Terceira Palestra em Ojai

 

Sem a experiência do real não pode haver liberdade do conflito e do sofrimento; só o real pode transformar nossa vida, não uma simples resolução. Toda atividade do ego com suas resoluções e negações deve cessar para o real surgir. Para compreender as atividades do ego, deve haver sério empenho, vigilância sustentada e interesse. Muitos de nós nos abraçamos as nossas crenças ou experiências, e isso só gera obstinação.

A seriedade não depende de disposições, de circunstâncias, nem de estímulo. Alguns que estão tentando viver uma vida séria são enérgicos em alguma linha de pensamento particular, crença ou disciplina e, assim, se tornam intolerantes e rígidos. Tal esforço enérgico impede a compreensão profunda e fecha a porta sobre a realidade. Se você considerar isso com cuidado, verá que o necessário é o discernimento natural, sem esforço, a liberdade para descobrir e compreender. Estas ideias, se permitidas, criarão raízes e produzirão uma transformação radical em nossa vida diária. A receptividade não forçada é muito mais significativa que o esforço feito para compreender.

Interrogante: Receio que isso não esteja bem claro.

Krishnamurti: Muitos de nós aqui estamos fazendo um esforço para compreender; tal esforço é a atividade da vontade, que só cria resistência, e resistência não é superada com outra resistência, com outro ato da vontade; tal esforço, de fato, impede a compreensão; por outro lado, se estivermos atentamente flexíveis e conscientes, poderíamos compreender profundamente. Todo o esforço que fazemos agora brota do desejo de autoexpansão; só quando há vigilância sem esforço pode haver descoberta e compreensão, uma percepção do verdadeiro.

Quando vemos uma pintura, primeiro queremos saber quem é o pintor; daí nós a comparamos e criticamos ou tentamos interpretá-la de acordo com nosso condicionamento. Nós, realmente, não vemos o quadro ou o cenário, mas só estamos interessados em nossa hábil capacidade de interpretação, crítica ou admiração; em geral estamos tão cheios de nós mesmos que, realmente, não vemos o quadro ou o cenário. Se pudéssemos afastar nosso julgamento e hábil análise, então talvez a pintura pudesse transmitir seu significado. Do mesmo modo, estas discussões terão significação apenas se estivermos abertos para a experiência da descoberta, que é impedida por nosso apego obstinado a crenças, memórias e preconceitos condicionados.

Interrogante: Existe alguma coisa que se pode fazer para estar passivamente consciente? Posso fazer alguma coisa para estar aberto?

Krishnamurti: O próprio desejo de estar aberto pode ser um esforço do ego, o que só cria resistência. Mas podemos estar conscientes que somos fechados, que a atividade da vontade é resistência, e que o próprio desejo de alcançar a consciência passiva é outro obstáculo. Fazer um esforço positivo para estar aberto é erguer a barreira da ganância. Estar consciente das atividades egocêntricas é derrubá-las. A conscientização passiva só chega quando a mente-coração está tranquila. Nessa quietude o real surge. Essa quietude não é para ser induzida nem é o resultado da atividade da vontade. Uma inteligência que é produto do desejo, da autoexpansão, está sempre criando resistência, e não pode produzir tranquilidade. Tal inteligência da autoproteção é produto do tempo, do inconstante e, assim, não pode experimentar o eterno.

Interrogante: Essa inteligência não é útil de outras formas?

Krishnamurti: Seu único uso é se proteger, o que causou inenarrável miséria e dor.

Interrogante: Desde a ameba até o homem a inteligência de estar seguro, de autoexpansão é inevitável e natural, ela é um círculo vicioso fechado.

Krishnamurti: Pode parecer assim, mas a atividade de ficar seguro não levou o homem à segurança, à felicidade, à sabedoria. Levou-o à crescente confusão, conflito e miséria. Existe uma atividade diferente que não é do ego, que deve ser descoberta. Uma inteligência diferente é necessária para experimentar o eterno, e só ela nos libertará da incessante luta e sofrimento. A inteligência que hoje possuímos é o resultado de ansiar por gratificação, segurança, sob forma rude ou sutil; é o resultado da ambição; é conseqüência da auto-identificação. Tal inteligência não pode experimentar o real.

Interrogante: Você afirma que inteligência e autoconsciência são sinônimas?

Krishnamurti: Consciência é o resultado de continuidade identificada. Sensação, sentimento, racionalização e a continuidade da memória identificada constituem a autoconsciência, não? Podemos afirmar precisamente onde a consciência termina e a inteligência começa? Elas fluem uma para a outra, não? Existe consciência sem inteligência?

Interrogante: Uma nova inteligência surge se estivermos conscientes da inteligência autoexpansiva?

Krishnamurti: Conheceremos, como experiência, a nova forma de inteligência apenas quando a inteligência autoprotetora e autoexpansiva cessar.

Interrogante: Como podemos ir além dessa inteligência limitada?

Krishnamurti: Estando passivamente conscientes de suas atividades complexas e inter relacionadas. Estando conscientes assim, as causas que alimentam a inteligência do ego chegam ao fim sem esforço autoconsciente.

Interrogante: Como se pode cultivar a outra inteligência?

Krishnamurti: Essa não é uma pergunta errada? Será que estamos dando atenção interessada ao que está sendo dito? O errado não pode cultivar o certo. Ainda estamos pensando em termos de inteligência auto expandida, e essa é nossa dificuldade. Não temos consciência disso e perguntamos, sem pensamento, “Como pode a outra inteligência ser cultivada?” Certamente há certos requisitos óbvios, essenciais que libertarão a mente desta inteligência limitada: humildade, que está relacionada com humor e piedade; não ter ambição, que é não ter identificação; ser abnegado (altruísta), que é estar liberto de valores sensoriais; estar livre da estupidez, da ignorância, que é falta de autoconhecimento e assim por diante. Devemos estar cônscios dos caminhos astuciosos e tortuosos do ego, e ao compreendê-los a virtude surge, mas a virtude não é um fim em si mesmo. O interesse próprio não pode cultivar a virtude, ele só pode se perpetuar sob a máscara da virtude; sob o abrigo da virtude existe ainda a atividade do ego. É como se estivéssemos tentando ver a luz clara e pura através de óculos coloridos, que não temos consciência de estar usando. Para ver a luz pura devemos primeiro estar cientes de nossos óculos coloridos; essa própria conscientização, se o ímpeto para ver a luz pura for forte, nos ajuda a remover os óculos coloridos. Essa remoção não é a ação de uma resistência contra a outra, mas é uma ação sem esforço da compreensão. Devemos estar consciente do vigente, e a compreensão “do que é” libertará o pensamento; essa própria compreensão produzirá receptividade aberta, transcendendo a inteligência particular.

Interrogante: Como a inteligência com a qual estamos todos familiarizados surge?

Krishnamurti: Ela surge pela percepção, sensação, contato, desejo, identificação – tudo isso dá continuidade ao ego através da memória. O princípio do prazer, da dor, da identificação sustenta sempre esta inteligência que não pode abrir a porta para a verdade.

Interrogante: Temos que fazer algum tipo de esforço, não?

Krishnamurti: O esforço que fazemos agora é uma atividade de expansão do ego com sua inteligência particular. Esse esforço só pode reforçar, positivamente ou negativamente, a inteligência autoprotetora ou resistência. Essa inteligência não pode experimentar o real, e só ele pode trazer a libertação de nosso conflito, confusão e sofrimento.

Interrogante: Como essa inteligência surgiu?

Krishnamurti: Ela não foi cultivada com a especialização? Não surgiu pela imitação, pelo condicionamento?  O cultivo do ‘eu’, do ‘meu’ é especialização – o ‘eu’ que é especial, importantíssimo: meu trabalho, minha ação, meu sucesso, minha virtude, meu país, meu salvador – este impulso positivo e negativo  para se tornar implica especialização. Especialização é morte, a falta de infinita flexibilidade.

Interrogante: Eu vejo isso, mas o que vou fazer?

Krishnamurti: Esteja consciente, sem escolha, deste processo de especialização, e você descobrirá que uma profunda mudança revolucionária está acontecendo em você. Não diga para si mesmo que você vai ficar consciente, ou que a conscientização tem que ser cultivada, ou que isso é uma questão de amadurecimento ou habilidade, o que é indicação de adiamento, preguiça. Você está ou não está consciente. Esteja consciente agora desse processo de especialização.

Interrogante: Tudo isso implica extenso estudo de si mesmo e autoconhecimento, não?

Krishnamurti: E é isso exatamente que estamos tentando aqui; estamos expondo a nós mesmos os caminhos de nosso pensamento-sentimento – sua astúcia, sua sutileza, o orgulho de sua chamada inteligência e assim por diante. Isso não é conhecimento de livro, mas experiência real, de momento a momento, nos caminhos do ego. Assim estamos tentando descobrir os caminhos do ego. O desejo de se expandir no mundo ou a busca da virtude é ainda atividade do ego, o ímpeto de se tornar, negativamente ou positivamente, é o fator na especialização. Este desejo que impede a infinita flexibilidade deve ser compreendido pela conscientização do processo de especialização do ‘eu’.

Interrogante: Se eu for apenas flexível, não posso andar errado e, por isso, não devo estar ancorado na verdade?

Krishnamurti: A verdade é encontrada no desconhecido mar do autoconhecimento. Mas por que você faz essa pergunta? É porque você tem medo de se perder? Isso não implica que você deseja alcançar, ter sucesso, estar sempre certo? Ansiamos por segurança e esse anseio impede a liberdade da verdade. Aqueles que vivem em profundo autoconhecimento são flexíveis. Vemos que uma das causas da resistência é a especialização, e outra é a imitação. O desejo de copiar é complexo e sutil. A estrutura de nosso pensamento se baseia na imitação, religiosa ou mundana. Jornais, rádios, revistas, livros, educação, governos, religiões organizadas – todos esses e outros fatores ajudam a fazer o pensamento se adaptar. Também, cada pessoa deseja se adaptar, pois é mais fácil se adaptar do que estar consciente. A adaptação é a base de nossa existência social, e temos medo de ficarmos sozinhos. O medo e a negligência produzem aceitação e conformidade, a aceitação da autoridade. Tanto com o indivíduo quanto com o grupo, com a nação.

A conformidade é um dos muitos meios que o ego usa para se manter. O pensamento sai do conhecido para o conhecido, sempre com medo do desconhecido, do incerto e, contudo, só quando existe incerteza, quando a mente não está na escravidão do conhecido existe o êxtase do real. O pensamento deve estar sozinho para a compreensão do real. Pelo autoconhecimento o processo imitativo chega ao fim.

Interrogante: Devemos encarar o desconhecido sempre?

Krishnamurti: O eterno é sempre o desconhecido para uma mente que acumula; aquilo que é acumulado é memória, e a memória está sempre no passado, ligada ao tempo. Aquilo que é resultado do tempo não pode experimentar o infinito, o desconhecido.

Sempre seremos confrontados com o desconhecido até compreendermos o conhecido, que somos nós mesmos. Essa compreensão não pode ser dada a você pelo especialista, o psicólogo ou o sacerdote; você tem que buscá-la por si mesmo, em você mesmo, pela conscientização de si. A memória, o passado modela o presente de acordo com o padrão de prazer e dor. A memória se torna a guia, o caminho em direção à segurança; é essa memória identificada que dá continuidade ao ego.

A busca por autoconhecimento demanda constante vigilância, uma conscientização sem escolha, o que é difícil e árduo.

Interrogante: Somos lagartas que devemos nos transformar em borboletas?

Krishnamurti: Como caímos facilmente em modos ignorantes de pensar! Sendo maus, no final nos tornaremos bons; sendo mortais, nos tornaremos imortais. Com esses pensamentos confortantes nos entorpecemos. O mau não pode se tornar bom; o ódio não pode se tornar amor; a ganância não pode se tornar não-ganância. O ódio deve ser abandonado, ele não pode se transformar numa coisa que ele não é. Com o amadurecimento, com o tempo, o mau não pode se tornar bom. O tempo não transforma o ignóbil em nobre. Devemos estar conscientes desta ignorância e suas ilusões. Somos educados para pensar que o conflito dos opostos produz um resultado esperado, mas não é assim. Um oposto é o resultado de resistência e a resistência não é superada por seu oposto. Cada resistência deve ser dissolvida não por seu oposto, mas pela compreensão da própria resistência.

O conflito existe entre vários desejos, não entre luz e escuridão. Não pode haver luta entre luz e escuridão, pois onde existe luz, não há escuridão, onde está a verdade o falso não está. Quando o ego se divide entre o mais elevado e o mais inferior, essa própria contradição gera conflito, confusão e antagonismo. Estar consciente do que é e não fugir para a ilusão fantasiosa é o início da compreensão. Devemos nos preocupar com o que é, o anseio por autoexpansão, e não transformá-lo, pois o transformador  ainda anseia, o que é ação do ego; a própria conscientização gera compreensão. Estar cônscio de momento a momento traz sua própria clarificação. O desejo de aquisição e reconhecimento impede o despertar; aquele que dorme sonha que deve despertar e luta em seu sonho, mas é apenas um sonho. Quem dorme não pode despertar através dos sonhos; ele deve parar de dormir. O pensamento em si deve estar consciente de criar a estrutura do ego e sua perpetuação. A pessoa que é séria deve descobrir por si mesma a verdade sobre a autoperpetuação.

Interrogante: O que existe para provar que a perpetuação do ego é ruim por si mesma?

Krishnamurti: Nada mesmo, se estivermos satisfeitos com isso e ignorarmos as questões da vida, mas estamos todos em luta comparativa e sofrimento. Alguns encobrem suas dores ou fogem delas. Eles não resolveram sua confusão e miséria.

Percebendo nosso estado de contradição e seus conflitos dolorosos, queremos encontrar o modo certo de transcendê-los; pois na incompletude não há paz. Não é da própria natureza do ego, o tempo todo, ser contraditório? Essa contradição gera conflito, confusão e animosidade. Ansiar, a própria base do ego, nunca é satisfatório; tentando superar a incompletude, o homem está sempre em conflito do lado de dentro e do lado de fora. Aqueles que são sérios devem descobrir por si mesmos a verdade sobre a incompletude. Essa descoberta não depende de nenhuma autoridade ou fórmula nem da aquisição de conhecimento. Para descobrir a verdade devemos estar passivamente conscientes. Desde que somos medrosos e fechados devemos nos conscientizar das causas que criam resistência, do desejo de autoperpetuação que cria conflito.

Interrogante: E o que acontece com esta inteligência que se autoperpetua quando um soldado na batalha se atira na frente da arma para salvar outra pessoa?

Krishnamurti: Provavelmente num momento de grande tensão o soldado se esquece de si, mas isso é uma recomendação para a guerra?

Interrogante: Não ouvimos dizer que a guerra provoca qualidades nobres de auto-sacrifício?

Krishnamurti: Com um ato errado, a morte do outro, pode um fim correto, digno ser realizado?

Interrogante: O autoconhecimento não é um objetivo difícil?

Krishnamurti: É e, contudo, não é. Ele exige discernimento sem esforço, receptividade sensível. A vigilância constante é árdua porque somos preguiçosos; preferimos conseguir através dos outros, lendo mais, mas informação não é autoconhecimento. Nesse meio tempo continuamos com a ganância, guerras e a vã repetição de rituais. Tudo isso indica – não? – o desejo de fugir do problema real, que é você e sua deficiência interior. Sem compreender a si mesmo, a simples atividade exterior, mesmo digna e satisfatória, só leva a mais confusão e conflito. A busca séria pela verdade por meio do autoconhecimento é verdadeiramente religiosa. O indivíduo verdadeiramente religioso começa consigo mesmo; seu autoconhecimento e compreensão formam a base de toda sua atividade. Conforme ele compreender, saberá o que é servir e o que é amar.

 

21 de abril de 1946