonho e ganhamos duas mil libras. Com este dinheiro compramos um grande e veloz carro feito por encomenda, mas não podíamos usá-lo muito porque o combustível era muito caro. Fomos para a Suíça e consultamos médicos. Eles disseram que Nitya estava perfeitamente bem. Nos divertimos muito em barcos de corrida nos grandes lagos.

“Finalmente, depois de doze anos, voltamos à Índia. Uma amiga veio conosco. Gostávamos muito dela. Ela morreu em Benares de diarréia, e esse foi nosso primeiro choque.

“Chegando à Índia, Nitya começou  a cuspir sangue novamente. Ele foi mandado para Ooty e pela primeira vez nos separamos. Depois de vir para a Índia, pela primeira vez comecei a me sentir miserável. Eu tinha que fazer parte de uma organização já pré determinada. Não gostei disso. Acima e além disto, havia o aborrecimento por ter me separado de meu irmão. Viajei com a senhora Besant na Índia e participei de suas reuniões mas eu só ouvia, e falava raramente. Não entendia muitas palavras, contudo costumava repetir o sentido do que ouvira de outro modo.

“A saúde de meu irmão piorou e nos causou muita angústia. Um amigo falou, ‘Por que vocês não vão para a Califórnia?’ Assim deixamos a Índia com Rama Rau. Não estávamos certos de que chegaríamos à Califórnia em segurança. Em cada porto eu tinha que vestir meu irmão e ficar numa fila para o exame médico. Quando o médico chegava perto de nós, eu me adiantava e atraía toda a atenção de modo que a doença de meu irmão não fosse notada. Eu tinha que cuidar de meu irmão, lavá-lo e fazer tudo que era necessário para um homem doente. E eu fiz. Nunca achei que fosse um peso nem um prazer.

“Todo este tempo eu fiquei muito debilitado e meu irmão era como um fiapo. Costumávamos olhar um para o outro e só chorar. Éramos tão miseráveis que não podíamos falar. Finalmente chegamos à Califórnia. Lá ficamos numa pequena cabana de madeira, em Ojai, cerca de setenta milhas de Hollywood. Raramente víamos alguém. Lá ruminamos nossas experiências passadas, refletimos e ficamos mais maduros. Foi como a manteiga que sobe e flutua quando o soro é batido. Você pode se perguntar por que não criamos vícios nesta vida de divertimentos. Não posso dizer por que ficamos com aversão ao vinho, fumo e qualquer coisa moralmente errada. Algumas pessoas costumavam nos provocar. Tentavam despejar vinho em nossas bocas à força mas nós odiávamos. Meu irmão era um perfeito intelectual. Ele me deu o lado intelectual e para ele eu dei o emocional e, assim, juntos nós éramos um ser perfeito. Ele se apaixonou mas desistiu pelo meu bem e uma vez eu também me apaixonei e desisti por ele. A outra razão foi que eu não quis ficar ligado em algo por toda vida. Nitya considerava-me como seu Mestre. Ele não me olhava como seu irmão, ele me adorava e venerava. Por favor, não me entenda mal, como você quer saber todos os fatos, estou contando.

“Nessa ocasião me foi feita uma oferta para trabalhar no cinema por duzentos dólares por semana. Mas eu não tinha desejo por dinheiro. O que eu faria com todo esse dinheiro? Então recusei a oferta. Tornou-se uma prática comum dos produtores oferecer-me esse trabalho sempre que estou na América.

“Como fui declarado o Mestre Universal, muitas pessoas vinham ver-me. Eu ficava nervoso ao encontrá-las. Assim, pedia a meu irmão que fosse vê-las e ele as despachava. Costumávamos presidir acampamentos. Meu irmão escrevia para mim e eu repetia suas palavras nas palestras.

“Nesta época fiquei pensando sobre o que eu ia fazer. Eu não tinha encontrado ainda um meio de expressão. Comecei a escrever poemas e artigos. Mas não eram satisfatórios. O que quer que eu fizesse, queria fazer de primeira classe. Tentei pintar, esculpir, música, dança e muitas outras coisas. Eu havia começado dança de salão mas não gostei de ficar rodando e rodando com meus braços em volta da cintura de uma dama. Tentei até política. Qualquer coisa que fazíamos costumávamos pensar, ‘Fazendo isto, o que fizemos? O que conseguimos?’ Estávamos descontentes. Foi este descontentamento que nos levou adiante. Comecei a fazer experiências sobre crescimento espiritual. Eu havia lido sobre a ‘kundalini’ e tentei desenvolver essa condição e li a respeito num livro chamado The Serpent Power. Dormi no chão. Comecei a jejuar. No primeiro dia senti fome, no segundo foi insuportável mas no terceiro a fome sumiu e senti-me em paz. Mas isso me fez ficar muito fraco. Eu costumava desmaiar. Podia prolongar meu jejum por três semanas. Agora eu sei que  não havia importância nisso.. Não me desenvolvi por isso. Nitya e eu fizemos todo o trabalho, cozinhar, varrer, etc, já que era muito caro ter criados na América. Um criado custava 100 dólares.

“Enquanto eu fazia essas experiências, a doença de meu irmão piorava. Um dia ele vomitou um copo cheio de sangue. Fiquei muito nervoso e mandei para o médico. Quando ele chegou eu estava tremendo da cabeça aos pés e disse, ‘Meu irmão tem uma hemorragia.’ Ele disse, ‘Oh! Eu achava que indianos não se importavam com a morte.’ E então fiquei pela primeira vez pensando em minha vida; eu disse ‘Meu Deus’ e refleti profundamente. Por muito tempo pensei em cometer suicídio. Várias pessoas tentaram me consolar com histórias de reencarnação, mas não encontrei consolo.

“Quando cheguei à Índia, achei que tudo estava errado. Falei com a senhora Besant e expus meu ponto de vista claramente a ela. No começo ela objetou; mas depois disse, ‘Considero você meu Guru. Vou fazer como você quiser.’ A Ordem da Estrela foi dissolvida.

“Como resultado de minhas experiências nos últimos seis ou sete anos para despertar a kundalini, ela desprendeu-se do chakra na base da coluna espinhal. Senti uma dor insuportável. Um dia em Viena desmaiei dezessete vezes.” (Rama Rau nos disse depois que para despertar a kundalini, Krishnaji foi sozinho para um quarto cheio de almofadas. As pessoas do lado de fora ouviam ele gemer. Em Ooty, ele teve uma visão do Lord Maitreya.)

“Então eu fui para a América. Em minha chegada, os repórteres me rodearam. Eles tinham entrevistado muitas pessoas famosas e tinham um jeito de fazer perguntas rápidas e abruptas e de fazer a pessoa examinada ficar nervosa. Um repórter me perguntou, ‘Você é casado?’ Eu disse, ‘Não’. Ele disse, ‘O que você faz então?’ Outro disse, ‘Se você é Cristo, por que não anda sobre as águas?’ Na América, muitas mulheres e herdeiras me diziam, ‘Você não quer casar comigo?’ Oh! Eu me sentia um tolo!

“Fui convidado para ir à Romênia. Na minha chegada, nossos anfitriões me deram um grande maço de cartas escritas com sangue. Naquelas cartas eu fui ameaçado. Disseram-me que se eu entrasse no país deles ou falasse, seria morto. Fiquei sob proteção policial e, quando eu me apresentava, a polícia tinha que investigar as pessoas que vinham ouvir. Estas pessoas ficaram excitadas comigo porque lhes foi dito que minha mãe era hindu e meu pai era judeu.” (Isto foi o que ouvimos depois: a comida de Krishnaji foi envenenada uma noite no hotel. Ele ficou muito receoso e caiu doente. Durante três ou quatro semanas ficou num sanatório. Daí em diante, sua digestão ficou prejudicada e ele tinha que ser muito específico com sua alimentação.)

“Quando eu estava em Chicago, fui avisado para não sair sozinho pois temiam que eu fosse seqüestrado por gangsters. Agora vou aonde me chamam. Uma amiga me dá duzentas libras por ano e isso é mais do que suficiente para meus gastos pessoais. Só gasto uma pequena parte disso, e o resto dou para caridade. Tenho muitas roupas que pertenceram a Nitya e a mim, elas são reformadas e eu as uso. Durante muito tempo não vou precisar de novas roupas.” (Krishnaji tinha uma grande quantidade de roupas que pertenceram a ele e a Nitya – belas gravatas, lenços e camisas. Ele as deu para carregadores nos hotéis e estações de trem e os ternos para amigos ou pessoas pobres. Agora ele tem um guarda-roupa limitado). “Se sou convidado para palestras, as pessoas do local fornecem as passagens e cobrem outros gastos. Se não sou convidado, não me aborreço porque fico feliz sozinho. Fui convidado para ir à China e ao Japão algumas vezes mas eles não mandaram nenhum dinheiro e eu não pude ir. Sou sempre convidado para ir à Europa, Austrália e Índia.

“Recentemente eu quis ir à América. Assim, fui ao Cônsul americano para obter o visto. Ele me disse, ‘Você é uma pessoa perigosa, não posso permitir que vá.’ Eu disse, ‘Vou consegui-lo com o Embaixador da América na Inglaterra.’ ‘Vou cuidar de tudo isso. Se eu disser não, você não irá.’ ‘Se for assim, não ligo. Se uma pessoa não me quer em sua casa, não posso forçar. Irei para outro lugar.’ Então ele disse, ‘Vou deixar você ir.’ Ele me deu o visto.”

Aí nós perguntamos a Krishnaji, “Você gosta da Europa, América ou Índia?”

Ele disse: “Eu escolheria ficar na Índia. Nada tenho que me pertença. Sou pobre. Como poderia então viver na América ou em outro país? Vocês sabem o que significa pobreza nestes países? Frio, miséria, doença e tudo que se segue. Lá, dinheiro é tudo. As pessoas se preocupam com riquezas e se você não as tem, você é excluído e afastado de tudo. Por isso eu gostaria de ficar na Índia. Não acho que eu seja patriota mas que a Índia adora a pobreza. Para um sem teto, homem pobre como eu, seria fácil viver aqui. Neste país, um homem que usa uma tanga, viaja na terceira classe, come pouco e não tem casa, é adorado.

Minha irmã mais velha Bharati disse, ‘Você parece muito jovem.’ Você sabe que tenho apenas trinta e cinco anos mas parece que sou mais jovem porque não me desgastei com sexo como a maioria dos jovens.” Referindo-se a sua rotina diária, ele disse, “Levanto de manhã cedo. Em geral durmo nove horas por noite e uma hora de tarde. Corro durante uma hora. Faço shirshasan e os exercícios físicos de Mueller durante vinte minutos. O resto do tempo passo refletindo – realmente o que faço, não posso falar. Algumas vezes escrevo meus pensamentos. Não gosto de ler mas, se o faço, gosto dos trabalhos de Bernard Shaw, Galsworthy e outros autores assim. Estou sempre num estado de alegria. Não tenho outras emoções como raiva ou ciúme.”

“Não lembro de rostos e nomes de pessoas em geral. Não tenho preferências em minha afeição. Para mim, meus seguidores, ou pessoas que me entendem, ou o homem na rua, são todos iguais. Este sentimento não esteve sempre comigo desde o início mas cresceu gradualmente. Não tentei cultivá-lo.”

Krishnaji dirigiu-se a todos como ‘senhor’. Um dia B dirigiu-se a ele como ‘senhor’. Com um gesto como se estivesse tonto ele disse, ‘Oh! Vou desmaiar’. B disse; “Mas você chama todos de ‘senhor’!” A isto ele respondeu, “Sim, eu chamo, mas é porque eu sempre esqueço os nomes. O modo mais fácil é esse. Assim não preciso lembrar todas aquelas coisas complicadas.”

Se o ajudante de Krishnaji fosse tratado de criado, ele não gostava. Como uma criança ele argumentaria, “Ele não é meu criado, é meu amigo. Velu é meu companheiro”. Tanto quanto possível ele fazia suas próprias coisas. Carregava sua própria bagagem. Quando um servente entrava em seu quarto carregando algo, ele apertava suas mãos como para aliviá-las do cansaço. Se visse um pedaço de papel ou qualquer lixo jogado descuidadamente, ele o recolhia e colocava no local adequado. Krishnaji inclinava-se para todo homem, sem restrição ao seu status, antes que o outro se inclinasse.

No dia anterior a sua partida de Ahmedabad, alguns cidadãos deram uma recepção em sua homenagem. Algumas moças cantaram e dançaram na frente dele. O programa era longo, tedioso e desinteressante. Algumas vezes era até ridículo e não podíamos evitar o riso. Estávamos sentados atrás. Krishnaji e minha irmã mais nova Geeta estavam sentados em frente num gadi, um colchão. Krishnaji perguntou a Geeta, “Você gosta disso?” ela respondeu: “Não muito. É chato.” Um pouco depois ela disse, “Você gosta?” “Sim, eu aprecio porque os atores parecem gostar,” respondeu.

Perguntamos a Krishnaji se ele era o filho de Deus. Ele nos disse, “O que de bom trará para vocês saber disso? O que farão com este conhecimento? Se vocês querem saber, lhes direi sozinho.” Quando perguntamos sobre seus poderes sobrenaturais, ele pareceu hesitar. Desistimos de fazer tais perguntas por serem muito pessoais. Algumas pessoas dizem que alguns anos atrás, quando estava falando, ele desmaiou por alguns minutos e falou alguma coisa em verso (isto foi gravado). A platéia viu-o transformado na figura de Cristo ou Krishna.

É certo que ele pode curar. Um homem com a espinha quebrada durante a guerra, foi curado com seu toque. Na América, uma mulher cega que foi operada várias vezes, foi curada por ele e podia ver. Minha mãe teve febre; a temperatura dela baixou graças a ele. Perguntei-lhe, “Como você cura? Você aprendeu com alguém?” Ele me disse: “Tenho este poder desde criança. Não sei como faço isso. Não aprendi com ninguém.” “Você pode se curar?” “Acho que não.”

Perguntamos a Krishnaji por que a doutora Besant o escolheu. Ele respondeu, “Eles disseram que alguns Mestres que vivem no Himalaia disseram à doutora Besant que eu era um Avatara (uma encarnação). O Senhor Choudhan e alguns outros Gurus dirigem este mundo através do Senhor Maitreya e outros Mestres.”

Uma vez, andando de carro, ele disse, “Naturalmente todos têm que dizer mentiras convencionais. Meu irmão e eu éramos muito hábeis nisso. Uma vez fomos convidados como principais homenageados para uma festa em Londres com a doutora Besant. Você sabe, ela é muito minuciosa a respeito de compromissos mas nós estávamos atrasados trinta minutos! Ela chegou lá antes de nós. ‘Por que chegaram tarde?’ ela perguntou. Tentamos parecer perturbados. ‘Tivemos um terrível acidente com um ônibus’, dissemos. Ela pegou nossas mãos e disse muito triste e docemente, ‘Meus queridos! Estão machucados?’ Sabe como sentimos por contar essa mentira?” No caminho Krishnaji recitou shoklas (versos) sânscritos. Ele tem uma voz ressonante e canta com grande emoção.

Krishnaji conhece muitos jogos de salão e externos também. Uma noite, depois do jantar, ele estava querendo muito jogar conosco. Nós preferíamos conversar com ele e não queríamos jogar. Ele sugeriu cerca de uma dúzia de jogos mas nós não conhecíamos nenhum. Ele disse brincando, “Vejo falhas na educação de vocês. Vocês devem conhecer jogos. Perderam muito da infância.” Então ele lembrou como se divertia quando menino jogando hóquei e outros jogos.

Krishnaji costumava contar anedotas engraçadas. Um garoto inglês perguntou a Sir Edwin Lutyens, ‘Por que Deus fez homens negros e brancos?’ Sir Edwin respondeu, ‘Para jogar xadrez com eles.’ A mãe de um menino de quatro anos disse ao garoto, ‘Amanhã você tomará óleo de castor.’ O garoto fez uma enorme confusão e chorou mas a mãe foi inflexível. No dia seguinte o menino não foi encontrado. Depois de muita procura, ele foi achado numa rua nove milhas distante!

Ele achou nossa região rural muito árida e ficou imaginando por que Gandhiji escolheu tal lugar para seu ashram. Gostou muito dos macacos. Disse divertido, “Eles parecem com meus irmãos.” Dissemos, “Seguramente você não quer dizer isso.” “Claro que sim. Digo que eles parecem com meus irmãos.” Krishnaji gostava de animais. Gostava de filmes com animais. Aqui em nossa casa ele costumava brincar com meus pássaros durante horas. Era visto muitas vezes admirando os cisnes no lago. “Eu costumava persegui-los na Holanda. Muito divertido!”, dizia. De manhã ele corria ao longo do caminho junto ao muro de nosso jardim. Quando via um pássaro ou chegava no aviário, parava.

Onde fosse visto, correndo ou caminhando, havia um sorriso constante em seu rosto. Krishnaji também gostava de cachorros. Nosso pequeno cachorro pequinês, Remus, aproximou-se dele. Nós dissemos, “Tenha cuidado, ele morde.” Mas Remus foi amistoso com ele e Krishnaji afagou-o um pouco. “Ele deve ter sido amolado por alguém,” ele disse. “Quando éramos garotos em Londres, tivemos cachorros. Nós os mimamos e perseguimos tanto que eles desenvolveram um temperamento terrível.” Um dia fomos ao rio. Ele ficou na areia e jogou pedras para encorajar nossa cachorra, Belle, a correr atrás delas e trazê-las para ele. Krishnaji gritou em grande excitação, “Que preguiçosa! Vá! Traga de volta!”

Embora tivesse uma memória muito pobre para a maioria das coisas, conhecia a montagem de cada carro e lembrava os nomes dos proprietários e as ocasiões em que andou de automóvel em grande velocidade. No dia 29, ou seja, no dia de sua partida, fomos à beira do rio para um passeio e nosso carro atolou na areia. Ele empurrou-o com entusiasmo juvenil. Sentou ao volante e tentou acelerar. Cavou a areia onde as rodas afundaram. Krishnaji não agüenta calor ou poeira mas esqueceu de tudo na tentativa de resgatar o carro. O lugar era cheio de espinhos. Ficamos machucados e ele deve ter se ferido também. Sugerimos que devíamos voltar em algum outro carro mas ele estava tão excitado que não descansaria enquanto o carro não saísse. Ele nos disse que quando era jovem gostava de construir motores de carro.

Na mesma tarde, antes de ir para a estação de trem, meu pai deu a ele duas mil rupias. Meu pai disse, “Por favor, não considere isso arrogância de rico. Ofereço isso a você por amizade, do mesmo modo que você nos deu seus livros. Espero que você aceite.” Krishnaji disse, “O que farei com isso, senhor?” Meu pai insistiu. Krishnaji perguntou, “Senhor, gostaria de doar para caridade?” Meu pai respondeu, “Ficaríamos muito felizes se você utilizasse para você mesmo.”

Antes de sair de nossa casa, ele foi ao encontro de cada empregado e inclinou-se com respeito. Alguns deles ficaram por trás das portas. Ele procurou-os e tirou-os dos cantos. Um criado disse a meu pai depois, “Muitas pessoas chegaram e partiram mas só hoje sentimos por alguém deixar a nossa casa.”

Este foi nosso primeiro encontro. Na segunda vez, depois de alguns meses, nos encontramos em 26 de outubro de 1933, no M. V. Victoria em Gênova. Esperamos ansiosamente pela chegada dele ao navio nessa tarde às três e meia. Quando o vimos fomos em sua direção. Ele nos saudou com afeto e disse, “Onde estão seus pais?” Eu disse, “Minha mãe não está bem e eles não puderam vir”. “La –la, grande Scott! Será divertido. Tomarei conta de vocês. Vocês jantarão conosco?” Às quatro nosso vapor partiu e tomamos chá no convés. Como éramos vegetarianos, Krishnaji ficou ocupado resolvendo nosso cardápio e arrumando a mesa. Ele não permitiu que fizéssemos nada. O mar estava encrespado. Meus irmãos  mais novos sentiram-se mal e foram direto para a cama. Minha irmã Geeta estava deitada no beliche ao lado do meu. Krishnaji entrou. Não reconheci sua voz. Ele disse, “Minha criança, você não se sente bem. Está sozinha. Meu irmão também ficava enjoado. Eu cuidava dele. Deixe-me cuidar de você.” Ele se sentou e me viu pela fresta da cortina e disse a Geeta, “Ela está meditando?” Aí disse, “Você se sentirá melhor com uma bolsa de água quente; onde ela está?” Geeta respondeu, “Está numa das minhas três malas. Você não vai encontrá-la.” Mas Krishnaji disse, “Não se preocupe, procurarei em todas elas e arrumarei depois.” Ele foi para o banheiro e encheu a bolsa com água quente. Ouvi o som da água correndo e levantei, mas ele não me deixou fazer nada.

Então fomos para o beliche de meu irmão e conversamos por uma hora. Ele quis saber o que fizemos na Europa e que peças tínhamos visto. Ficou um pouco surpreso ao saber que ficávamos acordados até tarde e víamos uma peça por noite e que até fomos ao Folies Bergere e ao Moulin Rouge, mas não demonstrou sua desaprovação. Pediu nosso jantar e fechou as vigias e disse, “Chamem durante a noite, se precisarem.”

Chegamos à Nápoles na manhã seguinte e passeamos juntos pelo lugar. Na manhã seguinte, depois de sairmos de Nápoles, eu disse a ele, “Quero lhe contar o que aconteceu comigo depois que você saiu de Ahmedabad. Quando você chegou a nossa casa ouvi-o atentamente e meditei sobre suas palavras com atenção. Houve um grande caos, uma luta, um  conflito, e houve uma revolução real em mim depois de um longo período de estagnação.”

“Qual a sua idade?” ele perguntou  surpreso. “Tenho dezoito, Krishnaji, pode haver uma idade determinada para refletir sobre certas coisas? Não posso deixar de pensar nestas questões agora mesmo. Algumas pessoas me dizem que sou muito jovem e que estas questões sobre a vida devem ser pensadas aos cinqüenta anos.”

“Não, não, está errado. Aí a mente fica velha e não funciona adequadamente. Nessa idade a matéria fica tão entranhada que é impossível libertar-se. Perguntei sua idade porque se você pensar muito seriamente pode prejudicar seu crescimento. Sabe, você ainda está crescendo.”

Eu estava um pouco nervosa quando comecei a contar minhas experiências. Ele disse, “Você está nervosa.” Um pouco depois comecei novamente, devagar: “Eu vi que estava infeliz. Havia uma grande desarmonia em minha vida. Sem conhecer os verdadeiros valores da vida, eu era insignificante. Vivia num estado de medo constante da opinião dos outros, etc. Eu não era auto-suficiente nem auto-confiante. Gastava minhas energias em coisas sem importância e assim não tinha lazer. Refletindo, examinei profundamente as causas de tudo isso e elas se desfizeram como uma nuvem, e o brilho do sol chegou em mim. Minhas maneiras, meu discurso, minha vida, tudo em mim mudou. As pessoas perceberam esta mudança notável e acharam que eu tinha me auto-disciplinado, mas tudo isso surgiu tão espontânea e naturalmente que eu mesma não sei como a mudança aconteceu.

“E quando eu sentava pensando, sentia algo movimentando-se em mim. Algo que me fez chorar e rir e vibrar de contentamento. Quando eu era criança, costumava adorar imagens mortas e oferecer flores e lanternas. Crescendo questionei a adoração e até a própria existência de Deus. Ninguém podia dar a resposta certa às minhas perguntas. Eu não podia acreditar num Deus lá no céu, que inexoravelmente punia e premiava. Assim, fiquei paralisada. Este foi o período mais miserável para mim. Eu estava perdida. Aí você chegou. Acho que tenho um vislumbre desse algo que é eterno além do transitório; infinito além do finito, o verdadeiro eu e a essência de tudo. Fiquei extremamente feliz e algumas vezes fico quase num estado de êxtase. O vislumbre disso só é possível quando minha mente e coração estão em completa harmonia. A harmonia só existe quando há esta perfeição. Pela perfeição da mente quero significar uma mente que está equilibrada em todas as circunstâncias todo o tempo. Pela perfeição do corpo quero dizer um corpo que é saudável e bonito.

“Meu desejo constante tem sido encontrar esse algo que eu senti mas não vi. É como uma flor escondida cujo perfume conheço mas não sei como é. Tenho um grande anseio disto. Essa sede só pode ser saciada quando sou perfeita. Tentei  dirigir meus passos nesse caminho da perfeição que leva à realização de meu verdadeiro eu.”

Era hora do almoço, e um passageiro interrompeu. Nós éramos interrompidos muitas vezes então, no dia seguinte  fomos para o camarote e eu perguntei, “Quando você estava em Ahmedabad você disse, “eu compreendi.” O que você compreendeu? Qual foi o processo e quais os estágios de sua compreensão?”

Ele respondeu, “Eu compreendi. Se você pergunta o que compreendi, não posso descrever como descreveria um objeto sólido. Posso lhe dar uma idéia da beleza do pôr do sol ou da doçura do açúcar se você não experimentou o que é a beleza, o que é doçura?”

“Então existe alguma coisa que é seu próprio eu ou alguma coisa que existe separada de você?” perguntei

“Existe e não existe. Desculpe por lhe responder assim. Mas não posso dizer mais nada,” Krishnaji falou.

Em resposta a Segunda parte de minha pergunta, disse, “Não segui nenhum processo. Desde que eu era um garoto muito pequeno, era tremendamente insatisfeito com tudo. Eu costumava criticar tudo. Critiquei a doutora Besant e todos os meus amigos. Sabe o que esta crítica significa? Ela é destituída de todos os preconceitos pessoais. Não é meramente um jogo intelectual mas é para o verdadeiro entendimento. É onde o intelecto e as emoções estão ligados. Quando critico outros, estou me criticando; e agi adequadamente.

Eu experimentei tudo de fato ou experimentei intelectualmente. Tentei tudo e vi a futilidade disso. Deste modo continuei – continuei desistindo de coisas que não me satisfaziam. Finalmente cheguei à compreensão da Imortalidade – Deus – Nirvana, ou que nome se dê.”

“A senhora Besant e outros tentaram ensinar-lhe práticas espirituais e impor certas idéias a você?”

“Graças a Deus! Não. Se tentassem eu não os levaria em consideração.”

“Mas você disse que tentou certas práticas para a kundalini, que jejuou, e leu livros sobre isso. Você passou pela vida severa de um asceta.”

“Sim, alguém disse, ‘Tente isto’. Tentei por algum tempo e parei. Do mesmo modo que algumas mulheres cruzaram meu caminho, apaixonaram-se por mim, mas eu deixei passar. Elas ficaram zangadas comigo e me deixaram. Não acho que as práticas espirituais me ajudaram. Se ajudaram, não sei. Meu processo foi de negação. Pode ser que este seja o único modo.”

Eu disse, “É verdade que você conheceu a futilidade dessas coisas e abandonou-as. Mas, e aqueles como nós que não têm tal conhecimento? É errado então praticar tais coisas?”

“Ninguém pode impedi-la de fazer o que você quer. Mas eu digo que para passar da infância para a juventude, não é necessário ter sarampo, catapora ou varíola para ter conhecimento. Não é necessário passar pelo processo da Ioga, dogma ou qualquer prática. Eu não tinha meta. Não tinha idéias definidas sobre o Resultado. Seguindo um caminho prescrito, dogma, teoria ou crença religiosa, você estreita sua visão da verdade. Assim, como você pode compreender o Todo?”

Era hora do jantar e nossa conversa terminou.

A última frase de Krishnaji foi como uma rajada violenta. O que eu fizera? Eu estava na escuridão antes e uma luz foi acesa; vi meu caminho nessa luz. Aí comecei a construir paredes a minha volta e a luz ficou obscurecida. Eu estava perdida e, tola como era, não sabia. Saí de uma escravidão para cair em outra. Tinha visto a luz mas a cegueira me surpreendeu. Refleti um pouco, comecei a ler e maculei meu poder de reflexão. Eu havia lido Vivekananda, o grande pensador e intérprete do Vedanta no século passado, e aceitei a idéia da não-dualidade. Eu nem mesmo tive um vislumbre da verdade, e acreditei que a não-dualidade era a verdade, pois tais crenças nos dão uma sensação de conforto e bem estar. Construíra grandes edifícios sobre estas falsas premissas e uma brisa suave derrubou toda minha estrutura. Estou novamente  perdida.  Sinto-me  miserável e inquieta. Percebi que nada posso fazer com minha perspectiva limitada. Não havia necessidade de entrar na controvérsia da dualidade e não-dualidade. Se a compreensão viesse, chegaria por conta própria. Eu tinha que conhecer a vida – tinha que saber do presente.

Na manhã seguinte, Krishnaji me disse, “Qual o efeito das minhas palavras?”

“Sinto-me extremamente miserável. Estou novamente perdida. Sinto-me muito pequena.”  Então contei a ele tudo que se passara ontem. “Tenho que começar novamente. Estou muito insatisfeita comigo mesma e com tudo a meu respeito.”

Desse dia em diante não conseguia mais rezar mala (o terço), nem chamar omkar, nem meditar sobre alguma idéia em particular. Vi que quando virava algumas contas de meu mala, minha mente não se fixava mais nele. Só a mão funcionava mecanicamente. Eu recitava o Gayatri Mantra mas a mente ficava divagando, como se eu quisesse que tudo acabasse, como se tudo em mim estivesse ansioso para terminar. Forçando-se a mente e as emoções em tais moldes, elas são destruídas. É verdade que há momentos de contentamento em que a pessoa sente-se como se recitasse o Gayatri, mas não se deve fazer nada com obstinação. Toda manhã vejo o sol nascer e sinto tal alegria que quero dizer o Gayatri. Nisso há vida. Não há motivo. Não farei nada a partir de convenção e rigidez. Não farei isso com o desejo.. Não me forçarei a meditar sobre Soham, ou Satchidananda. Isto é o natural para mim:

(1) Sentar relaxadamente e deleitar-me com a beleza a minha volta.

(2) Olhar os movimentos de minha mente e permitir que eles mostrem seus efeitos.

(3) Há momentos em que me sinto submersa em algo inexplicável. Estes momentos devem ser permitidos mas não buscados. É assim que deve-se observar os momentos em si mesmo, mas não matar ou controlar. É assim que se recupera o bem estar.

Pelo voto do silêncio, encontrei paz de mente. Nesse caso, devo mantê-la. É bom se alimentar de frutas por um dia em cada quinze. Continuarei fazendo isso.

Minha experiência foi que ler muitos livros sobre religião e sobre escolas filosóficas obscurece a capacidade de pensar. Torna a mente da pessoa estreita e dogmática. A pessoa começa a julgar as coisas com idéias pré-concebidas e valores falsos. Tendo compreendido isso, não tenho intenção de ler certos livros por um tempo.

No dia seguinte eu disse a Krishnaji, “Você diz que só há um caminho, e as pessoas que compreenderam ou pelo menos afirmam que o fizeram? Elas são hipócritas?”

“Se você me der alguns exemplos concretos posso dizer o que penso delas.”

“Quero dizer os milhares de sanyasins que praticam determinada ioga e tornam-se iluminados.”

“Eu os chamo lunáticos. Lunático quer dizer a pessoa que está sempre pensando sobre a mesma idéia. Estes sanyasins agarram-se a uma idéia, seguem pensando nela o tempo todo, e hipnotizam e matam completamente suas mentes. Eles imaginam uma coisa por tanto tempo que ela torna-se realidade para suas mentes destruídas – chamam a isso auto-compreensão.”

“Então você conhece alguém que você chamaria de iluminado?”

“Deve haver, eu não sei.”

Em outra ocasião ele disse com grande angústia, “Todos estão buscando a imortalidade pessoal e a auto-preservação. É isto que está errado com este mundo.”

Disse a ele, “Não conheço ninguém que busque alguma coisa mais que essas duas metas.”

“Eu apenas vivo; não tenho esse apego à vida.”

Perguntei, “Se alguém lhe batesse, você não bateria de volta?”

“Acho que não,” ele respondeu.

Um dia eu disse, “Você viaja muito e sente-se desgastado. Deve descansar.”

“Gosto muito do meu trabalho. Mais dois anos e aí eu gostaria de ficar em reclusão por um tempo – talvez no Himalaia. Antes disso, se eu morrer, morri; não pode ser evitado.”

Krishnaji, como antes, tinha dor na cabeça. Por esta razão ficou por conta própria na Holanda durante um mês. Eu perguntei a ele, “Já que você tem esta dor, por que não consulta alguns médicos?”

Ele disse, “Não é dor. É um inexplicável contentamento.”

Algumas vezes ele exclamava, “Que mundo! Oh, que mundo!” Então um dia perguntei a ele, “Krishnaji, você não se sente pesaroso ao ver a desigualdade entre homem e homem nesse mundo? Muito freqüentemente eu penso que temos milhões para gastar conosco enquanto existem muitos que não têm para as mínimas necessidades da vida. Algumas vezes a pessoa pensa em se desfazer de todas as posses.”

“Sim”, ele disse, “sente-se dor ao ver esta desigualdade. A tentativa de um homem de abrir mão de suas posses não vai melhorar o mundo. Ao contrário, vai haver mais um pobre no mundo.”

“Então quer dizer que o indivíduo não deve fazer esforço já que o mundo não mudou? Como pode o mundo mudar se o indivíduo não muda?” perguntei.

“Se você se compadece de um homem e desiste de sua riqueza, isso não vai ajudá-lo. Suponho que você conhece a história do milionário americano. Alguns comunistas foram até ele e disseram “Milhares de pobres estão passando fome. Seu dinheiro é desperdiçado, nos dê ele.”

O milionário disse, ‘Perfeitamente. Quantos dólares vocês acham que eu tenho?’

‘$100.000.000’

‘E quantas pessoas vocês acham que há neste país?’

‘100.000.000’.

‘Bem, então peguem tudo que tenho e dêem um dólar a cada um’.”

“Então”, perguntei, suponho que você não aprova o voto de pobreza e de viajar na terceira classe de Gandhiji?”

“Se ele faz isso para melhorar a condição dos pobres, não será de nenhuma valia. Ele tem viajado na terceira classe há muitos anos mas isto  melhorou a condição dos pobres?”

“Antes as pessoas tinham vergonha de ser pobres e de andar na terceira classe, mas Gandhiji lhes deu dignidade. Se todos seguissem isso e ficassem pobres e viajassem na terceira classe, não haveria ricos, e não haveria distinção de classe.”

“É impossível que isso aconteça. Se acontecer é porque acham que Gandhiji fez e, por isso, faremos também. Não há mudança no coração. A atitude não mudou. A pessoa pode mudar seu comportamento externo mas a diferenciação na mente ainda permanece. Atitude é muito importante. Você pode viajar na primeira classe ou na terceira, pode ser rico ou pobre, isso é de pouca conseqüência.”

“Então por que você não tem posses?”

“As pessoas valorizam posses e dinheiro não por que são valiosos mas porque são meios de se possuir outras coisas que se considera valiosas. Eu não tenho ambição de possuir outras coisas, assim não dou valor a propriedades e dinheiro. Que necessidade tenho de dinheiro? Existe felicidade maior na vida de um pedinte. Com tal atitude é certo não ter posses mas não é certo compadecer-se de alguém e abrir mão de suas posses.”

Depois desta conversa, fomos para a sala de jantar e vimos muitos ricos marajás e magnatas dos negócios. Eu disse, “Alguma coisa tem que ser feita. Que contraste entre o rico e o pobre.”

Krishnaji respondeu, “Os ricos devem ser pesadamente taxados pelo governo.” Uma vez mais ele me disse, “A vida de um pedinte é melhor.”

Eu falei, “Como pode alguém tornar-se um pedinte? Quem o alimentaria?”

Ele pôs a mão na testa. “Para tornar-se um pedinte você deve ter inteligência verdadeira.”

Eu disse, “Olhando para a história do mundo, passada e presente, o homem parece não ter mudado. É verdade que ele alterou seu modo de viver e seus costumes, mas suas emoções e instintos e seus conceitos não mudaram fundamentalmente. O homem é o mesmo bruto que era.”

“É verdade,” ele disse, “mas ele tem que mudar ou não sei que desgraça se abaterá sobre o mundo.”

“Você acha que todos deveriam aceitar a vida de que você fala, e que o mundo seria ideal?”

“Sei que todos não gostariam de ser como falei, mas se algumas pessoas se tornassem a imagem da perfeição, formariam o núcleo desse mundo ideal.”

Em outra ocasião ele disse, “As pessoas dizem que nenhum ser humano pode ser perfeito porque para elas a perfeição significa uma condição onde nada resta para se alcançar. Acreditam que esse homem é fraco e pecador e tem todas as limitações do corpo e, assim, não pode ser perfeito.”

“Na técnica sempre há algo para se alcançar. A ciência pode sempre evoluir desenvolvendo novas coisas; mas a mente é diferente. Deixe-me lhe perguntar, o que é perfeição?”

“Não tenho idéia clara. Talvez a perfeição de mente mostre o perfeito equilíbrio em todas as condições todo o tempo.”

“Não, vou lhe responder. Para mim, perfeição consiste numa mente realmente crítica, inteligente e alerta. Imagine uma cabra ou um burro amarrado a uma corda que está fixada num ponto. A cabra corre até um certo ponto, dá voltas dentro da circunferência. Sua liberdade é limitada. Mas considere uma cabra que não está presa em nenhum ponto. Aí sua trajetória será ilimitada e livre. Tal é a perfeição. Perfeição é uma superfície sem raio e sem um centro fixo.”

Eu disse a ele, “Supondo que eu faço algo e sei que  me prejudica, mas ainda não sei muito bem. Desejo aquilo e não posso largar. Leva muito tempo para eu compreender completamente o dano que me faz. Nessa circunstância, devo controlar-me e resistir ao meu desejo até entender completamente e desistir pelo conhecimento?”

“ É exatamente assim que deve ser. Conhecer bem a falsidade é livrar-se dela pronta  e espontaneamente. Isso requer verdadeira inteligência. E se você não a possui, deve controlar-se. Não há outra maneira. Conheço um homem cujos médicos preveniram-no contra o fumo mas ele não compreendeu a que ponto o prejudicava. Quando ele fica doente, se controla e abre mão. Logo que se recupera, volta a fumar. Assim ele parece oscilar entre bom e mau. A vida segue assim.”

Daí eu compreendi que ele quer dizer que esse controle só pode acontecer pela iniciativa da pessoa. Qualquer ação que não é forçada e não é imposta funciona para o bem mais elevado. Perguntei, “Existe algo como bem e mal neste mundo?”

“Não há bem absoluto e mal absoluto, mas ainda assim existe algo como bem e mal.”

Eu disse, “A noção de bem e mal pressupõe preconceito e idéias pré-concebidas.”

“Não, existe algo dentro de você que pode discriminar entre bem e mal.”

Nesta viagem Krishnaji tomou muito cuidado conosco. Na maior parte da viagem, ficamos juntos. Quase toda tarde tivemos discussões sérias. Eu fiz perguntas e ele  me respondeu. Algumas vezes, ao responder as perguntas, ele apresentou outras questões e me fez refletir e responder por mim mesma. Almoçamos e tomamos chá à tarde com ele. À noite, antes do jantar, ele vinha ao nosso camarote e conversávamos sobre assuntos de interesse geral durante uma hora mais ou menos. Outras vezes, nos permitíamos conversas leves e anedotas. Se ele não estivesse muito cansado, jantava conosco. De outro modo, retirava-se cedo e jantava no camarote.

Uma vez enquanto eu falava, ele interrompeu, “Um momento, um momento. Você está falando inglês. Não fale tão depressa.”

Fiquei feliz por ele me corrigir e lhe disse, “Sempre que cometermos um erro ou pareçamos engraçados em nossas maneiras, na fala ou no comportamento, você deve nos corrigir.”

Ele disse, “Vocês devem usar palavras simples e despretensiosas em inglês, como jóias para ornamentos. Indianos têm o hábito de usar palavras longas e pomposas que estão completamente em desuso. Não use a palavra ‘custoso’; ‘caro’  e ‘dispendioso’ soam melhor.”

Muitas vezes ele disse de brincadeira, “Gostaria de ser tutor de vocês.” No verso de um menu, o senhor Patwardhan, um advogado, escreveu os termos de um contrato no qual estava determinado que Krishnaji prometia ser nosso tutor em inglês durante seis meses com o salário de dez mil libras. Krishnaji, Patwardhan e eu assinamos, e ele tornou-se um verdadeiro documento legal!

Pedimos que ele nos ensinasse hábitos alimentares corretos e boas maneiras à mesa. Ele disse, “Mantenha seu prato limpo. Beba água  meia hora antes ou depois mas não durante as refeições.” Ele nos mostrou três ou quatro jeitos engraçados de comer. Alguns de nós comíamos assim. Rimos muito ao ver como parecíamos ridículos. Por exemplo, muito antes do bocado chegar a nossas bocas, nós a abríamos como se estivéssemos ávidos para engoli-lo.

Os secretários de Krishnaji, Rajagopal e Patwardhan estavam com ele nesta viagem. Rajagopal nos perguntou um dia, “O que vocês achariam se Krishnaji casasse?”

“Nada, mas as pessoas falariam.” Então perguntamos a Krishnaji, “Por que você não casa?”

Krishnaji respondeu, “Não sinto necessidade. Quando a pessoa não é auto-suficiente, precisa de alguém para complementá-la nas necessidades físicas, econômicas e outras. Não sinto tal insuficiência e, assim, a questão do casamento não é considerada.”

Muitos passageiros do navio acharam que éramos filhos de Krishnaji, ou pelo menos que minha irmã mais nova de dez anos, Gira, era seu filho, já que ela sempre usava roupas de menino. Krishnaji costumava chamá-la “minha mãe adotiva”. Algumas vezes na mesa de jantar ele disse de brincadeira, “Gostaria de poder casar com vocês, senhoras”.

Nós retrucamos, “Isso mostra que você gosta de nós de um modo especial.”

“Então deixe-me corrigir. Queria poder casar com todos vocês.”

Aí nós dissemos, “Você é até mesmo maior que o Senhor Krishna”. Então nós arreliamos dele, lembrando das vidas passadas de ‘Alcione’ (um livro publicado pela Sociedade Teosófica sobre as vidas passadas de Krishnaji), e ele ficou muito acanhado.

Passamos uma temporada maravilhosa com o senhor Patwardhan. Fizemos muitas perguntas e ele nos deu muitos detalhes e fatos interessantes sobre Krishnaji. Quando ele era garoto, quatro ou cinco meninos de sua idade prometeram dedicar suas vidas e servi-lo até a morte. No começo, Nitya e Yadunandan Prasad estavam entre esses e hoje Rajagopal tem sido sua companhia constante. Os dois primeiros morreram e agora Krishnaji e Rajagopal ficam juntos como dois irmãos.

Toda tarde ficamos com Krishnaji no convés e procuramos Vênus, a estrela vespertina. Quem a vê primeiro, mostra para os outros.

Em Aden, nos divertimos muito observando do tombadilho os mascates de Bora em barquinhos vendendo roupas de seda baratas e vulgares. Durante horas os passageiros de nosso barco e os mascates barganhavam por aqueles artigos. As coisas que eram oferecidas inicialmente a sessenta rúpias, acabavam vendidas a dez! Todas essas transações eram conduzidas aos gritos e através de cestos amarrados a cordas. Os mascates no mais alto tom: “Último preço, quanto eu disse”. Durante muito tempo Krishnaji relembrou esta cena e nós rimos muito.

Chegamos a Bombaim e ficamos lá por uma semana. No dia seguinte fomos à casa do senhor Ratansi Moarjee, que era seu anfitrião. Khansaheb Abdul Karim Khan estava fazendo um concerto especial para Krishnaji. A voz de Abdul Karim era como uma flauta. Krishnaji gostava muito de sua música e assim, toda vez que ele estava em Bombaim, Khansaheb cantava para ele. As árias favoritas de Krishnaji estão nos ragas ‘Todi’, ‘Bhairavi’, ‘Jaunpuri’ e ‘Bajeshree’, características da música clássica indiana.

No terceiro dia fomos à palestra de Krishnaji. Ele pareceu ter grande domínio sobre sua linguagem, seus pensamentos, sua expressão e dicção. Desta vez eu pude entendê-lo com maior tranqüilidade.

No quarto dia foi organizado um debate com a participação de muitas pessoas. Elas interromperam Krishnaji muitas vezes. Nem o deixaram explicar já que simultaneamente formavam grupos menores e discutiam pontos entre eles mesmos. Krishnaji pareceu não se importar pois o comportamento deles refletia seu entendimento. Ele disse para uma das pessoas com branda reprovação. “Agora, J, quantas vezes, talvez em todas as palestras, você e os outros me ouviram e estou certo que não entenderam uma palavra.”

A tarde fomos a Juhu com ele. Lá bebemos água de coco, comemos e caminhamos pela praia. O sol estava se pondo e o céu estava vermelho. A areia molhada da praia também estava colorida de vermelho. A praia é em forma de crescente e bela com os coqueiros. Duas garotas dançavam na beira da água com os pés tocados pelas ondas que iam e vinham. Krishnaji as viu e começou a dançar. Ele erguia as mãos e corria. Pensamos que ele poderia voar como um pássaro. Depois competimos para ver quem corria mais e quem jogava cocos mais longe.

Nessa noite, com meus irmãos e irmãs, fui para casa em Ahmedabad.

Pela segunda vez Krishnaji veio a Ahmedabad logo em seguida. Toda manhã eu o vi um pouco e fui para a aula depois. Às 10 ou 10.30h eu voltava e nos encontrávamos na sala de estar, onde todos iam chegando aos poucos até formarmos um grande círculo. Krishnaji estava animado e falou com grande gosto. Ele tinha estado na Grécia recentemente e falou a respeito com profundo enlevo. “Ninguém atingiu a perfeição da Grécia, excetuando naturalmente a antiga Índia. Até hoje vamos até lá em busca de inspiração”.

Depois do almoço sentamos para conversar por uma ou duas horas. Descansamos a tarde, tomamos chá juntos e passeamos alegremente ao longo do muro do jardim, completando quatro ou cinco voltas, o que dá cerca de quatro ou cinco milhas. Aí saímos para um passeio ou ficamos em casa conversando.

Algumas tardes ele leu a Bíblia para nós. Ele gostava particularmente do livro de Job, Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos e de alguns Hinos. Ele disse, “Lady Emily lê a Bíblia todo dia. Quando éramos garotos, ela lia algumas partes para nós. Eu gostei tanto que decidi ler dois capítulos por dia”” Aí acrescentou, “Não concordo com o pensamento, mas acho a linguagem bonita. Toda vez que leio, me emociono. Li as Bíblias francesa e italiana mas essas traduções nada são comparadas com a inglesa. Se eu tivesse que ensinar inglês a alguém, começaria com a Bíblia.”

Ele abriu um capítulo do Cântico dos Cânticos e disse, “É tão ardente que eu realmente não devia lê-lo para vocês jovens. É de fato para ilustrar o amor do homem e da mulher mas foi interpretado mais tarde como o amor da Igreja por Deus.” Então ele leu alto para nós. Seu modo de ler foi muito bonito. Ele criou tal gosto pela Bíblia que nós também quisemos lê-la por conta própria e, assim, anotamos as passagens que ele achava serem particularmente merecedoras de serem lidas.

Uma tarde fizemos uma grande algazarra. Fomos para a sala de música. Cada um pegou um instrumento musical, tambores, castanholas, pratos, tambura, violino, acordeão e sinos, e cada um tocou do seu jeito! Krishnaji não foi menos barulhento. A situação se acalmou um tempo depois e Krishnaji começou a cantar um dhoon, coro em geral de fundo religioso, e nos juntamos a ele.

Aí Krishnaji recitou versos sânscritos. Ele conhecia stotras (hinos de conhecidos trabalhos religiosos) de cor, e mantras (versos que evocam bênçãos espirituais de divindades escolhidas, ou que criam uma condição meditativa) referindo-se a Agni (Deus do Fogo) e a adoração ritualista. Ele conhecia passagens do Geet Govinda (um longo e belo poema descritivo do poeta Jayadev sobre Krishna). Lembrou as lições dos leitores sânscritos de Bhandarkar e repetiu de cor Rama, Ramo, Rama e Gama Gachcha (formas nominal e verbal de ir). Finalizamos com jazz e algumas músicas da moda! Krishnaji cantou para nós algumas canções que ouviu nas peças populares de seu tempo como ‘Mary, Mary é minha única namorada.’ Ele disse, “Nitya conhecia tudo isso de cor.”

Tivemos um último jantar. Meu pai e Krishnaji conversaram sobre coisas absurdas e rimos com gosto. Depois do jantar a conversa foi mais séria e penetrante.

Sobre nacionalismo ele disse, “O nacionalismo não pode fazer bem ao país. Através do patriotismo e do nacionalismo, nós na Índia estamos tentando resistir aos ingleses. Talvez devêssemos ter o direito de legislar e decidir mas nós não vamos nos libertar; porque com tal liberdade ainda continuaremos tendo a mente limitada, ortodoxa, fanática, supersticiosa e tirânica e ainda permaneceremos exploradores. Hoje temos exploradores brancos e então teremos exploradores pardos.”

Meu irmão Vikram interrompeu, “É melhor termos nossos próprios exploradores do que termos estranhos para nos explorar.”

Krishnaji respondeu: “Não, absolutamente. Para mim é a mesma coisa se um homem branco ou um pardo rouba meu negócio. No final, eu o perdi. Eu sentiria menos se um homem pardo o tirasse de mim? Este é um sentimento meramente vazio.”

A isto Vikram disse, “Vamos presumir que nosso povo é tirânico, fanático e ortodoxo, e que quando eles assumirem o poder serão até mais exploradores que os ingleses. Mas depois de um tempo eles aprenderão como dirigir e se desenvolverão. Devemos primeiro expulsar os ingleses. Para isto devemos nos tornar patriotas e nacionalistas.”

“Apenas expulsar os ingleses não vai melhorar as coisas. Devemos mudar nossas emoções, nossos pensamentos e nossa atitude. Nisto está a liberdade. Nacionalismo; detesto a palavra. Devia haver um Estado Mundial.”

“Nós não temos poder na Índia e não temos liberdade, como podemos então formar um estado mundial?” Vikram persistiu.

“Se, através de um Governo Nacional se chega a um Estado Mundial então isso devia ter sido alcançado na Europa há muito tempo atrás. Ao contrário, vemos cada país com sua perspectiva estreita tentando fazer-se poderoso e preparando-se para a guerra. Se continuar assim, a Europa será dominada pelas guerras e será destruída. Nós também queremos cultivar este nacionalismo e trazer destruição para o país?”

Meu pai acrescentou, “Como podemos dizer que a Índia é nosso país? Punjab, Gujarat, Madras e Bengala e todas estas províncias estão presentes no Império Britânico e são pintadas de vermelho nos mapas. Por que o Punjab não deveria ser um país separado assim como Gujarat também? Por que as pessoas destes dois países não deveriam desenvolver o nacionalismo? Por que não deveriam ter reinos separados e lutar entre si? Mesmo assim, quando expulsássemos os ingleses, tentaríamos manter Gujarat e Punjab sob domínio. Será como o Império Britânico, apenas uma versão menor de um Império.”

Krishnaji disse, “Alguns de nossos líderes parecem estar enganados ao tentar imitar os políticos e economistas da Europa sem conhecerem as verdadeiras condições da Índia. Eles parecem até não estar atualizados em suas idéias. Cerca de cinqüenta anos atrás isso que é descartado como uma ideologia equivocada foi tomado como programa político por nós. Os problemas da Índia são diferentes. O modo de resolvê-los não é imitar mas coordenar nossos pensamentos e emoções e nos tornarmos uma entidade para a realização da liberdade.”

“Se nossa luta não está nos caminhos adequados, quais as medidas que você empregaria?”

“Daria passos no sentido de libertar-se do dogma, costume, superstição e ignorância. Despertaria pela educação, livros e jornais.”

Uma tarde meu pai e Krishnaji discutiram como eles planejariam a Índia se fossem ditadores. Eles pareciam concordar em muitos pontos: (1) Abolir as crenças religiosas como são agora. Manter os templos como obras de arte e para usá-los como utilidade pública. (2) Estabelecer um padrão mínimo pelo qual todos teriam suficiente alimento, roupa e moradia. Ao mesmo tempo a pessoa teria amplo lazer. Seria escolha de cada um gastar ou acumular o que lhe fosse dado. Depois da morte de um avarento, suas economias iriam para o Estado. (3) Todos teriam oportunidade de serem educados e desenvolverem suas aptidões ao máximo. Livros, filmes e teatros seriam largamente usados com este propósito. (4) Casamentos seriam permitidos mas a pessoa teria que tirar uma licença antes de tornar-se pai. Outros recorreriam ao controle da natalidade e à esterilização.

Depois disso Krishnaji foi para seu quarto. Como ele estava com um sério resfriado, minha mãe e eu fomos atendê-lo. Tratamos dele com simples remédios caseiros como um escalda-pés, gargarejos e inalação. Nos retiramos às 11.00 ou 11.30 horas.