palestra no auditório da universidade

Oslo, Noruega 

Amigos, recebi algumas questões que responderei após a minha conversa.

Aonde quer que você vá em todo o mundo, você encontra sofrimento. Parece não haver limite para o sofrimento, não haver fim para os inumeráveis problemas que preocupam o homem, parece não haver saída para seu contínuo conflito consigo mesmo e com seus semelhantes. O sofrimento parece ser sempre o destino comum do homem, e ele tenta superar esse sofrimento através da procura por conforto; ele pensa que procurando consolo, buscando conforto, ele se libertará dessa batalha contínua, dos seus problemas de conflito e sofrimento. E ele se propõe a descobrir o que lhe dará maior satisfação, o que lhe dará maior consolo nessa contínua batalha de sofrimento, e vai de um consolo a outro, de uma sensação a outra, de uma satisfação a outra. Assim, com o passar do tempo, ele gradualmente estabelece inúmeras seguranças, abrigos para os quais corre quando experimenta sofrimento intenso.

Agora, existem muitos tipos de segurança, muitos tipos de refúgio. Há aquelas que proporcionam satisfação emocional temporária, tais como as drogas e a bebida; há divertimentos e tudo o que diz respeito ao prazer transitório. Novamente, há inúmeras crenças nas quais o homem busca abrigo de seu sofrimento; ele se apega a crenças ou ideais na esperança de que eles moldem sua vida e que, pela conformidade, ele gradualmente superará o sofrimento. Ou ele se refugia em sistemas de pensamento que ele chama de filosofias, mas que são apenas teorias transmitidas através dos séculos, ou teorias que podem ter sido verdadeiras para aqueles que as pensaram, mas que não são necessariamente verdadeiras para outros. Ou ainda, o homem se volta para a religião, isto é, para um sistema de pensamento que tenta formá-lo, moldá-lo a um determinado padrão, conduzi-lo em direção a um fim, pois a religião em vez de dar compreensão ao homem, apenas lhe consola. Não existe tais coisas como conforto e segurança na vida. Mas, em sua busca por conforto, o homem construiu através dos séculos as seguranças da religião, dos ideais, das crenças e da ideia de Deus.

Para mim Deus existe, uma realidade viva e eterna. Mas essa realidade não pode ser descrita; cada um deve compreendê-la por si mesmo. Qualquer um que tente imaginar o que é Deus, o que é a verdade, está apenas à procura de uma fuga, de um refúgio da rotina diária de conflito.

Quando o homem estabelece uma segurança – a segurança da opinião pública, da felicidade que deriva das posses ou da prática da virtude, o que são apenas fugas – ele encontra cada incidente da vida, cada uma das inumeráveis experiências da vida com o pano de fundo dessa segurança, ou seja, ele nunca encontra a vida como ela realmente é. Ele a encontra com um preconceito, com uma bagagem já desenvolvida pelo medo, ele aborda a vida com a mente totalmente vestida, sobrecarregada de ideias.

Em outras palavras, o homem em geral só vê a vida através da tradição do tempo que ele carrega em sua mente e em seu coração; enquanto para mim, a vida é fresca, renovadora, em movimento, nunca é estática. A mente e o coração do homem estão sobrecarregados com o desejo inquestionável por conforto, que traz necessariamente à autoridade. Através da autoridade ele encontra a vida e, portanto, é incapaz de compreender todo o significado da experiência, o que por si só pode libertá-lo do sofrimento. Ele se consola com os falsos valores da vida e se torna meramente uma máquina, uma engrenagem na estrutura social ou no sistema religioso.

Não se pode descobrir o que é o verdadeiro valor enquanto a mente estiver buscando consolo. E como a maioria das mentes está buscando consolo, conforto, segurança, elas não podem descobrir o que é a verdade. Assim, a maioria das pessoas não são indivíduos, elas são meramente engrenagens em um sistema. Para mim, um indivíduo é uma pessoa que, por meio de questionamentos, descobre valores corretos, e só se pode questionar verdadeiramente quando se está sofrendo. Você sabe, quando você sofre sua mente se torna aguda, viva – então você não é teórico – e somente nesse estado de espírito você pode questionar qual é o verdadeiro valor dos padrões que a sociedade, a religião e a política estabeleceram sobre nós. Somente nesse estado podemos questionar, e quando questionamos, quando descobrimos os verdadeiros valores, então aí somos verdadeiros indivíduos – não até então. Ou seja, não somos indivíduos enquanto estivermos inconscientes dos valores aos quais nos acostumamos por meio de seguranças, de religiões, por meio da busca por crenças e ideais. Somos meras máquinas, escravos da opinião pública, escravos dos inúmeros ideais que as religiões colocaram sobre nós, escravos dos sistemas econômicos e políticos que aceitamos. E como todos são uma engrenagem nessa máquina, nunca poderemos descobrir valores verdadeiros, valores duradouros nos quais existe somente a felicidade eterna, a eterna realização da verdade.

A primeira coisa a compreender, portanto, é que temos essas barreiras, esses valores que nos foram dados. Para descobrir o seu significado exato devemos questionar, e só podemos questionar quando nossas mentes e corações estiverem ardendo com intenso sofrimento. E todos sofrem, o sofrimento não é presente de poucos. Mas quando sofremos, buscamos consolo imediato, conforto, e, portanto, não há mais questionamentos, não há mais dúvidas, mas mera aceitação. Portanto, onde existe carência não pode haver compreensão dos valores corretos que por si só libertam o homem, que por si só lhe dá a capacidade de existir como um ser humano completo. E conforme eu estava dizendo, quando encontramos a vida parcialmente – com todo esse pano de fundo tradicional de valores inquestionáveis e mortos – naturalmente existe conflito com a vida, e esse conflito cria em cada um de nós a ideia de consciência do ego. Ou seja, quando nossas mentes têm ideias, crenças ou valores inquestionáveis preconcebidos há limitação, e essa limitação cria a autoconsciência que, por sua vez, traz sofrimento.

Em outras palavras, enquanto a mente e o coração estiverem presos aos falsos valores que as religiões e as filosofias estabeleceram sobre nós, enquanto a mente não descobrir valores verdadeiros e vivos para si mesma haverá limitação da consciência, limitação da compreensão, que cria a ideia de “eu”. E a partir dessa ideia de “eu”, do fato de que a consciência conhece a limitação do tempo como um começo e um fim, nasce o sofrimento. Tal consciência, tal mente e coração estão presos no medo da morte e, portanto, a investigação sobre a outra vida.

Quando você entende que a verdade, a vida, só pode ser realizada quando você descobre por si mesmo, sem qualquer autoridade ou imitação, o verdadeiro significado do sofrimento, o valor vivo de cada ação, então sua mente se liberta da consciência do ego.

Como a maioria de nós está inconscientemente buscando um refúgio, um lugar seguro no qual não seremos feridos, como a maioria de nós está buscando em falsos valores uma fuga de conflitos contínuos, portanto eu digo: tomem consciência de que todo processo de pensamento, no momento atual, é uma busca contínua por refúgio, por autoridade, por padrões a serem obedecidos, por sistemas a serem seguidos, por métodos a serem imitados. Quando você percebe que não existe conforto, que não existe segurança, seja na posse de coisas ou de ideias, então você encontra a vida como ela é, não com o pano de fundo de um intenso anseio por conforto. Então, você se torna consciente, mas sem a luta constante para se tornar consciente – uma luta que continua enquanto sua mente e seu coração buscarem uma fuga contínua da vida através de ideais, conformidade, através de imitação, autoridade. Quando você compreender isso, você desiste de buscar uma fuga, então você é capaz de encontrar a vida completamente, abertamente, integralmente, e nisso há compreensão, o que por si só lhe dá o êxtase da vida.

Dito de outra forma, uma vez que nossas mentes e corações têm sido prejudicados por falsos valores ao longo dos tempos, somos incapazes de encontrar integralmente a experiência. Se você é cristão, você a encontra de uma maneira, você é ditado por todos os seus preconceitos do cristianismo, pela sua formação religiosa. Se você é um conservador ou comunista, você a encontra de outra maneira. Se você tem alguma crença em particular, você encontra a vida dessa maneira particular, e espera compreender seu pleno significado através de uma mente preconceituosa. Somente quando você compreender que a vida, esse movimento livre e eterno, não pode ser encontrada parcialmente e com preconceitos, somente então você estará livre sem esforço. Então, você fica livre de todas as coisas que possui, seja a tradição herdada ou o conhecimento adquirido. Digo conhecimento, não sabedoria, pois a sabedoria não entra aqui. A sabedoria é natural, espontânea, só vem quando se encontra a vida abertamente e sem qualquer barreira. Para encontrar a vida abertamente, o homem deve libertar-se de todo conhecimento. Ele não deve buscar uma explicação para o sofrimento, pois quando ele procura tal explicação, ele está sendo pego pelo medo.

Portanto, repito, existe uma maneira de viver sem esforço, sem a constante tensão por conquista e luta pelo sucesso, sem o constante medo da perda ou ganho. Eu digo que há uma maneira harmoniosa de viver a vida que surge quando você encontra cada experiência, cada ação completamente, quando sua mente não está dividida contra si mesma, quando seu coração não está em conflito com sua mente, quando você faz todas as coisas integralmente, com completa unidade de mente e coração. Então, nessa riqueza, nessa plenitude há o êxtase da vida e isso para mim é perpétuo, eterno.

Interrogante: O senhor diz que seus ensinamentos são para todos, não para alguns selecionados. Se é assim, por que temos dificuldade em entendê-lo?

Krishnamurti: Não é uma questão de me entender. Por que você deveria me entender? A verdade não é minha para que você me entenda. Você acha minhas palavras difíceis de compreender, porque sua mente está sufocada com ideias. O que eu digo é muito simples. Não é para poucos selecionados, é para quem está disposto a tentar. Eu digo que se você se libertar de ideias, de crenças, de todas as seguranças que as pessoas construíram ao longo dos séculos, então você entenderá a vida. Você só pode se libertar questionando, e só pode questionar quando estiver revoltado – não quando estiver estagnado com ideias satisfatórias. Quando suas mentes estão sufocadas com crenças, quando estão pesadas com o conhecimento adquirido nos livros, então é impossível entender a vida. Portanto, não é uma questão de me entender.

Por favor – e não estou dizendo isso com vaidade – eu encontrei uma maneira, não um método que você pode praticar, um sistema que se torna uma gaiola, uma prisão. Eu compreendi a verdade, Deus ou qualquer que seja o nome que você queira dar a ela. Eu digo que existe essa realidade viva eterna, mas ela não pode ser compreendida enquanto a mente e o coração estiverem sobrecarregados, feridos com a ideia de “eu”.  Enquanto essa autoconsciência, essa limitação existir, não pode haver compreensão do todo, da totalidade da vida. Esse “eu” existe enquanto houver falsos valores – falsos valores que herdamos ou que criamos diligentemente em nossa busca por segurança, ou que estabelecemos como nossa autoridade em nossa busca por conforto. Mas valores corretos, valores vivos, esses você só pode descobrir quando você realmente sofre, quando está muito descontente. Se você estiver disposto a se libertar da procura por ganhos, então você os encontrará. Mas a maioria de nós não quer ser livre, queremos conservar o que ganhamos, seja em virtude, em conhecimento ou em posses. Queremos manter tudo isso. Assim, sobrecarregados, tentamos encontrar a vida e, portanto, a total impossibilidade de compreendê-la completamente.

Portanto, a dificuldade não está em me compreender, mas em compreender a própria vida; e essa dificuldade existirá enquanto suas mentes estiverem sobrecarregadas com essa consciência que chamamos de “eu”. Não posso lhe dar valores corretos. Se eu lhe dissesse, você faria disso um sistema e o imitaria, estabelecendo assim apenas outra série de falsos valores. Mas você pode descobrir os valores corretos para si mesmo quando você se tornar verdadeiramente um indivíduo, quando deixar de ser uma máquina. E você só pode se libertar dessa máquina mortífera de falsos valores quando estiver em grande revolta.

Interrogante: Tem sido afirmado por alguns que você é o Cristo que veio novamente. Gostaríamos de saber com certeza o que você tem a dizer sobre isso. Você aceita ou rejeita a reivindicação?

Krishnamurti: Nem aceito nem rejeito. Isso não me interessa. Que valor tem para vocês, meus amigos, me perguntarem isso? Essa pergunta me é feita aonde quer que eu vá. As pessoas querem saber se sou ou se não sou. Se eu digo que sou, ou eles tomam minhas palavras como autoridade ou riem delas, se eu digo que não sou, eles ficam encantados. Eu não afirmo nem nego. Para mim, a afirmação é de muita pouca importância, porque sinto que o que tenho a dizer é intrinsecamente correto em si mesmo. E isso não depende de títulos ou diplomas, revelação ou autoridade. O que é importante é sua compreensão disso, sua inteligência e seu próprio desejo despertado de descobrir, seu próprio amor pela vida – não a afirmação de que sou ou de que não sou Cristo.

Interrogante: Sua realização da verdade é permanente e presente o tempo todo ou existem momentos sombrios em que você novamente enfrenta a escravidão do medo e do desejo?

Krishnamurti: A escravidão do medo existe enquanto permanecer a limitação da consciência, a que vocês chamam de “eu”. Quando você se tornar rico dentro de si mesmo, então você não sentirá carência. É nessa batalha contínua de carência, nesta busca por vantagem nas circunstâncias, que o medo e a escuridão existem. Acho que estou livre disso. Como você pode saber disso? Você não pode. Eu posso estar enganando você, portanto não se preocupe com isso. Mas tenho isto para dizer: pode-se viver sem esforço, de uma maneira que não se pode chegar através do esforço; pode-se viver sem esta luta incessante por conquista espiritual; pode-se viver harmoniosamente, completamente em ação – não em teoria, mas na vida diária, no contato diário com os seres humanos. Eu afirmo que existe uma maneira de libertar a mente de todo sofrimento, uma maneira de viver completa, integral, eterna. Mas para fazer isso, deve-se estar completamente aberto para a vida; não se deve permitir permanecer em qualquer refúgio ou limitação em que a mente possa residir, para os quais o coração possa se retirar em tempos de conflito.

Interrogante: O senhor diz que a verdade é simples. Para nós, o que você diz parece muito abstrato. Qual é a relação prática, segundo o senhor, entre a verdade e a vida real?

Krishnamurti: O que é que chamamos de vida real? Ganhar dinheiro, explorar os outros e ser explorado, casamento, filhos, procurar amigos, experimentar ciúmes, brigas, medo da morte, a investigação sobre a outra vida, guardar dinheiro para a velhice – tudo isso chamamos de vida diária. Agora, para mim, a verdade ou o eterno devir da vida não pode ser encontrado a partir disso. No transitório está o eterno – não separado do transitório. Por favor, por que exploramos, seja em coisas físicas ou em coisas espirituais? Por que somos explorados pelas religiões que estabelecemos? Por que somos explorados por sacerdotes para os quais procuramos conforto? Porque pensamos na vida como uma série de conquistas, não como uma ação completa. Quando olhamos para a vida como um meio de aquisição, seja de coisas ou de ideias, quando olhamos para a vida como uma escola na qual aprender, na qual crescer, então dependemos dessa autoconsciência, dessa limitação. Criamos o explorador, e nos tornamos o explorado. Mas se nos tornarmos totalmente indivíduos, completamente auto-suficientes, sozinhos em nossa compreensão, então não diferenciaremos entre a vida real e a verdade, ou Deus. Você sabe, porque achamos a vida difícil, porque não compreendemos todos os meandros da ação cotidiana, porque queremos escapar dessa confusão, nos voltamos para a ideia de um princípio objetivo, e assim diferenciamos, distinguimos a verdade como sendo impraticável, como não tendo nada a ver com a vida cotidiana. Assim, a verdade ou Deus se torna uma fuga para a qual recorremos em dias de conflito e problemas. Mas se, em nossa vida diária, descobríssemos porquê agimos, se encontrássemos os incidentes, as experiências, os sofrimentos da vida integralmente, então não diferenciaríamos a vida prática da verdade impraticável. Por não encontrarmos experiências com todo o nosso ser, mentalmente e emocionalmente, por não sermos capazes de fazer isso, separamos a vida diária e a ação prática da ideia de verdade.

Interrogante: Você não acha que o apoio das religiões e de professores religiosos são uma grande ajuda para o homem em seu esforço para se libertar de tudo o que o prende?

Krishnamurti: Nenhum professor pode nos dar valores corretos. Você pode ler todos os livros do mundo, mas não pode obter sabedoria com eles. Você pode seguir todos os sistemas religiosos do mundo e ainda assim permanecer escravo deles. Somente quando você estiver sozinho, você poderá encontrar sabedoria e ser totalmente livre, liberto. Por solidão não quero dizer viver separado da humanidade. Refiro-me à solidão que vem da compreensão, não da retirada. Ela existe, em outras palavras, quando a pessoa é totalmente um indivíduo, não individualista. Você sabe, nós pensamos que praticando continuamente o piano sob a direção de um instrutor nos tornaremos grandes pianistas, músicos criativos; e da mesma forma procuramos professores religiosos para orientação. Dizemos a nós mesmos: “Se eu praticar diariamente o que eles estabeleceram, terei a chama da compreensão criativa”. Eu digo, você pode praticar sem fim, e ainda não terá essa chama criativa. Conheço muitas pessoas que praticam diariamente certos ideais, mas elas se tornam cada vez mais murchas em sua compreensão, porque elas estão apenas imitando, estão apenas vivendo de acordo com um padrão. Elas se libertaram de um professor e foram para outro, elas simplesmente se transferiram de uma gaiola para outra. Mas se você não busca conforto, se você questiona continuamente – e você pode questionar apenas quando está revoltado – então você estabelece liberdade de todos os professores e de todas as religiões; então você é supremamente humano, não pertencendo nem a um partido, nem a uma religião, nem a uma gaiola.

Interrogante: Você quer dizer que não há ajuda para os homens quando a vida se torna difícil? Eles são deixados inteiramente para ajudar a si mesmos?

Krishnamurti: Acho que, se não estou enganado – se estou, por favor, me corrija – acho que o interrogante quer saber se não há uma fonte, uma pessoa ou uma ideia à qual se possa recorrer em tempo de dificuldade, de dor, na hora do sofrimento.

Eu digo que não há fonte permanente que possa dar compreensão. Você sabe, para mim, a glória do homem é que ninguém pode salvá-lo, exceto ele mesmo. Por favor, ao olhar para o homem em todo o mundo, você vê que ele sempre recorreu a outro em busca de ajuda. Na Índia, buscamos ajuda nas teorias, nos professores. Aqui você também faz o mesmo. Em todo o mundo, o homem recorre a alguém para tirá-lo de sua própria ignorância. Eu digo que ninguém pode tirá-lo de sua própria ignorância. Você a criou pelo medo, pela imitação, pela busca por segurança e, portanto, estabeleceu autoridades. Vocês criaram para si mesmos essa ignorância que prende cada um de vocês, e ninguém pode libertá-los, exceto vocês mesmos, por meio de sua própria compreensão. Os outros poderão libertá-los momentaneamente, mas enquanto existir a causa raiz da ignorância, vocês meramente criarão outro conjunto de ilusões.

Para mim, a causa raiz da ignorância é a consciência do “eu”, da qual surgem conflitos e sofrimentos. Enquanto essa consciência do “eu” existir, deve haver sofrimento do qual ninguém pode libertá-lo. Em sua devoção a uma pessoa ou a uma ideia, você pode momentaneamente se separar dessa consciência, mas enquanto essa consciência permanecer, ela é como uma ferida que está sempre piorando. A mente só poderá se libertar dessa ignorância quando encontrar a vida integralmente, quando experienciar completamente sem preconceitos, sem ideias preconcebidas, quando não for mais ferida por uma crença ou ideia. É uma das ilusões que prezamos, que outra pessoa pode nos salvar, que não podemos nos levantar desse charco de sofrimento. Durante séculos, buscamos ajuda externa e ainda somos dominados por essa crença.

Interrogante: Qual é a verdadeira causa do caos atual no mundo, e como pode ser remediado esse doloroso estado das coisas?

Krishnamurti: Em primeiro lugar, creio que pode ser remediado, não contando com nenhum sistema como um remédio. Você sabe, através dos séculos nós construímos um sistema, o sistema possessivo baseado na segurança. Fomos nós que o construímos, cada um de nós é responsável por esse sistema em que aquisição, ganho, poder, autoridade e imitação desempenham o papel mais importante. Fizemos leis para preservar esse sistema, leis baseadas em nosso egoísmo, e nos tornamos escravos dessas leis. Agora queremos introduzir um novo conjunto de leis, às quais nos tornaremos novamente escravos, leis pelas quais a posse se torna um crime.

Mas, se compreendêssemos a verdadeira função da individualidade, então enfrentaríamos a causa raiz de todo esse caos no mundo, esse caos que existe porque não somos verdadeiramente indivíduos. Por favor, compreendam o que quero dizer com indivíduo; não quero dizer individualista. Há séculos temos sido individualistas, buscando segurança para nós mesmos, conforto para nós mesmos. Temos contado com as coisas físicas da vida para nos dar refúgio interior, felicidade, tranquilidade espiritual. Nós estávamos mortos e não o soubemos, porque imitamos e seguimos, exploramos cegamente as crenças. E estando espiritualmente mortos, naturalmente tentamos realizar nossos poderes criativos no mundo da aquisição – daí o caos atual em que cada homem busca apenas sua própria vantagem. Mas, se cada um individualmente começar a se libertar de toda imitação, e começar assim a realizar essa vida criadora, essa energia criadora que é livre, espiritual, então creio que não procuraremos ou daremos ênfase à posse ou à não-posse. Não acham?

Toda a nossa vida é um processo de imitação. A opinião pública diz isto, portanto, devemos fazer. Não estou dizendo, por favor, que você deve ir contra todas as convenções, que deve fazer impetuosamente o que quiser, isso seria igualmente estúpido. O que estou dizendo é o seguinte: já que somos meras máquinas, já que somos impiedosamente individualistas no mundo da aquisição, eu digo, libertem-se de toda imitação e tornem-se indivíduos, questione todos os padrões, tudo o que diz respeito a você, não apenas intelectualmente, não quando se sente à vontade com a vida, mas no momento de sofrimento, quando sua mente e seu coração estão aguçados e despertos. Então, nessa compreensão que vem da descoberta dos valores vivos, você não dividirá a vida em seções – econômica, doméstica, espiritual. Você a encontrará como uma unidade completa, como um ser humano completo.

Para acabar com o caos no mundo, com a agressão e a exploração implacáveis, você não pode contar com nenhum sistema. Somente vocês mesmos podem fazer isso, quando se tornam responsáveis, e vocês só podem ser responsáveis quando estão realmente criando, quando não estão mais imitando. Nessa liberdade haverá uma verdadeira cooperação, não o individualismo que agora existe.

05/09/1933.