Gary M. Deutsch

KRISHNAMURTI – 100 YEARS

Evelyne Blau

PARTE DOIS: O ÚLTIMO PASSO

1985 foi um ano cheio para Krishnamurti como todos os anos tinham sido. Depois de sua estadia na Índia com o usual circuito de palestras ele voltou para Ojai. Lá ficou sob os cuidados de um novo médico, Gary Deutsch, da vizinha Santa Paula. Era bom ter ajuda especializada tão a mão assim como alguém em quem ele tivesse grande confiança.

GARY M. DEUTSCH

Clínico de Krishnamurti, Santa Paula, Califórnia.

NOTAS DE UM DIÁRIO MÉDICO

21 de março de 1985

Encontrei Krishnamurti pela primeira vez em meu consultório em Santa Paula, como fiz anteriormente com centenas de outros pacientes. Contudo, logo soube que este encontro não seria como nenhuma experiência médico-paciente que eu tivesse tido. Um homem idoso, pequeno, de pele escura, parecendo mais novo que os declarados oitenta e nove anos seria sua descrição médica padrão. Depois de conversar com ele, ficou absolutamente evidente que este não era um paciente comum.

Fui “peneirado” para ser o clínico de Krishnamurti por sua guardiã e amiga, Mary Zimbalist. Eu a tinha visto no mês anterior como nova paciente. Mal sabia eu que, enquanto a examinava, ela estava me “examinando”. Devo ter sido aprovado, pois mais tarde nesse mês Krishnaji tornou-se meu mais novo paciente célebre. O que primeiro me surpreendeu foi quanto era delicado este homem. Eu nada sabia de seus ensinamentos ou textos e menos ainda de sua fama mundial. Isto mudou imediatamente quando fui compelido a aprender sobre o homem e seu trabalho. Também fiquei impressionado com a excelente condição física do corpo de Krishnaji quando fiz seu exame físico. Para um homem de oitenta e nove anos, ele tinha pele, cabelo e dentes notáveis. Atribuí isto a sua dieta vegetariana, ao meticuloso cuidado consigo mesmo, aos exercícios vigorosos e ao sistema nervoso controlado, minimizando as pressões internas. Ele caminhava diariamente, utilizando exercícios respiratórios profundos.

25 de abril de 1985

Krishnaji acabou de chegar de Nova Iorque depois de ter discursado nas Nações Unidas. Sua diabete não tinha sido bem controlada e a medicação específica foi ajustada em meu consultório. Ele parecia totalmente saudável e passou a maior parte da visita falando de Nova Iorque, motoristas de táxi e automóveis. Ele tinha particular interesse por automóveis e como funcionavam, a estrutura, os modelos e a mecânica. Perguntou-me que carro eu usava e respondi que era um Volvo 1982. Ele balançou a cabeça com satisfação.

Maio de 1985

Li alguma coisa sobre Krishnaji, e minha esposa e eu fomos às palestras de maio de 1985 em Oak Grove, Ojai. Nessa ocasião eu não podia imaginar que esta seria sua última palestra lá. Achei sua escola e o ambiente sereno de Oak Grove tranqüilo e propício a pensamentos que datavam dos anos 70. Minha esposa Deborah e eu discutimos sua palestra no carro quando voltávamos para casa. Nós dois consideramos seu estilo instigante do pensamento e intuitivo, mas muitos de seus pensamentos e ensinamentos não pareceram práticos a nós, um jovem médico e sua esposa criando três filhos nos turbulentos anos 80. Conjeturei que a pessoa precisava buscar nos vastos ensinamentos de Krishnamurti para descobrir suas necessidades e seu estilo de vida. O fato de estarmos falando sobre isto era um começo.

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30 de dezembro de 1985

Recebi um telefonema de Mary dizendo que Krishnaji estava muito doente na Índia e estaria chegando a Ojai em 13 de janeiro de 1986. Tomei providências para vê-lo em meu consultório nesse dia.

13 de janeiro de 1986

K esteve doente durante seis meses na Índia e neste tempo perdeu aproximadamente cinco quilos. Passou a sentir-se um pouco melhor depois que chegou em casa mas estava obviamente exausto e tinha dificuldade de reter os alimentos. No exame, parecia estar diferente, pelo fato de sua cor não estar boa e a voz não estar vigorosa como antes. Testes de laboratório foram pedidos e as enzimas de seu fígado estavam extremamente elevadas, indicando ser esta uma condição mais séria.

22 de janeiro de 1986

Convenci Krishnamurti de que ele devia ficar no hospital para que tivesse alimentação intravenosa e uma sonda gástrica fosse utilizada para diminuir a distensão abdominal já que continuava com febre, vômito e não conseguia comer. Ele aceitou ir para o Santa Paula Hospital. Foi admitido na Unidade de Terapia Intensiva porque teria o melhor atendimento e estava muito doente. Inicialmente foi difícil cuidar dele no ambiente de um hospital, pois ele não era um paciente comum. Era uma celebridade mundial, mas eu tinha que tratá-lo como qualquer outro paciente com os testes apropriados ao mesmo tempo que tentar mantê-lo o mais à vontade possível. Nós o acomodamos na UTI e providenciamos que tanto Mary como Scott Forbes (de Brockwood Park) estivesse ao lado de sua cama 24 horas por dia. Fiquei compadecido pela devoção óbvia e o extremo amor que estas duas pessoas tinham por este homem. Nas próximas seis semanas havia sempre um deles ao seu lado. Chamei vários especialistas incluindo cirurgião, oncologista, urologista, radiologista, pois não queria negligenciar nenhuma possibilidade. Pelos testes tornou-se óbvio que Krishnamurti tinha uma obstrução pancreática de um carcinoma primitivo. Seu exame de sangue para este diagnóstico estava extremamente elevado e não era necessária investigação adicional. Este era um novo exame investigativo que tinha acabado de chegar ao mercado. Infelizmente não havia dúvida sobre o diagnóstico de carcinoma pancreático. Era um diagnóstico agourento já que não havia tratamento médico ou cirúrgico. Contudo, fiquei feliz que não fosse haver procedimentos invasivos posteriores pois sua tolerância ao hospital era extremamente precária. Senti-me obrigado a protegê-lo de exames investigativos adicionais e providenciei para que ele fosse transferido para casa logo que fosse possível com assistência médica. Em 30 de janeiro de 1986 ele foi transferido para sua casa em Ojai fechando o círculo onde havia iniciado seus ensinamentos nos Estados Unidos. Ele me disse antes de deixar o hospital que queria morrer em casa e não no ambiente de um hospital. Pediu-me que o mantivesse tão confortável quanto possível e prometi-lhe que assim faria. Ele falava de seu corpo na terceira pessoa e não queria que ele sofresse qualquer dor.

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31 de janeiro de 1986

A primeira das muitas chamadas em casa. Krishnaji ficou extremamente sonolento depois da transferência. Percebi então que precisaria fazer frequentes visitas a Krishnaji em casa. Dezessete milhas separavam Santa Paula de Ojai e depois eu ainda percorria vinte milhas até minha casa em Ventura. Felizmente ficava numa via auxiliar e eu podia fazer esta parada no caminho de volta para casa. No entanto compreendi que veria menos minha família nas próximas semanas ou meses. Minha esposa grávida e os três filhos sempre foram compreensivos por viverem com um médico mas isto os colocaria à prova realmente. Sabia que teria que fazer mágica para me desdobrar entre o trabalho, a família e a visitas domiciliares de modo que nada fosse negligenciado. Porém, como sempre, minha vida familiar seria a parte mais sacrificada.

1o de fevereiro de 1986

K dormiu extremamente bem depois de ter sido medicado. Comecei a lhe dar suplementos de vitaminas na esperança de aumentar seu nível de energia e ele de fato parecia bem desperto para ter uma conferência com dois curadores indianos.. Ele estava extremamente lúcido durante a conversa e, na ocasião, pediu-me que mantivesse os procedimentos no nível mínimo, evitando remédios a menos que fosse absolutamente necessário.

2 de fevereiro de 1986

K estava totalmente energético e desperto hoje. Dormiu a maior parte da noite sem nenhum sedativo artificial. Parecia estar bem hidratado com a IV e achei que a obstrução biliar devia ter melhorado. Mentalmente ele melhorou e foi encorajado a fazer algumas gravações. Sentou e utilizou seu gravador. Disse-me que estava muito satisfeito consigo mesmo depois das visitas dos amigos indianos. K foi para o lado de fora ontem com o acompanhante e assistente. Meditou durante trinta minutos. Teve duas horas de encontros com curadores e visitantes pela manhã. Falamos sobre o início de sua vida e sobre seu desejo de não viver mais se não pudesse continuar proferindo palestras e viajando. No entanto, disse que, não estando com dores no momento e se sentindo forte, queria continuar. Pediu-me que continuasse cuidando dele. Nós o levávamos para a sala de estar para receber as visitas, e para descansar no quarto grande.

6 de fevereiro de 1986

K ficou muito fraco depois de ter um longo encontro com visitantes. Houve muitas lágrimas e as pessoas estavam completamente emocionadas. A casa de Krishnaji tinha uma magnífica sala de estar, que era de fato um grande “quarto”. Havia um telhado de viga aparente com iluminação indireta, todo em branco. O teto e as paredes de madeira eram brancos com grandes janelas. O piso era de cerâmica italiana branca e a mobília levemente colorida. Havia uma lareira do teto ao chão com magníficas estantes de livros e sistema de som “stereo”. Logo que entrei neste cômodo senti como se entrasse em algum tipo de templo sagrado. Era óbvio que Krishnaji sentia-se mais à vontade neste lugar em frente à lareira ouvindo música clássica. Ele me disse “ele não podia continuar deste jeito como um cadáver”. Disse-lhe que podíamos lhe dar morfina devido ao seu desconforto.

8 de fevereiro

K está ficando mais fraco a cada dia, incapaz agora de levantar os braços, mas sua mente continua notavelmente clara. Ele me contou histórias sobre o estado do mundo atual, guerras, superpopulação. Estava feliz por ter encerrado sua missão e agora só queria acabar sem dor. Afirmou não querer ser mantido vivo artificialmente, mas gostaria de partir pacificamente. Disse então que deixaria para mim a decisão de usar terapia IV mais tarde. Perguntei-lhe especificamente sobre tirar sua própria vida e ele afirmou não querer morrer “artificialmente” mas fez uma restrição afirmando que não queria sofrer. Depois desta discussão extremamente intensa, ele começou a me contar piadas. Fiquei impressionado com o fato de que ele podia iluminar uma situação com seu senso de humor.

9 de fevereiro de 1986

K continua enfraquecendo. Nós o levamos para a sala na cadeira de rodas e isto parece aumentar sua moral. Ele ouve a Nona Sinfonia de Beethoven em frente à lareira. Conversamos sobre sua infância como Brâmane.

11 de fevereiro de 1986

K fica na sala agora por oito ou nove horas olhando o fogo, deitado no sofá. Fala menos agora e Mary disse que o processo do pensamento não está tão agudo quanto antes. Depois de ver K hoje, achei-o muito mais fraco e ele pediu para não falar tanto. Parece estar ouvindo e observando enquanto os outros falam. Contou uma piada sobre atores e me surpreendeu que ele ainda tivesse um forte senso de humor. Tivemos uma interessante conversa sobre medicina homeopática e sobre a cura do câncer por charlatões. K continua repetindo “isto é tudo um grão de sal”. Perguntei a ele especificamente sobre cura de câncer e ele me disse que nunca ia querer quimioterapia ou algum outro tipo de tratamento agora. Fiz acordos para ficar com ele em regime de dedicação exclusiva. Neste ponto percebi que o fim da vida deste homem extraordinário estava próximo e eu queria ajudá-lo em tudo.

12 de fevereiro de 1986

Tivemos uma longa discussão sobre tratamentos médicos adicionais. Ele afirmou que quer morrer e acho que está com a mente clara. Afirmou que não quer intervenções adicionais. No entanto, permitiu que mantivéssemos o “status quo” com maior preocupação em relação ao seu conforto.

14 de fevereiro de 1986

K teve mais dor esta noite. Hoje ele me contou várias histórias sobre animais. Uma vez, quando estava meditando na Índia, um macaco sentou ao lado dele e segurou-lhe a mão. Ele disse que foi a mão mais maravilhosa que ele havia sentido. Disse que seguiu um tigre de Bengala no Nepal. Foi o mais terrível, magnífico animal que ele já vira. Perguntei então se ele meditava quando estava na cama e ele disse, “sim”, contando-me a origem da palavra “meditar”. A palavra vem do grego “medir”. Quando a pessoa medita não devia medir ou comparar com uma vida mais elevada ou um padrão. Este pensamento usa energia, e meditar é para guardar energia, não para consumi-la. Falou então sobre Ansel Adams, Yosemite, e das belas montanhas que escalara. As favoritas eram no Himalaia. Enquanto conversávamos uma tempestade caia sobre Ojai e sugeri que tivéssemos geradores elétricos na casa como fonte de energia auxiliar para a IV e aquecedores.

15 de fevereiro de 1986

K teve uma boa noite de sono com medicamentos. Acordou com febre de 39º. Perguntei-lhe alguns dias antes se gostava de ir ao cinema e, para minha surpresa, ele disse que gostava dos “westerns” de Clint Eastwood. Fiquei totalmente assombrado, com todos os tiros e violência, mas ele disse que gostava de ver os cenários. Disse não gostar do romance e do caráter sádico do filme. Assim, hoje levei minha coleção de vídeos com filmes de Clint Eastwood e ele ficou duas horas assistindo a The Outlaw Josie Wales. Ficou olhando com olhos fixos, gostando mas parecendo cansado no final, querendo dormir. Hoje ele está muito fraco, tremendo de febre às vezes. Colocamos compressas frias. Anteriormente havíamos falado sobre Yosemite assim lhe trouxe “slides” das sequóias gigantes e das cachoeiras, que eu tinha de minha ultima viagem de férias. Ele pareceu gostar das fotos e dormiu o resto da manhã. Antes da minha saída presenteou-me com um belo cachecol de seda indiana feito a mão que antes ele tinha usado no pescoço. Falou de Pupul, que estava encarregada de toda a indústria de tecelagem na Índia. Falei com ela e Asit, seu sobrinho, sobre o prognóstico dele. Ela partiria para a Índia pela manhã. Assegurei a ela que ele ficaria confortável. Ela perguntou-me “quanto tempo” e eu respondi “alguns dias mas menos é possível”. Ela pareceu satisfeita com os cuidados prestados a ele e com minha resposta. Asit então me presenteou com seu livro de fotos recentemente publicado com uma bela dedicatória escrita a mão agradecendo-me por meu cuidado.

16 de fevereiro de 1986

A dor começou de manhã cedo. À tarde ele pediu uma substancial dose de medicação. Depois passou a flutuar num sono intermitente. Quando a dor era mais intensa, K parecia ficar mais lúcido. Afirmou que não queria continuar assim. Percebi que ele não sobreviveria a outro dia com dor e eu estava muito preocupado com seu sofrimento, já que havia prometido a ele que não sentiria mais dor. Eu estava frustrado pois queria estar a seu lado mas achava que estava negligenciando minha família pois ficava muito tempo ao lado de K. Era aniversário de Washington e este era o primeiro fim de semana livre que eu tinha nos últimos tempos. Minha esposa estava grávida de seis meses com três meninos e eu tinha vontade de estar com ela também. Contudo ela foi muito compreensiva e às 9.30 daquele domingo fui para Ojai porque achei que este podia ser possivelmente o último dia de Krishnamurti conosco. Quando cheguei K estava num coma profundo apesar da medicação para dor estar desligada. K aquietou-se e sua respiração pareceu diminuir. Eu estava assombrado com quanto Krishnamurti era forte e atribuí isto ao seu corpo extremamente bem cuidado. Neste ponto, achei que ele não estava mais sentindo dor embora sua respiração e o pulso estivessem reduzidos. Mandei Patrick, o enfermeiro, chamar Mary na cozinha, pois sabia que ela gostaria de estar com ele no fim. Ele parou de respirar seis minutos depois da meia-noite e a última pulsação foi detectada aos dez minutos e quinze segundos, no início do dia 17 de fevereiro de 1986. Suavemente fechei seus olhos. Antes de sair Scott [Forbes] agradeceu-me e disse algo que sempre lembrarei; “Krishnaji teve afeição especial por você como se tivesse feito de você seu último aluno.”.

17 de fevereiro de 1986

Krishnaji foi um grande mestre e no final aprendi muito com ele. Conforme o conhecia ele se tornava menos meu paciente e mais meu amigo. Nunca esquecerei esta experiência, tanto como médico quanto como seu amigo. Depois de sua morte tive vontade de conhecer este homem num sentido mais profundo. Senti-me afortunado por tê-lo conhecido e continuarei me educando através de seus textos.

ADDENDUM

Passaram já oito anos da morte de Krishnamurti. Sentado lendo minhas anotações de sua ficha médica, reflito sobre a experiência de ter conhecido este homem extraordinário e seus seguidores. Desde sua morte, tenho ido várias vezes à sua biblioteca e tenho lido e relido seus ensinamentos. Continuo a ver Mary como paciente e amiga e ela me mantém a par dos acontecimentos na Krishnamurti Foundation. Colocando isto em palavras escritas, sinto-me afortunado por lembrar sentimentos que tive durante este curto espaço de tempo e sou eternamente grato pelo privilégio de ter conhecido e cuidado de um indivíduo tão gentil e profundo. Sua lembrança e ensinamentos estarão em minha mente e coração para sempre. Tê-lo conhecido fez de mim uma pessoa melhor.