1ª palestra em Londres

Embora tenhamos muitos problemas, e cada problema pareça produzir tantos outros problemas, talvez possamos considerar juntos se não é melhor parar de buscar a solução de todos os problemas. Parece que a nossa mente é incapaz de lidar com a totalidade da vida; aparentemente, lidamos com todos os problemas de modo fragmentário, isolado, e não com uma visão integrada. Se temos problemas, talvez a primeira coisa a fazer não seja buscar uma solução imediata para eles, mas termos a paciência de investigá-los profundamente e descobrir se esses problemas podem ser resolvidos pelo exercício da vontade. O que é importante, penso eu, é descobrir, não como resolver o problema, mas como abordá-lo. Porque, sem liberdade, toda abordagem é necessariamente limitada; sem liberdade, toda solução – econômica, política, pessoal, etc. – só pode acarretar mais sofrimento, mais confusão. Portanto, sinto ser importante descobrir o que é a verdadeira liberdade, descobrir por si mesmo o que é liberdade.

Só há uma liberdade – a liberdade religiosa; não há outra liberdade. A liberdade proporcionada pelo Estado de bem-estar, a liberdade econômica, nacional, política, e de várias outras formas, certamente não são de modo algum liberdade, mas somente levam a maior caos e maior sofrimento – o que é óbvio para qualquer um que observe. Portanto, acho que devíamos gastar todo o nosso tempo, nossa energia e nosso pensamento na investigação do que é liberdade religiosa – se é que existe tal coisa. Essa investigação requer muito insight, muita energia e perseverança, se quisermos levar a cabo a investigação sem sermos desviados por nenhuma atração. Acho que vale a pena concentrarmo-nos nesse problema, se pudermos: “o que significa ser livre no sentido religioso”. É possível libertar a mente – isto é, nossa própria mente, a mente individual – da tirania de todas as igrejas, de todas as crenças organizadas, todos os dogmas, todos os sistemas de filosofia, todas as várias práticas de yoga, todos os preconceitos sobre o que é a realidade ou Deus, e, pondo isso tudo de lado, descobrir por si mesmo se existe uma liberdade religiosa? Pois, certamente, só a liberdade religiosa pode oferecer, definitiva e fundamentalmente, a solução para todos os nossos problemas, tanto os individuais quanto os coletivos.

Isso significa, realmente, que a mente pode descondicionar-se a si mesma? Porque a mente, nossa própria mente, é, afinal, resultado do tempo, do crescimento, da tradição, da vasta experiência – não só a experiência do presente, mas a experiência coletiva do passado. Assim, a questão não é como enobrecer o nosso condicionamento, como melhorá-lo – coisa que a maioria de nós está tentando fazer – mas, sim, livrar a mente totalmente de todos os condicionamentos. A mim me parece que a questão verdadeira não é a que religião pertencer, qual sistema ou filosofia aceitar, ou qual disciplina praticar para realizar alguma coisa que está além da mente – se é que existe algo além da mente – mas, sim, descobrir, descobrir por si mesmo, pela compreensão de cada um de nós, pela investigação e pelo autoconhecimento, se a mente pode ser livre. Essa é a maior, a única revolução – libertar a mente de todo o condicionamento.

Afinal, para descobrir algo que seja eterno – se é que tal coisa existe – a mente não pode pensar em termos de tempo; não pode haver acúmulo do passado, pois isso engendra tempo. As próprias experiências que a pessoa acumula, precisam ser descartadas, pois elas fabricam tempo. Certamente, nossa mente é resultado do tempo; ela é condicionada pelo passado, pelas inúmeras experiências, pelas lembranças que temos acumulado e que nos dão continuidade. Portanto, pode-se ser realmente livre, no sentido religioso – no sentido mais profundo da palavra religião? Porque, obviamente, religião não consiste em rituais, dogmas, moralidade social, ir à igreja todos os domingos, praticar a virtude, o bom comportamento, que leva à respeitabilidade – certamente nada disso é religião. Religião é algo completamente diferente de tudo isso.

Se a pessoa descobrisse o que é ser livre em termos religiosos, acho que todo o problema da vontade, do desejo, com suas intenções, suas buscas, seus propósitos, suas inúmeras projeções – coisas em que a mente fica aprisionada – tudo isso precisa ser compreendido. Portanto, parece-me que os nossos problemas, quaisquer que sejam, só podem ser dissolvidos totalmente com a destruição do processo da vontade – o que pode parecer estranhíssimo para a mente ocidental, e mesmo para a mente oriental. Porque, afinal, a assim chamada religião que geralmente aceitamos é essencialmente baseada no processo de vir a ser, não é? – processo de finalmente alcançar certo estado que é projetado ou inventado. Podemos experimentar um novo estado em raros momentos, mas então perseguimos esses raros momentos, o que também implica – não é? – o cultivo da vontade de ser, de tornar-se algo, na qual encontra-se o processo do tempo. Se a mente procurasse algo que está além do tempo, além das limitações da nossa própria experiência, que é essencialmente baseada no condicionamento da ação, do pensamento, do sentimento – se encontrássemos algo além de tudo isso, certamente a nossa mente, que é feita de tantas buscas e tantos desejos, tem de chegar ao fim. O que realmente significa – não é mesmo? – a compreensão do inteiro processo da mente como sendo condicionado. Afinal, uma mente que seja condicionada, moldada, formatada na cultura de alguma sociedade, obviamente não pode descobrir o que se encontra além de todo o pensamento. E a descoberta daquilo que se encontra além, é a revolução, a verdadeira religião.

Portanto, o que é importante não é se você é cristão, budista, hindu, se você é um seguidor, mudando de uma religião para outra para satisfazer sua vaidade pessoal, aceitando certos rituais e descartando os antigos – você conhece a sensação que a pessoa tem quando frequenta cerimônias religiosas – tudo isso, parece-me, é prejudicial, completamente inútil para uma mente que descobrisse o que é verdadeiro. Mas, abdicar dessa busca por ação da vontade certamente só causa mais condicionamento, e acho que é importante compreender isso. Estamos acostumados a envidar esforços para alcançar um resultado. É por isso que praticamos; praticamos certas virtudes, perseguimos certa forma de moralidade, e tudo isso indica – não é? – um esforço da nossa parte para chegar algures.

Gostaria que pudéssemos realmente pensar sobre isso, discuti-lo, investigá-lo juntos – como realmente libertar a mente de todo o condicionamento, e se é possível descondicionar a mente, seja por meio de ação da volição, seja mediante análise dos vários processos de pensamento e suas reações, ou se existe um modo totalmente diferente de abordar este assunto, no qual só haja uma percepção que elimine todos os processos de pensamento na sua própria raiz. Todo pensamento é condicionado, obviamente; não existe pensamento livre. O pensamento jamais poderá ser livre; ele é resultado do nosso condicionamento, da nossa cultura, do nosso clima, do nosso background social, econômico, político. Os próprios livros que você lê e os rituais que pratica estão estabelecidos no backgroud, e qualquer pensamento tem de ser resultado desse background. Assim, se pudermos ficar cônscios – e podemos falar sobre o que significa ficar cônscios – talvez possamos descondicionar a mente sem o processo da vontade, sem a determinação de descondicionar a mente. Porque, no momento em que você se determina, há uma entidade que deseja, uma entidade que diz: “Preciso descondicionar minha mente.” Essa própria entidade é resultado do nosso desejo de alcançar certo resultado; assim, já temos aí um conflito. Portanto, é possível ficarmos cônscios do nosso condicionamento, só ficarmos cônscios? – estado em que não há nenhum conflito. Essa própria percepção, se a permitirmos, poderá talvez eliminar os problemas.

Afinal, todos sentimos que há alguma coisa além do nosso pensamento, dos nossos diminutos problemas, das nossas tristezas. Há momentos, talvez, em que experimentamos esse estado. Mas, infelizmente, essa mesma experiência torna-se um empecilho à posterior descoberta de coisas maiores, porque a nossa mente agarra-se àquilo que experimentou. Pensamos que é o real e, assim, agarramo-nos à coisa, mas esse ato impede o experimentar de algo muito maior.

Portanto, a questão é: “A mente condicionada pode olhar para si mesma, ficar cônscia do seu próprio condicionamento sem nenhuma escolha, ficar cônscia sem nenhuma comparação, sem condenação, e ver se, nessa percepção, o problema particular, o pensamento particular, não é queimado totalmente até a raiz? Certamente, qualquer forma de acumulação, seja de conhecimento ou de experiência, qualquer tipo de ideal, qualquer projeção da mente, qualquer prática destinada a moldar a mente – o que ela deve ser e não deve ser – tudo isso está obviamente prejudicando o processo de investigação e descoberta. Se a pessoa realmente examina isso e pensa seriamente sobre isso, verá que a mente tem de ser completamente livre de todo o condicionamento para ter a liberdade religiosa. E é só nessa liberdade religiosa que todos os nossos problemas, quaisquer que sejam, são resolvidos.

Portanto, penso que devemos investigar, não para encontrar a solução dos nossos problemas imediatos, mas para descobrir se a mente – a parte consciente e a parte profunda, inconsciente, na qual se armazenam todas as tradições, memórias, herança do conhecimento da raça – se tudo isso pode ser descartado. Acho que isso só pode ser feito se a mente for capaz de ficar cônscia sem nenhum senso de exigência, sem pressão alguma – somente ficar cônscia. Acho que isso é uma das coisas mais difíceis – ficar cônscio desse modo – porque ficamos presos no problema imediato e na sua solução imediata, e, assim, nossa vida fica muito superficial. Embora possamos ir a todos os analistas, ler todos os livros, adquirir muito conhecimento, frequentar igrejas, orar, meditar, praticar várias disciplinas, nossa vida é obviamente muito superficial porque não sabemos como penetrar profundamente. Acho que a compreensão, o modo de penetração, como ir muito, muito profundamente, reside na percepção – apenas ficarmos cônscios dos nossos pensamentos e sentimentos, sem condenação, sem comparação, apenas observar. Você verá, se experimentar, o quão extraordinariamente difícil é fazer isso, porque toda a nossa educação se deu no sentido de condenar, de aprovar, de comparar.

Portanto, parece-me que o nosso problema – que é realmente eterno – consiste em descobrirmos por nós mesmos, em experimentarmos diretamente o que significa libertar a mente de todo o condicionamento. É relativamente fácil livrar-se da nacionalidade, livrar-se das qualidades raciais herdadas, livrar-se de certas crenças, dogmas, e não pertencer a nenhuma igreja ou religião específica – essas coisas são relativamente fáceis para qualquer um que tenha pensado sobre tais assuntos e seja sério e sincero. Mas é muito mais difícil ir mais longe, ir além. Pensamos ter feito muita coisa se descartamos algumas camadas superficiais de cultura, seja ocidental, seja oriental. Mas, penetrar além, sem ilusão, sem se enganar, é muitíssimo difícil. A maioria de nós não tem a energia necessária para tal. Não estou falando da energia que vem mediante abstinência, negação, ascetismo, controle – essas coisas produzem um tipo errado de energia que distorce a observação – mas estou falando daquela energia que vem quando a mente já não está buscando coisa alguma, já não precisa buscar, não precisa descobrir, experimentar, e, portanto, é uma mente realmente tranquila. Só uma mente assim pode descobrir, pois é só uma mente assim tranquila que pode receber algo que não seja projeção sua. A mente tranquila é uma mente livre, e tal mente é a mente religiosa.

Então, podemos realmente considerar isto – não como um grupo coletivo experimentando alguma coisa, o que é relativamente fácil, mas como indivíduos – podemos realmente investigar e descobrir por nós mesmos até que ponto e em que profundidade estamos condicionados? E não podemos ficar cônscios desse condicionamento sem a ele reagirmos, sem o condenarmos, sem tentarmos alterá-lo, sem o trocarmos por um novo condicionamento, mas ficarmos cônscios, tão facilmente e profundamente, que o próprio processo de condicionamento – o qual é, afinal, o desejo de estar em segurança, o desejo de permanência – seja queimado até a raiz? Podemos descobrir isso por nós mesmos – não porque alguém tenha falado sobre isso – e ficar cônscios disso diretamente, de modo que a própria raiz, o próprio desejo de ficar em segurança, de ser permanente, seja totalmente queimado? É esse desejo de ser permanente, quer no futuro quer no passado, de agarrar-se à acumulação de experiência, que dá à pessoa o senso de segurança; será que isso não pode ser eliminado? Porque é isso que engendra o condicionamento. Esse desejo que a maioria das pessoas tem de saber, e, nesse próprio saber, encontrar segurança, ter experiência que nos dê força – podemos livrar-nos de tudo isso? – não por ato da vontade, mas queimá-lo completamente na percepção, de modo que a mente fique livre de todos os seus desejos, e aquilo que é eterno possa manifestar-se.

Acho que isso é a única revolução – não a revolução comunista ou qualquer outra. Essas revoluções não resolvem os nossos problemas; ao contrário, elas os aumentam, elas multiplicam as nossas aflições – o que é bem óbvio. Certamente, a única revolução verdadeira é a libertação da mente do seu condicionamento, e, assim, da sociedade – não a simples reforma da sociedade. O homem que reforma a sociedade ainda fica aprisionado nela, mas o homem que está livre da sociedade, sendo livre do condicionamento, este agirá do seu próprio modo, e tal ação agirá de novo sobre a sociedade. Portanto, o nosso problema não é reforma, como melhorar a sociedade, como ter um melhor Estado de bem-estar, seja comunista, ou socialista, ou outro qualquer. Não é uma revolução econômica ou política, ou paz mediante terror. Para um homem sério, essas coisas não são o problema. Seu verdadeiro problema é descobrir se a mente pode ficar completamente livre de todo o condicionamento, e, assim, talvez, descobrir, nesse extraordinário silêncio, aquilo que está além de toda mensuração.

Há várias perguntas e, antes de eu as responder, acho importante descobrir o que queremos dizer com ‘problema’. Só existe problema quando a mente está ocupada. Por favor, escutem, e, se eu puder sugerir, não saltem para conclusões, pois estamos tentando investigar a coisa em sua inteireza. Quando a mente está ocupada, seja com Deus, com a cozinha, com uma pessoa, ou com uma ideia, uma virtude – toda essa ocupação certamente cria problemas. Se estou ocupado com a descoberta de Deus, ou da verdade, então isso se torna um problema, pois eu saio perguntando, suplicando, tentando descobrir qual método é o melhor, etc. Portanto, a questão real não é o próprio problema, mas, sim, por que a mente está ocupada. Por que a mente busca ocupação? Não estou falando da ocupação diária do trabalho e todo o resto, mas dessa ocupação psicológica da mente – que tem relação com a nossa vida diária. Porque, se estamos ocupados com Deus, com a verdade, com o amor, com o sexo, ou com os trabalhos da cozinha ou da nação, todas as ocupações dão no mesmo; não há ocupações ‘nobres’. A mente procura ocupação, não é verdade? Ela quer ficar ocupada com alguma coisa; ela teme não estar ocupada. Tente, alguma vez, ver o quão ocupado você está com os seus problemas, e descubra o que aconteceria se não estivesse tão ocupado. Você logo descobrirá quão assustada fica a mente se não tiver nenhuma ocupação! Toda a nossa cultura, todo o nosso treinamento, nos diz que a mente deve estar ocupada, e, mesmo assim, parece-me que a ocupação mesma cria o problema. Não que não existam problemas – existem problemas, mas penso que é a ocupação com o problema que impede a compreensão dele. É realmente muito interessante observar a mente, vigiar a própria mente e descobrir quão incessantemente ela está ocupada com uma coisa ou outra – não há um só momento em que ela esteja quieta, desocupada, vazia, nunca há um espaço no qual não haja limites.

Estando assim ocupados, nossos problemas não param de crescer, e a simples solução de um problema particular, sem o entendimento do processo todo da ocupação da mente, só faz criar outros problemas. Portanto, não podemos entender essa peculiar insistência da mente em manter-se ocupada – seja com ideias, com especulações, com conhecimentos, com ilusões, com estudo, ou com sua própria virtude e seus temores? Ficar livre de tudo isso, ter uma mente desocupada, é muito difícil porque significa, realmente, a cessação de toda reação da memória, que é chamada de pensamento.

Interrogante: Sou muito apegado e sinto que é muito importante cultivar o desapego. Como posso ter a sensação de estar livre do desapego?

Krishnamurti: O nosso problema é o desapego? Ou é o apego? – ser apegado traz sofrimento, e, portanto, queremos ser desapegados. Se pudermos fitar o inteiro processo do apego, não apenas superficialmente, mas penetrar no inteiro significado do apego, na sua profundidade, então talvez haja algo inteiramente diferente daquilo que chamamos de desapego.

Por que somos apegados a alguma coisa – à propriedade, a pessoas, a ideias, a crenças? – vocês conhecem as numerosas formas de apego a tantas coisas. Por que temos apegos? Não há uma sensação de medo se não estivermos apegados a alguma coisa – a um amigo, a uma ideia, a uma experiência já acabada, a um filho, a um irmão, a uma mãe, a uma esposa falecida? Não sentimos que somos desleais, que não temos amor, se não formos apegados? E, também, não há um medo extraordinário de não sermos algo por meio do apego? Esse é o problema, e não como cultivar o desapego. Se você cultivar o desapego, esse próprio cultivo torna-se um problema.

Por favor, veja isto. Sou apegado. Esse apego é resultado do medo, das várias formas de solidão, vazio, etc. Estou cônscio disso, e conheço a dor do apego, de modo que tento cultivar o desapego. Minha mente está ocupada com o desapego e com como chegar ao desapego, e esse próprio processo torna-se um problema, não é verdade? Quero alcançar o desapego, e, então, a mente, estando ocupada com o resultado, com uma ideia chamada desapego, transforma essa empreitada num problema; então há conflito – “Sou apegado, preciso ser desapegado” – há sofrimento, e, assim, há uma luta constante para chegar a um estado particular no qual não haja dor, não haja medo. Mas, se eu puder olhar para o apego, ficar cônscio dele, não perguntar como livrar-me da dor, nem lutar para compreender toda a implicação do apego, mas apenas ficar cônscio dele como se fica cônscio do céu – que está nublado, chuvoso, ou azul – então não há problema; então a mente não está ocupada com o apego nem com o seu oposto, o desapego. Quando a mente está assim cônscia, ela vê o inteiro significado do apego. Mas você não pode ver o completo significado interior do apego, se houver alguma forma de condenação, alguma forma de comparação, julgamento, avaliação.

Se fizer uma experiência com isso, você saberá. Meramente cultivar o desapego torna-se coisa muito superficial. Se você for desapegado, que importância tem isso? Mas quando há percepção, você verá que, onde houver apego, não haverá amor; onde houver apego, haverá desejo de permanência, de segurança, de autocontinuidade – o que não significa que devamos buscar a autodestruição. E, vendo isso, o problema do apego fica muito mais importante e vasto. Simplesmente fugir do apego, porque acarreta tanta dor, só pode levar ao amor superficial, ao pensamento superficial. E a maioria de nós, que estamos praticando a virtude – a virtude do desapego, da não-ambição, da não-violência – vivemos uma vida superficial – a vida das ideias, a vida das palavras.

Se a pessoa estiver cônscia do inteiro problema do apego, começará a descobrir a sua extraordinária profundidade, como a mente está apegada à experiência de ontem, com a sua dor ou com o seu prazer, como a mente agarra-se a ela. Não se pode ficar livre da experiência de prazer e de dor até que se fique realmente cônscio. Nessa percepção em que não há escolha, em que não há reação, a mente pode penetrar fundo. A simples prática de qualquer virtude só pode levar à respeitabilidade, coisa que a maioria das pessoas deseja, pois a respeitabilidade identifica-nos com a sociedade. Todos nós desejamos ser reconhecidos como sendo algo – grande ou pequeno, isto ou aquilo – e a essa ideia estamos apegados. Talvez queiramos desapegar-nos das pessoas porque esse apego nos causa dor, ao passo que a ideia à qual estamos apegados não o faz. Mas, para realmente compreender todo esse problema do apego – à tradição, à nacionalidade, ao costume, a um hábito, ao conhecimento, à opinião, a um salvador, a todas as inumeráveis crenças e descrenças – não podemos ficar satisfeitos com simplesmente arranhar a superfície e pensar que já compreendemos o problema do apego, quando estamos cultivando o desapego. Por outro lado, se não tentarmos cultivar o desapego – o que apenas se torna outro problema – se pudermos apenas olhar claramente para o apego, então talvez possamos aprofundar-nos e descobrir algo inteiramente diferente, algo que não é nem apego nem desapego.

Interrogante: Estudei muitos sistemas de filosofia e os ensinamentos dos grandes líderes religiosos. O senhor tem algo melhor para oferecer do que aquilo que já conhecemos?

Krishnamurti: Pergunto-me por que o senhor estuda, por que lê filosofia, por que lê o que disseram os líderes religiosos. O senhor acha que o conhecimento que aprendeu, sobre o qual leu, o levará a alguma parte? Talvez numa discussão, para exibir sua inteligência ou erudição, isso possa ter utilidade. Mas será que o conhecimento acumulado – exceto no mundo científico – levará o homem, o senhor e a mim, a descobrir o que é real, o que é verdadeiro, o que é Deus, o eterno? – sem o que a vida tem muito pouco significado. Certamente, para descobrir o que é o eterno, todo o conhecimento tem de desaparecer, não é verdade? As palavras de Buda, de Cristo, de todos – não precisamos pôr de lado tudo isso? Se não for assim, então o senhor está meramente buscando suas próprias projeções ou a projeção da sua igreja; é realmente ao seu próprio condicionamento que o senhor está respondendo.

Certamente, o senhor deve deixar de ser cristão, hindu, budista, ou praticante de yoga – precisa abandonar completamente tudo isso para que se manifeste algo que está além – se é que existe algo além. Apenas dizer que há algo além e aceitá-lo, e ter esperança de alcançá-lo, fazendo disso um problema, é muito superficial obviamente. Mas podemos fazer uma viagem “não sabendo”, não tendo nenhum incentivo, não tendo nenhum apoio, não sendo nem cristão, nem budista, nem hindu, coisas que não passam de rótulos indicativos de uma mente condicionada? Pôr de lado todo o “conhecimento” é o único problema – e não “Tenho algo melhor para oferecer?” Pois, certamente, a pessoa precisa ficar só – não isolada, não sozinha em conhecimento, sozinha em experiência, porque todo conhecimento, toda experiência, é um obstáculo à descoberta daquilo que é real. A mente precisa ficar livre de todo condicionamento, sozinha, para descobrir. Quanto mais o senhor praticar, quanto mais acumular, quanto mais se disciplinar, moldar, lutar, menor será a compreensão daquilo que é.

Não estou falando de alguma filosofia indiana da negação, de não fazer nada, enquanto vocês todos têm a ideia ocidental de fazer alguma coisa; não estou falando disso. Estamos falando de coisa completamente diferente. A mente precisa tornar-se inocente, fresca. Ela não pode ser fresca e inocente se houver acumulação de conhecimento, ou a mera repetição de palavras de um professor, ou o resultado final de alguma prática. Não poderia a mente ficar cônscia do seu próprio condicionamento – não só o condicionamento superficial, mas todos os símbolos, todas as ideologias, filosofias, imagens, todas aquelas coisas lá no fundo que condicionam a mente?Ficar cônscio de tudo isso e libertar-se – tal liberdade é liberdade religiosa. É essa liberdade que faz a revolução – a única revolução que pode transformar o mundo.

17 de junho de 1955