3ª palestra em Saanen, Suíça

Para muitas pessoas, religião é provavelmente um passatempo. As pessoas idosas voltam-se para a religião, e fazem o mesmo as pessoas um tanto neuróticas. Estou usando a palavra religião referindo-me não só a igrejas organizadas, com toda a segurança interior que oferecem, mas também às várias formas mais incomuns de crença, dogma e ritual a que tantos aderem. Religião, para a maioria das pessoas, não é assunto muito sério. O governo está permitindo agora a religião organizada na Rússia, porque politicamente não é muito importante; não contém a semente da revolta; não é um centro de revolução, então eles a permitem.

E eu me pergunto que papel representa a religião na vida daqueles que estão aqui. Por religião, eu agora me refiro a coisa completamente diferente, algo que é tão importante – se não muito mais importante – do que ganhar o pão de cada dia. Para mim, religião é algo a que você entrega todo o coração e a mente e o corpo, tudo o que você tem. Não é algo a que você se volta como passatempo, ou para adotar quando estiver velho, com um pé na cova, por não ter nada melhor que fazer, mas sim algo que se torna vitalmente importante, algo intensamente necessário, como um completo modo de vida, a partir do momento em que você acorda até o momento em que vai dormir, de modo que cada pensamento, cada ato, cada movimento do seu sentimento é observado, considerado, ponderado. Para mim, a religião abrange o todo da vida. Ela não está reservada aos especialistas, aos ricos ou aos pobres, à elite ou ao intelectual. Ela é como pão, algo que você precisa ter. E eu me pergunto quantos de nós a levam a sério desse modo – o que não significa ser briguento, dogmático, excludente, sectário, ou alguém muito especial. A religião exige, não conhecimento ou crença, mas uma extraordinária inteligência, e, para o homem religioso, tem de haver liberdade, completa liberdade.

Embora falemos de liberdade, a maioria das pessoas não quer, de modo algum, ser livre. Não sei se vocês já observaram esse fato. No mundo moderno – em que a sociedade está tão organizada, em que há mais e mais progresso, em que a produção de coisas é tão grande e tão fácil – a pessoa torna-se escrava das posses, das coisas, e, nelas, a pessoa encontra segurança. E segurança é tudo o que a maioria deseja – segurança física e emocional – por conseguinte, não queremos realmente ser livres. Por liberdade, quero significar total liberdade, não liberdade em determinado setor; e acho que devemos exigir isso de nós, devemos insistir nisso.

Liberdade é diferente de revolta. Revolta é contra alguma coisa: você se revolta contra alguma coisa, e é a favor de outra coisa. Revolta é reação, mas liberdade não é reação. No estado de liberdade, você não é livre de alguma coisa. No instante em que fica livre de algo, você realmente está revoltado contra aquele algo; portanto, você não está livre. Liberdade não é ser livre “de alguma coisa”, mas a mente, em si, é que está livre. É um sentimento extraordinário – a mente ser livre em si mesma, conhecer a liberdade por amor à liberdade.

A menos que a pessoa seja livre, não vejo como possa ser criativa. Não estou empregando a palavra criativo no sentido estreito de um homem que pinta um quadro, escreve um poema, ou inventa uma máquina. Para mim, tal pessoa não é criativa. Elas podem experimentar inspiração, em certos momentos, mas criação é coisa inteiramente diferente. Só pode haver criação quando há total liberdade. Nesse estado de liberdade, há plenitude, e, então, escrever um poema, pintar um quadro ou esculpir uma pedra tem significado completamente diferente. Não se trata, então, de autoexpressão; não é resultado de frustração; não se está mais em busca de mercado – é coisa totalmente diferente. Parece-me que deveríamos procurar conhecer essa liberdade completa, não só em nós mesmos, mas também exteriormente. Entrarei nesse assunto, um pouco, esta manhã.

Primeiro, acho que devemos diferenciar entre liberdade, de um lado, e revolta ou revolução, de outro. Revolta e revolução são, essencialmente, reação. Há a revolta da extrema esquerda contra o capitalismo, e a revolta contra a dominação da igreja. Há também a revolta contra o Estado policial, contra o poder da tirania organizada – mas, hoje em dia, isso não compensa porque eles silenciosamente liquidam você, somem com você.

Para mim, liberdade é coisa totalmente diferente. Liberdade não é reação, mas sim o estado da mente que surge quando entendemos a reação. Reação é resposta ao desafio; é prazer, raiva, medo, dor psicológica; e, compreendendo essa estrutura muito complexa de resposta, alcançaremos liberdade. Então você descobrirá que liberdade não é liberdade em relação à raiva, à autoridade, etc. É um estado que existe por si mesmo, para ser experimentado por si mesmo, e não porque você é contra alguma coisa.

A maioria das pessoas preocupa-se com a própria segurança. Queremos um consorte, e esperamos encontrar felicidade em determinado relacionamento; queremos ser famosos, queremos criar; queremos expressar-nos, expandir-nos, satisfazer-nos; queremos ter poder, posição, prestígio. Isso, aproximadamente, é o que realmente interessa à maioria das pessoas; e liberdade, Deus, verdade, amor, são coisas a serem procuradas depois. Assim, como eu disse, nossa religião é uma coisa superficial, um tipo de passatempo que não tem papel muito importante na nossa vida. Estamos satisfeitos com trivialidades, e, portanto, não há vigilância, a percepção que se faz necessária para se compreender este complexo processo que chamamos de viver. Nossa existência é uma batalha constante, um esforço estúpido e interminável – e para quê? É uma jaula na qual estamos presos, uma jaula que construímos com nossas próprias reações, nossos medos, desesperos, ansiedades. Todo o nosso pensamento é uma reação – e você se lembrará de que discutimos este assunto outro dia, quando se fez a pergunta: “Qual é a correta função do pensamento?” Entramos no assunto com muito cuidado, e descobrimos que todo o nosso pensamento é reação, resposta da memória. A inteira estrutura da nossa consciência, do nosso pensamento, é o resíduo, o reservatório das nossas reações. Obviamente, o pensamento jamais poderá trazer liberdade, pois liberdade não é resultado de reação. Liberdade não é a rejeição das coisas que nos causam dor, nem é o afastamento das coisas que nos dão prazer e das quais ficamos escravos.

Por favor, como disse outro dia, não aceitem nada do que o orador está dizendo. Olhem para isso sem aceitar nem rejeitar, mas sim tentando ver o fato por si mesmos, pela observação de si mesmos.

Nossa consciência é a área total do nosso pensamento, todo o campo da ideia e da ideação. O pensamento organizado torna-se a ideia da qual surge a ação, e a consciência é formada de muitas camadas de pensamento, tanto ocultos quanto patentes, o consciente e o inconsciente. É o campo do conhecido, da tradição, a memória do que foi. É o que temos aprendido, o passado em relação ao presente. O passado que herdamos ao longo de séculos, o passado da raça, da nação, da comunidade, da família; os símbolos, as palavras, as experiências, o embate de desejos contraditórios; as inúmeras batalhas, os prazeres e as dores; as coisas que aprendemos com nossos antepassados, e as modernas tecnologias que foram acrescentadas – tudo isso é consciência; é o campo do pensamento, o campo do conhecido, e vivemos na superfície dela. Somos treinados desde a infância para adquirir conhecimentos, para competir; aprendemos uma técnica; especializamo-nos num setor específico para ter emprego e ganhar o sustento. Eis toda a nossa educação, de modo que continuamos a viver na superfície, e, abaixo da superfície, há esse imenso passado, esse tempo incalculável. Tudo isso é o conhecido. Muito embora não estejamos cônscios do inconsciente, ele, também, está dentro do campo do conhecido.

Por favor, acompanhe tudo isso, observando-se a si mesmo, vigiando sua própria consciência. Quanto mais sensível, quanto mais vigilante você for, tanto mais cônscio será do conflito entre o consciente e o inconsciente. Quando tal conflito exigir ação, se vocês não encontrarem um meio de agir, tornar-se-ão neuróticos ou acabarão num hospício; e, por isso, vocês têm inúmeros psicólogos, analistas, tentando construir uma ponte sobre esse golfo e resolver o conflito.

O inconsciente, embora essa palavra transmita a ideia de algo oculto, de que você não tem consciência, é ainda parte do conhecido, é o passado. Você pode não conhecer todo o conteúdo do inconsciente; pode não o ter examinado, olhado para ele, mas, provavelmente, teve sonhos, sugestões procedentes dessa vasta região subterrânea da mente. Ele está lá, e é o conhecido, porque é o passado. Nele nada há de novo, e precisamos entender, por nós mesmos, em que consiste esse estado que não é novo, porque inocência é ser livre do conhecido.

Esse é um dos principais problemas da vida moderna, pois somos treinados, educados, condicionados para permanecer dentro do campo do conhecido, e, dentro desse campo, há ansiedade, desespero, sofrimento, confusão, tristeza sem fim. Só o inocente pode ser criativo, pode criar algo novo, e não apenas fazer um quadro, um poema ou qualquer outra coisa. O inconsciente faz parte do conhecido, mas a maioria das pessoas permanece na superfície do conhecido porque esse é o nosso modo de vida. Vamos ao escritório todos os dias, com sua rotina, seu tédio; temos medo de perder o emprego; sujeitamo-nos às exigências e pressões da vida moderna; somos despedaçados pelos apetites sexuais e outros apetites – e nesse nível vivemos. A partir desse nível, tentamos encontrar algo mais profundo, pois não estamos satisfeitos com esse nível; então, voltamo-nos para a música, a pintura, a arte, os deuses, para as inúmeras religiões. Quando essas coisas falham, adoramos o Estado como a mais maravilhosa das coisas, ou praticamos a vida em comunidade – vocês conhecem todos os truques que nos permitimos, todas as invenções que fazemos, incluindo foguetes para viagens à lua. E, quando ficamos insatisfeitos com tudo isso, voltamo-nos para dentro, ou, se formos muito intelectualizados, analisamos, dividimos tudo em partes. Mas temos o nosso próprio Jesus secreto, o nosso Cristo secreto. Eis a nossa vida.

A única liberdade real é ser livre do conhecido. Por favor, acompanhe isso um pouco. É ser livre do passado. O conhecido tem o seu lugar, é claro. Preciso saber certas coisas para funcionar na vida diária. Se eu não soubesse onde moro, ficaria perdido. Há também o conhecimento científico acumulado – a medicina, as muitas tecnologias – ao qual se acrescenta mais e mais conhecimento. Tudo isso está dentro do campo do conhecido, e tem sua importância. Mas o conhecido é sempre mecânico. Cada experiência que você tenha tido, seja no passado remoto ou apenas ontem, está dentro do campo do conhecido, e, a partir desse background, você reconhece todas as experiências seguintes. No campo do conhecido há apego, com seus temores, seus desesperos; e a mente que se mantém dentro desse campo, não importa quão extenso, quão amplo seja ele, não é uma mente livre. Ela pode escrever livros muito inteligentes, pode saber como ir à lua, pode inventar as máquinas mais complicadas e extraordinárias – se você viu algumas dessas coisas, saberá o quão extraordinárias elas são – mas essa mente ainda está presa no campo do conhecido.

A consciência é coisa do tempo; o pensamento é construído no tempo, e o que o pensamento produz está, também, dentro das amarras do tempo. Portanto, o homem que quiser ficar livre do sofrimento tem de ficar livre do conhecido – o que significa que é preciso compreender toda a estrutura da consciência. E seria possível compreendê-la por meio de análise, que é também um processo de pensamento? O que significa compreender algo? Qual é o estado da mente que compreende? Estou falando de compreender, não do que é compreendido. Você compreende o que eu quero dizer? Estou investigando o estado da mente que diz: “Eu entendo.” A compreensão seria resultado de pensamento e dedução? Você examina uma coisa de modo crítico, razoável, são, lógico, e então diz: “Eu compreendo isto”? Ou seria a compreensão coisa totalmente diferente?

Anteontem, quando aquele cavalheiro perguntou: “Qual a função correta do pensamento?” vocês se lembrarão de que falamos sobre a resposta da mente ao desafio. Quando a pergunta é comum, ocorre uma resposta imediata. Quando a pergunta é um pouco mais complicada, difícil, a resposta demora mais, e, nesse lapso de tempo, você está pensando, isto é, consultando a memória, e então respondendo, como o fazem os computadores, por meio de associação. Uma pergunta ainda mais difícil exigiria um lapso de tempo ainda maior. Agora, essas três respostas, que outro dia denominei (a), (b) e (c), fazem parte do processo de pensamento, dentro do campo do conhecido. Dentro desse campo, você pode produzir, inventar, pintar quadros, pode fazer coisas as mais extraordinárias, incluindo ir à lua – mas isso não é criação. Essa eterna busca de realizações e de autoexpressão é sumamente infantil, pelo menos para mim.

Ser livre de tudo isso é ser livre do conhecido; é o estado de uma mente que diz: “Eu não sei”, e que não está procurando resposta. Tal mente não está buscando coisa alguma, não está esperando nada; e é só nesse estado que você pode dizer: “Eu compreendo.” É o único estado em que a mente é livre, e, a partir desse estado, você pode olhar para as coisas conhecidas – mas não o contrário. A partir do conhecido, você não consegue ver o desconhecido. Mas, quando você tiver compreendido o estado de uma mente que é livre – que é a mente que diz: “Eu não sei”, e continuar não sabendo, e for, por conseguinte, inocente – a partir desse estado, você pode funcionar, pode ser um cidadão, pode ser casado, ou o que quiser. Então, o que você fizer terá relevância, terá significado na vida. Entretanto, permanecemos no campo do conhecido, com todos os seus conflitos, aspirações, disputas, agonias, e, a partir desse campo, tentamos encontrar aquilo que é desconhecido. Portanto, não estamos realmente buscando liberdade. O que nós queremos é a continuação, a extensão da mesma coisa antiga: o conhecido.

Portanto, para mim, o importante é compreender, por si mesmo, esse estado em que a mente está livre do conhecido, pois tal mente é a única que pode descobrir, por si mesma, se há ou não há uma imensidão. Funcionar somente dentro do campo do conhecido – seja esse funcionamento à esquerda, à direita, ou no centro – é materialismo grosseiro, ou outro rótulo que se queira dar a isso. Nesse campo não há resposta para nada, pois nele há sofrimento, rixa, eterna competição, busca de uma segurança que você jamais encontrará. É com isso que a maioria dos jovens está preocupada, não é? Primeiro, eles desejam segurança para si mesmos, para sua família, segurança no emprego, e, mais tarde, talvez, se tiverem tempo e pendor, procurarão algo mais. Quando a crise fica demasiado intensa, você busca uma resposta feliz, conveniente, e, com isso, fica satisfeito. Não estou falando desse tipo de busca, de modo algum. Estou falando de algo completamente diferente. Estou falando de uma mente que compreendeu inteiramente toda a função do conhecido, e não consegue compreender esse campo enormemente complexo sem compreender a si mesma, sem compreender a totalidade de sua consciência.

Você não consegue entender a si mesmo mediante autoexame, mediante introspecção, mediante análise – até aí, está muito claro. Não preciso entrar neste assunto, preciso? A mente não consegue compreender-se por meio de análise porque, na análise, há uma divisão entre o analisador e o analisado, e, assim, o conflito é aumentado e mantido. Qualquer análise, qualquer esforço de sondar, de questionar, parte do centro, o qual já está condicionado, sobrecarregado com acumulações do tempo, que são o conhecido. Não importa quanto o analisador tente perscrutar o inconsciente – o inconsciente também faz parte do conhecido. Tendo compreendido a verdade disso – a despeito de todos os analistas e psicólogos – você poderá ver todo o conteúdo do inconsciente e compreendê-lo num relance. A compreensão só ocorre num relance – não no decorrer do tempo, mediante a acumulação de conhecimento livresco, etc. Você vê algo imediatamente, ou não vê. Os sonhos podem indicar, simbolizar, aludir a alguma coisa, mas isso ainda faz parte do conhecido, e a mente precisa esvaziar-se completamente do conhecido. A mente precisa libertar-se deste processo que chamamos de pensar.

Se estiver escutando, pela primeira vez, que precisa livrar-se do pensamento, você poderá dizer: “Pobre coitado, ele é louco.” Mas, se você tiver realmente escutado, não somente esta vez, mas durante os muitos anos em que alguns de vocês talvez tenham lido tudo sobre o assunto, então você saberá que o que está sendo dito tem uma vitalidade extraordinária, uma verdade penetrante. Só a mente que se esvaziou do conhecido é criativa. Isso é criação. Aquilo que tal mente cria não tem nada a ver com o conhecido. Livre do conhecido é o estado da mente que está em processo de criação. Como uma mente que está em processo de criação poderia preocupar-se consigo mesma? Por conseguinte, para compreender esse estado mental, você tem de conhecer-se; você tem de observar o processo do seu próprio pensar – observá-lo, e não o modificar, não o alterar, mas só o observar, assim como você se vê num espelho. Quando há liberdade, você pode fazer uso do conhecimento e ele não destruirá a humanidade. Mas, quando não houver liberdade e você fizer uso do conhecimento, criará desgraça para todos, esteja você na Rússia, na América, na China, ou alhures. A mente que eu chamo de séria é a mente cônscia do conflito do conhecido, e não lhe cai nas malhas; não tenta modificar, melhorar o conhecido – pois nesse caminho não há fim para o sofrimento e a desgraça.

Podemos discutir o assunto?

Interrogante: Importa-se de falar sobre o inconsciente? Como se pode ficar cônscio do inconsciente? Como é possível examiná-lo, revelá-lo?

Krishnamurti: Todos vocês vêem o problema? Vocês não conhecem o inconsciente; não estão cônscios dele, então como o descobrirão? Como é que vou – eu que estou preso nas malhas das atividades diárias e na rotina da mente consciente – penetrar o inconsciente?

Agora, veja o que você já fez colocando esta pergunta. Você criou uma contradição. Você está acompanhando? Explicarei o que quero dizer. Com que instrumento você vai perscrutar o inconsciente? O único instrumento que você tem é a mente consciente, a mente que opera no seu dia-a-dia, que vai para o escritório, que tem apetites sexuais e de outra natureza, que tem temores; e, com essa mente consciente, você vai perscrutar o inconsciente. Mas não é possível fazer tal coisa; e, quando você descobre que isso não é possível, o que acontece? Durante o sono, quando o cérebro consciente está um tanto quieto, o inconsciente sugere certas coisas por meio dos sonhos, dos símbolos, e então a mente consciente, ao despertar, diz: “Sonhei e preciso interpretar meus sonhos.” Por estar tão ocupada durante o dia, a mente consciente só pode descobrir o conteúdo da mente inconsciente por meio de sonhos. Por conseguinte, o analista dá enorme importância aos sonhos. Mas veja as complicações que isso envolve. Os sonhos precisam de interpretação correta e, para dar essa interpretação, o analista precisa conhecer o background da sua consciência, a totalidade dela; de outro modo, sua interpretação estará errada. A interpretação pode ser freudiana, junguiana, ou refletir as opiniões de alguma outra autoridade, mas não estará correta – e isso é o que geralmente acontece porque o analista não conhece o seu inteiro background, e não pode conhecê-lo. E, se você mesmo começar a analisar o inconsciente, se anotar cada sonho e o interpretar, então a sua interpretação terá de ser completamente livre do inconsciente. Vê a dificuldade? Estou entrando no problema negativamente, entende?

Essa coisa que você chama de inconsciente é desconhecida – desconhecida no sentido de que você não está familiarizado com ela, não conhece o conteúdo dela. Por enquanto, você não sabe o que é o inconsciente. Você tem tentado entendê-lo com uma mente que é treinada para acumular conhecimento, e, com esse conhecimento, olhar. Mas agora você descobriu que esse não é o meio de perscrutar o inconsciente, isto é, por meio de análise. E, quando você diz: “A análise não é o caminho”, o que aconteceu com a sua mente? Vocês estão me acompanhando? Eu me pergunto se isso está claro.

Quando você diz acerca de algo: “Esse não é o caminho”, qual é o estado da sua mente? Certamente, ela está num estado de negação. Você pode permanecer nesse estado? É só no estado de negação que você pode observar; assim, o importante é abordar negativamente algo que você não conhece. É assim que surgem as invenções, não é? Foi assim que os grandes foguetes foram desenvolvidos. Mas é muito mais difícil abordar negativamente um problema psicológico, porque estamos torturados, estamos presos em nossa selva emocional, e queremos encontrar uma saída.

Assim, para revelar o inconsciente, é preciso primeiro ver muito claramente, por si mesmo, a verdade de que você só pode realmente olhar para algo que não conhece, com uma mente que esteja vazia. Disseram-lhe que praticasse auto  análise, mas a análise não o levou a lugar nenhum, exceto a mais e mais de coisa alguma, de modo que você vê, por si mesmo, que a análise não é o caminho. Tendo compreendido a futilidade da análise, não tente imediatamente descobrir o que é o inconsciente, mas, em vez disso, investigue para descobrir qual é o estado no qual a mente diz: “Esse não é o caminho.” Certamente, é um estado de negação, e, nesse estado, a mente pode observar, pois não está traduzindo, interpretando, julgando, mas apenas olhando. Isso você pode fazer em qualquer lugar: sentado num ônibus, no escritório, quando o chefe fala com você, quando você fala com a esposa, com os seus filhos, com o seu vizinho, quando lê o jornal. Com uma mente assim, cada reação do inconsciente pode ser observada, e, se você fizer isso com intensidade – não só casualmente, um dia faz e, no dia seguinte, esquece de fazer -, se você se mantiver extremamente vivo, então descobrirá que não tem nenhum sonho. Que necessidade há de sonhos simbólicos quando, a cada minuto do dia, o inconsciente está lhe mostrando suas respostas, desistindo do seu condicionamento, das suas memórias, suas ansiedades – quando tudo está sendo revelado enquanto você observa? Então, a mente é como uma tela vazia em que o inconsciente projeta o próprio retrato de momento a momento, de modo que, quando você vai dormir, a mente, o cérebro, descansa. E ele precisa de descanso porque trabalhou furiosamente todo o dia, não só no emprego, mas também observando. O cérebro, assim, torna-se altamente sensível – muito mais sensível do que por meio de análise e introspecção. A mente, o cérebro que fica completamente em descanso durante o sono, renova-se a si mesmo. Ele tem energia para ir mais longe – mas não vou falar disso agora. Nós respondemos a pergunta, não é, senhor? A revelação do inconsciente ocorre quando a mente está num estado de negação, num estado de vazio; isto é, ela está observando sem interpretar.

Interrogante: As intuições procedem do desconhecido?

Krishnamurti: Obviamente, não. Temos intuições acerca de tudo, não é? Você realmente quer que eu responda essa pergunta? É melhor responder, pois vejo que muitos de vocês estão dizendo sim.

Por que desejam intuições ou inspirações? Quando vocês estão se observando intensamente, vendo cada movimento do inconsciente, sem escolha, vocês querem ser inspirados, ter intuições? Intuições sobre o quê? É só quando vocês estão aprisionados em autocontradição, quando há tensão, negação, luta, que vocês querem alívio, alguma esperança, uma promessa de algo diferente. Isso é tão infantil! Abandone tudo isso!

Interrogante: O senhor usa a palavra mente com vários significados. O que quer dizer com ela?

Krishnamurti: Eis uma boa pergunta. Certamente, há uma diferença entre cérebro e mente. Precisamos entrar nisso com muito cuidado.

A mente é tudo, e também não é nada. A mente abrange tudo, e, ao mesmo tempo, é vazia. Por favor, vocês não sabem de que estou falando; portanto, não concordem. A mente não tem fronteiras; por conseguinte, não é escrava do tempo. A mente não tem horizonte em direção ao qual esteja caminhando; portanto, ela é completamente vazia. Mas, há o cérebro, o qual é resultado do tempo; ele cresceu a partir de uma única célula até esta entidade complexa que é o ser humano. O cérebro é resultado do tempo, mas a mente não o é. O cérebro é resultado de mil experiências, com suas cicatrizes, suas memórias, conscientes e inconscientes. O cérebro é resultado de associação, de experiências que você recorda – as experiências recentes, e também as experiências maravilhosas que você teve quando criança. O cérebro é o futuro, inventado por si mesmo em sua passagem do passado para o presente em direção àquele futuro. Tudo isso faz parte do cérebro. E – por o havermos torturado tanto, maltratado, compelido, disciplinado, forçado, exercitado – o cérebro tornou-se embotado, uma coisa morta, mecânica. Isso é o que o cérebro é para a maioria de nós – só uma coisa mecânica. Ele não é altamente sensível, afiado, interessado, vivo; e com esse cérebro mecânico tentamos compreender a mente. Toda a nossa literatura, tudo quanto falamos e escrevemos sobre a mente, procede das recordações do cérebro.

Portanto, se você entrar neste assunto por si mesmo, descobrirá que é necessário um cérebro altamente sensível, capaz de raciocínio correto, um cérebro que seja saudável e não neurótico, não baseado nas crenças e suposições dos teólogos, dos comunistas, ou de quem quer que seja, pois essas coisas só tornam o cérebro coisa mecânica, embotada, estúpida, por mais perspicaz que possa ser. Se você o examinar, descobrirá que o cérebro pode ser extraordinariamente vivo, cada parte dele. Mas, ele só pode ser vivo assim quando não há conflito, quando ele não tem problemas, quando não está desesperado, não está pensando em termos de futuro, quando está livre de ansiedades, de tristezas. Então, o cérebro pode ser altamente sensível, vivo no sentido real da palavra; e só um cérebro assim pode encontrar a mente que não tem horizonte, a mente que é completamente vazia e funciona a partir desse vazio.

11 de julho de 1963.