9ª Palestra em Ojai

O desejo de estar seguro com coisas e relacionamentos só gera conflito e sofrimento, dependência e medo; a busca de felicidade na relação sem compreender a causa do conflito leva à infelicidade. Quando o pensamento coloca ênfase nos valores sensoriais e é dominado por isso, só pode haver luta e dor. Sem autoconhecimento, a relação se torna fonte de disputa e antagonismo, um artifício para encobrir a deficiência interior, a pobreza interior.

O anseio por segurança sob qualquer forma não indica deficiência interior? Essa pobreza interna não nos faz buscar, aceitar e nos prendermos a formulações, esperanças, dogmas, crenças, posses? Nossa ação não é então simplesmente imitativa e compulsiva? E ancorado em ideologia, crença, nosso pensar se torna simples processo de encadeamento.

Nosso pensamento está condicionado pelo passado; o “eu’, e o ‘meu’ é resultado da experiência acumulada, sempre incompleta. A memória do passado está sempre absorvendo o presente; o ego, que é memória de prazer e dor, está sempre acumulando e descartando, sempre forjando novamente as correntes de seu próprio condicionamento. Fica construindo e destruindo, mas sempre dentro da prisão criada por ele mesmo. Ele se prende às memórias agradáveis e descarta as desagradáveis. O pensamento deve transcender seu condicionamento para o surgimento do real.

Avaliar é pensar correto? Escolha é pensamento condicionado; o pensar correto vem pela compreensão de quem escolhe, do censor. Enquanto o pensamento estiver ancorado em crença, ideologia, ele só pode funcionar dentro de sua própria limitação; ele só pode atuar dentro dos limites do ego e de sua escravidão. O pensamento condicionado impede o pensar correto que é não-avaliação, não-identificação.

Deve haver alertada vigilância de si, sem escolha: escolha é avaliação e a avaliação reforça a memória auto-identificada. Se desejarmos compreender profundamente, deve haver conscientização passiva e sem escolha, o que permite que a experiência se desdobre e revele sua própria significação. A mente que busca segurança através do real só cria ilusão. O real não é um refúgio; ele não é a recompensa pela ação correta; não é um fim a ser alcançado.

Interrogante: Não deveríamos duvidar de sua experiência e daquilo que você fala? Embora certas religiões condenem a dúvida como um entrave, ela não é, como você já expressou, um bálsamo precioso, uma necessidade?

Krishnamurti: Não é importante descobrir porque a dúvida surge de fato? Qual a causa da dúvida? Ela não surge quando seguimos o outro? Então o problema não é a dúvida, mas a causa da aceitação. Por que aceitamos, por que seguimos?

Seguimos a autoridade do outro, a experiência do outro e, aí, duvidamos dela; essa procura pela autoridade e sua consequente desilusão, é um processo doloroso para a maioria de nós. Nós censuramos ou criticamos a autoridade que, uma vez, aceitamos – o líder, o mestre – mas não examinamos nosso próprio anseio por uma autoridade que possa orientar nossa conduta. Uma vez que compreendamos esse anseio, poderemos compreender o significado da dúvida.

Não existe em nós uma tendência profundamente enraizada de buscar orientação, aceitar a autoridade? De onde vem este impulso? Ele não surge de nossa própria incerteza, de nossa própria incapacidade de saber o que é verdadeiro o tempo todo? Queremos que outra pessoa nos desenhe o mar do autoconhecimento; desejamos estar seguros, desejamos encontrar um refúgio a salvo e, assim, seguimos qualquer um que nos dirija. Incerteza e medo procuram orientação e obrigam à autoridade e à adoração da autoridade.; tradição, educação criam para nós muitos padrões de obediência. Se algumas vezes não aceitamos e obedecemos a símbolos de autoridade exterior, criamos nossa própria autoridade interna, a voz sutil de nosso ego. Mas pela obediência não se pode conhecer a liberdade; a liberdade chega com a compreensão, não pela aceitação da autoridade nem pela imitação.

O desejo de auto-expansão cria obediência e aceitação o que leva à dúvida. Nós nos adaptamos e obedecemos porque ansiamos por expansão própria e, assim, nos tornamos negligentes. Aceitação leva à negligência e à dúvida. A experiência, especialmente aquela dita religiosa, nos dá grande contentamento, e a usamos como orientação, referência; mas quando essa experiência cessa de nos sustentar e inspirar, começamos a duvidar dela. A dúvida só surge quando aceitamos. Mas não é tolice, negligência, aceitar uma experiência de outra pessoa? É você que deve refletir, sentir e estar vulnerável ao real, mas você não pode estar aberto se você se encobre sob o manto da autoridade, seja a de outra pessoa ou a sua própria criação. É muito mais essencial compreender o anseio por autoridade, orientação, do que louvar ou afastar a dúvida. Compreendendo o anseio por orientação, a dúvida cessa. A dúvida não tem espaço no ser criativo.

Aquele que se prende ao passado, à memória, está sempre em conflito. A dúvida não põe fim ao conflito; só quando o anseio é compreendido pode haver a alegria do real. Tome cuidado com o homem que diz que sabe.

Interrogante: Eu quero compreender a mim mesmo, quero dar fim a minhas estúpidas lutas e fazer um esforço definitivo para viver integralmente e verdadeiramente.

Krishnamurti: O que você quer dizer quando usa a expressão a mim mesmo? Como você é muitos e sempre muda, existe um momento duradouro quando você pode dizer que este é meu ‘eu’ de sempre? É a entidade múltipla, o fardo de memórias que deve ser compreendido e não a entidade única que, convenientemente, chama a si mesma de “eu’.

Somos pensamentos-sentimentos sempre mudando, contraditórios: amor e ódio, paz e paixão, inteligência e ignorância. Agora, quem é o ‘eu’ nisso tudo? Devo escolher o que é mais agradável e descartar o resto? Quem deve compreender esses egos contraditórios e conflitantes? Existe um ego permanente, uma entidade espiritual separada desses? Esse ego não é também o resultado continuado do conflito das muitas entidades? Existe um ego que está acima e além de todos os egos contraditórios? A verdade dele só pode ser experimentada quando os egos contraditórios forem compreendidos e transcendidos.

Todas as entidades conflitantes que fizeram o ‘eu’, também criaram o outro ‘eu’, o observador, o analista. Para compreender a mim mesmo devo compreender as muitas partes de mim, incluindo o ‘eu’ que se tornou aquele que olha, o ‘eu’ que compreende. O pensador deve compreender não apenas seus muitos pensamentos contraditórios, mas deve compreender a si mesmo como o criador dessas muitas entidades. O ‘eu’, o pensador, o observador olha seus pensamentos-sentimentos opostos e conflitantes como se ele não fosse parte deles, como se ele estivesse acima e além deles, controlando, dirigindo, moldando. Mas ele não é o ‘eu’, o pensador, esses conflitos? Ele não os criou? Não importa o nível, o pensador está separado de seus pensamentos? O pensador é o criador dos impulsos opostos, assumindo diferentes papéis em ocasiões diferentes dependendo de seu prazer e dor. Para se compreender, o pensador deve chegar através de seus muitos aspectos. Uma árvore não é apenas a flor e a fruta, mas é o processo total. Do mesmo modo, para compreender a mim mesmo devo, sem identificação e escolha, estar consciente do processo total que é o ‘eu’.

Como pode haver compreensão quando uma parte é usada como meio de compreender a outra? É possível uma contradição compreender outra? Só existe compreensão quando a contradição como um todo cessa, quando o pensamento não está se identificando com a parte.

Então é importante compreender o desejo de condenar ou aprovar, justificar ou comparar, pois é esse desejo que impede a completa compreensão do ser inteiro. Quem é o juiz, quem é a entidade que fica comparando, analisando? Ele não é apenas um aspecto do processo total, um aspecto do ego que está sempre mantendo o conflito? O conflito não é dissolvido com a introdução de outra entidade que pode representar condenação, justificação, ou amor. Só na liberdade pode haver compreensão, mas a liberdade é negada quando o observador, pela identificação, condena ou justifica. Só na compreensão do processo como um todo pode o pensar correto abrir a porta para o eterno.

Interrogante: Como você é muito contra a autoridade, existem sinais inequívocos pelos quais se pode reconhecer objetivamente a libertação de outra pessoa sem a afirmação pessoal do indivíduo em relação àquilo que atingiu?

Krishnamurti: Novamente é o problema da aceitação colocado de outro modo, não? Suponha que alguém afirme que é liberto, qual é a grande significação disso para outra pessoa? Suponha que você está livre do sofrimento, qual a importância disso para o outro? Isso só tem significação se a pessoa busca se libertar da ignorância, pois é a ignorância que causa sofrimento. Então o ponto principal não é quem atingiu, mas como libertar o pensamento de seu sofrimento que se auto-encadeia. A maioria de nós não está interessada com esta questão essencial, mas sim com sinais exteriores pelos quais podemos reconhecer aquele que se libertou a fim de que ele possa curar nossos sofrimentos. Desejamos ganhar mais do que compreender; nosso anseio por orientação, por conforto, nos faz aceitar a autoridade e, assim, estamos sempre buscando o especialista. Você é a causa de seu sofrimento e só você pode compreendê-lo e transcendê-lo, ninguém pode lhe dar o livramento da ignorância exceto você mesmo.

Não é importante quem conseguiu, mas é importante estar consciente de sua atitude e como você ouve o que está sendo dito. Nós ouvimos com esperança e medo; procuramos a luz do outro, mas não ficamos vivamente passivos para sermos capazes de compreender. Se o liberado parece preencher nossos desejos, nós o aceitamos; se não, continuamos nossa busca por um que o faça; o que a maioria de nós deseja é gratificação em diferentes níveis. Importante não é como reconhecer o liberado, mas como compreender a si mesmo. Nenhuma autoridade, aqui ou no futuro, pode lhe dar o conhecimento de si mesmo, sem autoconhecimento não há libertação da ignorância, do sofrimento.

Você é o criador da miséria como é o criador da ignorância e da autoridade; você produz o líder e o segue; seu anseio molda o padrão de sua vida religiosa e mundana, então é essencial compreender a si mesmo e, assim, transformar o modo de sua vida. Tenha consciência de por que você segue outra pessoa, por que você busca autoridade, por que você anseia por orientação de conduta; tenha consciência dos caminhos do anseio. A mente-coração se tornou insensível pelo medo e a gratificação da autoridade, mas com profunda conscientização do pensamento-sentimento vem a aceleração da vida. Com a conscientização sem escolha o processo total de seu ser é compreendido; com a conscientização passiva vem a iluminação.

Interrogante: Embora você tenha respondido muitas perguntas sobre meditação, acho que não falou nada sobre meditação em grupo. Deve-se meditar com outras pessoas ou só?

Krishnamurti: O que é meditação? Não é a compreensão dos caminhos do ego, não é autoconhecimento? Sem autoconhecimento, sem consciência do processo total, aquilo que você construiu como caráter, aquilo por que você luta, não tem realidade. O autoconhecimento é o princípio da verdadeira meditação. Ora, você compreenderá a si mesmo estando só ou com muitas pessoas? Os muitos podem ser obstáculo para a meditação bem como estar só. O próprio peso da ignorância das muitas pessoas que não compreendem a elas mesmas pode dominar aquele que está tentando compreender a si mesmo pela meditação. O grupo pode estimular a pessoa, mas estimulação é meditação? A dependência do grupo cria conformismo; a adoração ou oração congregacional é suscetível à sugestão, à influência, ao descuido. Meditar em isolamento também pode criar obstáculos e reforçar preconceitos e conformidades da pessoa. Se não houver flexibilidade, conscientização vigorosa, simplesmente viver só reforça tendências e idiossincrasias, fortalece hábitos, e aprofunda as rotinas de pensamento-sentimento. Sem compreender o significado da meditação, meditar só pode se tornar um processo de fechamento em si mesmo, de estreitamento da mente-coração na auto-ilusão, e de fortalecimento da obstinação e da credulidade.

Assim, se você meditar com um grupo ou por você mesmo terá pouca significação se a significação da meditação não for corretamente compreendida: meditação não é um processo de autotransformação; começando com o autoconhecimento, ela traz tranquilidade e suprema sabedoria, abre a porta do eterno. O propósito da meditação é estar consciente do processo total do ego. O ego é resultado do passado e não existe no isolamento; ele é construído. As muitas causas que o fizeram surgir devem ser compreendidas e transcendidas; só com profunda conscientização e meditação pode haver a libertação do anseio, do ego. Só então há verdadeira solidão. Mas quando você medita por si mesmo, não está sozinho, pois você é o resultado de inumeráveis influências, ou forças conflitantes. Você é um resultado, um produto, e aquilo que é construído, selecionado, reunido, não pode compreender aquilo que não é. Quando o pensador e seu pensamento são um só, tendo ido acima e além de toda formulação, há aquela tranquilidade em que está o real. Meditar é penetrar nos muitos níveis condicionados e educados da consciência.

Já que estamos fechados em nós mesmos, em dor e conflito, é essencial estarmos intensamente conscientes, pois através do autoconhecimento, o pensamento-sentimento se liberta dos impedimentos por ele criados de má vontade e ignorância, mundanismo e anseio. É essa compreensão meditativa que é criativa; essa compreensão traz não retraimento, não exclusão, mas solidão espontânea.

Quanto mais estivermos meditativamente conscientes durante as chamadas horas de vigília, menos haverá sonhos, e menor será o medo angustiante da interpretação deles; porque se houver consciência de si durante as horas de vigília, os diversos níveis da consciência vão sendo descobertos e compreendidos e, durante o sono, há a continuação da conscientização. A meditação não é só para um período determinado, mas é para continuar durante as horas de vigília e horas de sono também, porque através da correta conscientização meditativa durante a vigília, o pensamento pode penetrar profundidades de grande significação. Mesmo durante o sono a meditação continua.

Meditação não é uma prática; não é o cultivo de um hábito; meditação é elevada conscientização. A simples prática entorpece a mente-coração, pois o hábito denota descuido e causa insensibilidade. A meditação correta é um processo de liberação, uma criativa descoberta de si mesmo que liberta o pensamento-sentimento da escravidão. Só na liberdade está o real.

Interrogante: Discutindo o problema da doença, você introduziu o conceito de tensão psicológica. Se lembro corretamente, você afirmou que o não-uso ou abuso da tensão psicológica é a causa da doença. A psicologia moderna, por outro lado, majoritariamente enfatiza o relaxamento, o alívio da tensão nervosa e assim por diante. O que você acha?

Krishnamurti: Não devemos ser vigorosos se quisermos compreender? Enquanto ouve esta palestra não existe atenção, uma tensão? Toda conscientização não é uma intensidade de tensão correta? A conscientização é necessária para a compreensão; é necessária uma atenção vigorosa se quisermos captar a completa significação de um problema. O relaxamento é necessário, algumas vezes benéfico; mas conscientização, tensão correta, não é necessária para a compreensão profunda? As cordas de um violino não devem ser afinadas, esticadas para produzir o tom correto? Se elas forem muito esticadas, elas rompem, e se não forem esticadas ou afinadas exatamente, elas não dão o tom correto. Do mesmo modo, nós sucumbimos quando nossos nervos são muito forçados; a tensão insuportável causa várias formas de desordens mentais e físicas.

Mas a conscientização, a ampliação e o estiramento da mente-coração não são necessários para a compreensão? A compreensão é o resultado de relaxamento, desatenção, ou ela vem com a conscientização em que não há tensão causada pelo desejo de abarcar, alcançar? A quietude vigilante não é necessária para a compreensão profunda?

A tensão pode ou reparar ou arruinar. Não existe tensão em todas as relações? Essa tensão se torna nociva quando a relação se torna uma fuga da própria deficiência da pessoa, um abrigo autoprotetor da dolorosa descoberta de si mesmo. A tensão se torna nociva quando a relação vicia e não é mais um processo de auto-revelação. A maioria de nós usa a relação para se gratificar, se enaltecer, mas quando isso falha, uma tensão nociva é criada que leva à frustração, ao ciúme, desilusão e conflito. Enquanto o anseio do ego continuar, haverá a tensão psicológica nociva da deficiência interior que causa variadas desilusões e miséria. Mas para compreender o vazio, a dolorosa solidão, deve haver conscientização correta, tensão correta. A tensão da ganância, do medo, da ambição, do ódio, é destrutiva, produtora de doenças físicas e psicológicas, e para transcender essa tensão deve haver conscientização sem escolha.

O desejo, que se expressa de muitas maneiras no mundo material e assim chamado espiritual, é a causa do conflito em todas as diferentes camadas de consciência. A tensão de se tornar é conflito e dor sem fim. Ao estar ciente do desejo e assim compreendê-lo, o pensamento se liberta da ignorância e do sofrimento.

22 de julho de 1945.