1ª Palestra

STRESA, ITÁLIA 

Amigos, nas minhas conversas não vou tecer uma teoria intelectual. Vou falar da minha própria experiência que não nasceu de ideias intelectuais, mas que é real. Por favor, não pensem em mim como um filósofo expondo um novo conjunto de ideias com as quais seu intelecto pode fazer malabarismos. Não é isso o que quero oferecer-lhes. Mais propriamente gostaria de lhes explicar que a verdade, a vida de plenitude e riqueza, não pode ser realizada através de qualquer pessoa, através da imitação ou através de qualquer forma de autoridade.

A maioria de nós sente ocasionalmente que há uma vida verdadeira, algo eterno, mas os momentos em que sentimos isso são tão raros que esse “algo eterno” passa cada vez mais a segundo plano e parece-nos cada vez menos uma realidade.

Agora, para mim existe a realidade; existe uma realidade viva eterna – chame-a de Deus, imortalidade, eternidade, ou o que quiserem. Existe algo vivo, criativo, que não pode ser descrito, pois a realidade ilude qualquer descrição. Nenhuma descrição da verdade pode ser duradoura visto que só pode ser uma ilusão de palavras. Não se pode conhecer o amor através da descrição de alguém; para conhecer o amor, é preciso tê-lo experimentado. Não se pode conhecer o sabor do sal até que se tenha provado. Contudo, passamos o nosso tempo à procura de uma descrição da verdade em vez de tentarmos descobrir uma maneira para a sua realização. Afirmo que não posso descrever, não posso pôr em palavras, essa realidade viva que está além de toda ideia de progresso, de toda ideia de crescimento. Cuidado com aquele que tenta descrever essa realidade viva, porque ela não pode ser descrita; deve ser experimentada, vivida.

Essa realização da verdade, do eterno, não está no movimento do tempo, que é apenas um hábito da mente. Quando se diz que se realizará com o decorrer do tempo, ou seja, num futuro, então você está apenas a protelar essa realização que deve estar sempre no presente. Mas se a mente compreender a completude da vida, e estiver livre da divisão do tempo em passado, presente e futuro, então aí chega à realização dessa realidade eterna e viva.

Mas visto que todas as mentes estão aprisionadas na divisão do tempo, uma vez que pensam no tempo em termos de passado, presente e futuro, então surge o conflito. Mais uma vez, porque dividimos a ação em passado, presente e futuro, porque para nós a ação não está completa por si própria, mas é antes algo impulsionado por motivos, por medo, por guias, por compensação ou castigo, as nossas mentes são incapazes de compreender o todo contínuo. Somente quando a mente está livre da divisão do tempo é que a verdadeira ação pode resultar. Quando a ação nasce da completude, não da divisão do tempo, então essa ação é harmoniosa e está livre dos obstáculos da sociedade, classes, raças, religiões e ganância.

Pondo a questão de outra forma, a ação deverá tornar-se verdadeiramente individual. Notem que não estou a utilizar a palavra “individual” no sentido de colocar o indivíduo contra a multidão. Por ação individual quero dizer ação que nasceu da completa compreensão, completo entendimento por parte do indivíduo, entendimento esse não imposto pelos outros. Onde existe esse entendimento, existe verdadeira individualidade, verdadeira solidão – não a solidão da fuga para o isolamento, mas a solidão que nasceu da compreensão total das experiências da vida. Para a completude da ação, a mente deve estar livre dessas ideias de tempo como ontem, hoje e amanhã. Se a mente não estiver livre dessa divisão, então surge o conflito levando ao sofrimento e à procura de fugas desse sofrimento.

Eu afirmo que existe uma realidade viva, uma imortalidade, uma eternidade que não pode ser descrita; ela só pode ser compreendida na completude da sua própria ação individual, não como parte de uma estrutura, não como parte de uma máquina social, política ou religiosa. Portanto, devem experimentar a verdadeira individualidade antes de poderem compreender o que é verdadeiro. Enquanto vocês não agirem a partir dessa fonte eterna, haverá conflito, haverá divisão e conflito contínuos.

Agora, cada um de nós conhece o conflito, a luta, a mágoa, a falta de harmonia. Esses são os elementos que amplamente compõem as nossas vidas, e deles tentamos, consciente ou inconscientemente, fugir. Mas poucos conhecem por si próprios a causa do conflito. Intelectualmente eles poderão conhecer a causa, mas esse conhecimento é meramente superficial. Conhecer a causa é ter consciência dela não só com a mente, mas também com o coração.

Visto que poucos estão conscientes da causa profunda do seu sofrimento, eles sentem o desejo de fugir desse sofrimento, e esse desejo de fuga criou e vitalizou os nossos sistemas morais, sociais e religiosos. Aqui não tenho tempo para entrar em detalhes, mas se pensarem no assunto, verão que os nossos sistemas religiosos de toda parte do mundo se baseiam nesta ideia de protelação e evasão, esta procura de intermediários e consoladores. Por não sermos responsáveis pelos nossos próprios atos, por procurarmos fugir dos nossos sofrimentos, criamos sistemas e autoridades que nos darão conforto e abrigo.

Qual é, então, a causa do conflito? Por que sofremos? Por que temos que lutar incessantemente? Para mim, o conflito é o fluxo impedido da ação espontânea, do pensamento e sentimento harmoniosos. Quando o pensamento e a emoção são desarmoniosos, há conflito na ação; ou seja, quando a mente e o coração estão num estado de discórdia, eles criam um impedimento à expressão da ação harmoniosa e, portanto, conflito. Tal impedimento à ação harmoniosa é causado pelo desejo de fuga, pelo evitar contínuo de enfrentar a vida integralmente, por enfrentar a vida sempre com o peso da tradição – seja ela religiosa, política ou social. Essa incapacidade de encarar a experiência em sua completude cria conflito e o desejo de fugir dele.

Se considerarem os seus pensamentos e os atos deles provenientes, verão que onde existe o desejo de fuga deve haver a procura por segurança; e porque encontram conflito na vida com todas as suas ações, suas emoções, com seus pensamentos, vocês querem fugir desse conflito para uma segurança satisfatória, para uma permanência. Portanto, toda sua ação está baseada nesse desejo de segurança. Mas na realidade, não existe segurança na vida – nem física, nem intelectual, nem emocional, nem espiritual. Se sentem que estão seguros, jamais poderão encontrar essa realidade viva; no entanto, a maioria de vocês procura segurança.

Alguns de vocês procuram segurança física através da riqueza, do conforto e do poder sobre os outros que a riqueza lhes confere; interessam-se pelas diferenças sociais e privilégios sociais que lhes asseguram uma posição da qual retiram satisfação. A segurança física é uma forma rude de segurança, mas uma vez que tem sido impossível para a maioria da humanidade alcançar essa segurança, o homem voltou-se para a forma subtil de segurança a que chama de segurança espiritual ou religiosa. Por causa do desejo de fugir do conflito, procura-se e estabelece-se segurança – física ou espiritual. A ânsia de segurança física é demonstrada pelo desejo de ter uma conta bancária substancial, uma boa posição, o desejo de ser considerado alguém na cidade, a luta por graus acadêmicos e títulos e todas essas estupidezes sem significado.

Depois, alguns de vós tornam-se insatisfeitos com a segurança física e voltam-se para a segurança numa forma mais subtil. Continua a ser segurança, mas apenas um pouco menos óbvia, e chamam-lhe de “segurança espiritual”. Mas eu não vejo uma diferença real entre as duas. Quando estão saciados com a segurança física ou quando não conseguem alcançá-la, voltam-se para o que chamam de “segurança espiritual”. E quando se voltam para ela, vocês instauram e vitalizam essas coisas a que chamam de religião e crenças espirituais organizadas. Porque procuram segurança, vocês estabelecem uma forma de religião, um sistema de pensamento filosófico no qual são presos, do qual se tornam escravos. Assim, do meu ponto de vista, as religiões com todos os seus intermediários, as suas cerimônias, os seus sacerdotes, destroem o entendimento criativo e pervertem o discernimento.

Uma forma de segurança religiosa é a crença na reencarnação, a crença em vidas futuras, com tudo o que essa crença implica. Eu afirmo que quando um homem está preso em qualquer crença, ele não pode conhecer a plenitude da vida. O homem que vive plenamente age a partir daquela fonte em que na qual não há reação, mas apenas ação; mas o homem que procura segurança, fuga, tem que se agarrar a uma crença, porque dela obtêm apoio contínuo, encorajamento para sua falta de compreensão.

Existe depois a segurança criada pelo homem na ideia de um Deus. Muita gente me pergunta se acredito ou não em Deus, se existe um Deus. Isso não se pode discutir, a maioria das nossas ideias sobre Deus, sobre a realidade, sobre a verdade, são meras imitações especulativas. Portanto, elas são absolutamente falsas, e todas as nossas religiões se baseiam em tais falsidades. Um homem que tenha vivido toda a sua vida na prisão apenas pode especular sobre a liberdade; um homem que nunca experimentou o êxtase da liberdade não pode conhecer a liberdade. Portanto, é de pouca utilidade discutir sobre Deus, sobre a verdade; mas se tiverem a inteligência, a intensidade para destruir as barreiras que os rodeiam, então conhecerão por si mesmos a realização da vida. Não mais serão, então, escravos num sistema social ou religioso.

Novamente, existe a segurança através do trabalho. Isto é, gostam de se perder no lodaçal da atividade, no trabalho. Através dessa atividade, dessa segurança, vocês procuram fugir do confronto com as suas próprias lutas incessantes.

Portanto, a segurança é apenas uma fuga. E uma vez que a maioria das pessoas estão a tentar fugir, fizeram delas próprias máquinas de hábitos para evitar conflitos. Elas criam crenças religiosas, ideias; elas adoram a imagem de uma imitação a que chamam de “Deus”; elas tentam esquecer a sua incapacidade para enfrentar lutas absorvendo-se no trabalho. Todas essas são maneiras de fugir.

Portanto, para salvaguardar a segurança, vocês criam a autoridade. Não é assim? Para receber conforto, vocês têm que ter alguém ou algum sistema que lhes dê conforto. Para ter segurança, tem que haver uma pessoa, uma ideia, uma crença, uma tradição, que lhes dê a garantia de segurança. Portanto, na nossa tentativa de encontrar segurança, estabelecemos uma autoridade e tornamo-nos escravos dessa autoridade. Na nossa procura por segurança estabelecemos ideais religiosos que nós, no nosso medo, criamos; procuramos segurança através de sacerdotes ou guias espirituais a quem chamamos de “professores” ou “mestres”. Ou, novamente, buscamos nossa autoridade no poder da tradição – social, econômica ou política.

Nós próprios, individualmente, estabelecemos essas autoridades. Elas não apareceram espontaneamente. Temos vindo a estabelecê-las através dos séculos, e as nossas mentes tornaram-se estropiadas, corrompidas pela sua influência.

Ou suponha que descartamos autoridades externas; desenvolvemos, então, uma autoridade interna a que chamamos de “autoridade espiritual intuitiva” – mas que, para mim, difere pouco da autoridade externa. Ou seja, quando a mente está presa à autoridade – seja externa ou interna – ela não pode ser livre e, por isso, não pode conhecer o verdadeiro discernimento. Por isso, onde existe autoridade nascida da procura por segurança, nessa autoridade residem as raízes do egoísmo.

Afinal, o que fizemos? Devido à nossa fraqueza, ao nosso desejo de poder, à nossa procura por segurança, estabelecemos autoridades espirituais. E nesta segurança, a que chamamos de “imortalidade”, queremos residir eternamente. Se olharem para esse desejo com calma e discernimento, verão que nada mais é que uma forma refinada de egoísmo. Onde existe uma divisão de pensamento, onde existe a ideia de “eu”, a ideia de “meu” e “seu”, não pode haver completude na ação, e por esse motivo não pode haver compreensão da realidade viva.

Mas – e espero que compreendam isto – essa realidade viva, essa totalidade, expressa-se a si mesma na ação da individualidade. Já expliquei o que entendo por individualidade: o estado no qual a ação tem lugar através da compreensão livre de todos os padrões – sociais, econômicos ou espirituais. É a isso que eu chamo de “verdadeira individualidade”, porque é ação nascida da completude do entendimento, ao passo que o egoísmo tem as suas raízes na segurança, na tradição, na crença. Por isso, a ação induzida pelo egoísmo é sempre incompleta, está sempre ligada à luta incessante com sofrimento e dor.

Esses são alguns dos entraves e obstáculos que impedem o homem de ter consciência dessa realidade suprema. Essa realidade viva só pode ser compreendida quando você estiver livre desses obstáculos. A liberdade da completude não está na fuga da escravidão, mas na compreensão da ação, que é a harmonia de mente e coração. Deixem-me explicar isso de forma mais clara. A maioria das pessoas pensantes tem intelectualmente consciência de muitos obstáculos. Por exemplo, se considerarem seguranças tais como riqueza, que vocês acumulam como proteção, ou ideias espirituais nas quais tentam abrigar-se, verão a sua total inutilidade.

Agora, se examinarem essas seguranças, poderão ver intelectualmente sua falsidade; mas para mim, essa consciência intelectual do obstáculo não é, de modo algum, consciência total. É apenas uma concepção intelectual, não uma consciência plena. A consciência plena existe apenas quando estão conscientes, tanto emocional como mentalmente, desses obstáculos. Se estiverem a pensar nesses obstáculos agora, provavelmente estão a considerá-los apenas intelectualmente e dizem: “Diga-me uma forma pela qual eu possa me livrar desses obstáculos”. Isto é, estão apenas a tentar vencer obstáculos e, desse modo, estão a criar outro conjunto de resistências. Espero ter esclarecido esse assunto. Posso dizer-lhes que a segurança é fútil, que não tem significado, e intelectualmente vocês podem admitir isso; mas como se habituaram a lutar pela segurança, quando saírem daqui continuarão simplesmente a lutar, mas agora, contra a segurança; desse modo, vocês apenas procuram um novo caminho, um novo método, uma nova técnica, que é somente um desejo renovado de segurança sob outra forma.

Para mim, não existe tal coisa como uma técnica para viver, uma técnica para a realização da verdade. Se existisse tal técnica para vocês a aprenderem, estariam apenas a serem escravizados por outro sistema.

A realização da verdade vem somente quando existe completude de ação sem esforço. E a cessação do esforço vem através da consciência dos obstáculos – não quando vocês tentam vencê-los. Isto é, quando estão totalmente conscientes, completamente conscientes de mente e coração, quando estão conscientes com todo o seu ser, então através dessa consciência ficarão livres de obstáculos. Experimentem e verão. Tudo o que vocês conquistaram os escravizaram. Só quando tiverem compreendido um obstáculo com todo o seu ser, somente quando realmente tiverem compreendido a ilusão da segurança, é que não lutarão mais contra isso. Mas, se estiverem apenas intelectualmente conscientes dos obstáculos, então continuarão a lutar contra eles.

A sua concepção de vida está baseada nesse princípio, o seu esforço por conquista espiritual, pelo crescimento espiritual, é o resultado do seu desejo por mais segurança, por mais enaltecimento, por mais glória e, por isso, essa contínua e infindável luta. Por isso digo, não procurem um caminho, um método.  Não existe método, não existe caminho para a verdade. Não procurem um caminho, mas tomem consciência dos obstáculos. A consciência não é apenas intelectual; é tanto mental como emocional; é a completude de ação. Então, nessa chama de consciência, todos esses obstáculos caem por terra, porque vocês penetraram neles. Poderão então perceber diretamente, sem escolha, o que é verdadeiro. A sua ação nascerá, portanto, da completude, não da incompletude da segurança; e nessa completude, nessa harmonia de mente e coração está a realização do eterno.

02/07/1933