Décima Palestra em Oak Grove

Eu venho afirmando que dar ênfase ao imediato não resolve o muito complexo problema humano. Quero dizer com imediato, a urgente consideração dos sentidos e de sua gratificação. Ou seja, dar ênfase aos valores econômicos e sociais em vez de aos básicos e eternos leva a ações distorcidas e terríveis. O imediato se torna o futuro quando valores sensoriais e suas gratificações são prometidos com o sacrifício do presente; quando o presente é sacrificado na esperança de felicidade futura ou de bem estar econômico futuro, aí está o início da negligência cruel e do desastre. Tal ênfase leva, inevitavelmente, a mais caos, pois dando importância àquilo que é secundário, esquecemos o todo, o real e, assim, geramos confusão e miséria. Cada pessoa deve se tornar consciente, deve refletir e sentir por si mesma o que está implicado em dar importância principal à gratificação de desejos sensoriais. Ceder aos valores dos sentidos é, no final das contas, provocar guerra, catástrofes econômicas e sociais. Buscar enriquecimento em coisas, feitas pela mão ou pela mente, é criar pobreza interior que traz incontáveis misérias. A acumulação e sua importância impedem o pensamento-sentimento da percepção do real, que poderá trazer ordem, clareza e felicidade. Se a pessoa, primeiro, busca cultivar o interior, o real, então o secundário, a ordem social e econômica, acontecerá inteligentemente; de outro modo haverá constantes revoltas econômicas e sociais, guerras e confusão. Buscando o eterno seremos capazes de gerar ordem e clareza. A parte nunca é o todo, e o cultivo da parte traz incessante confusão, conflito e antagonismo.

Para compreender o todo devemos compreender a nós mesmos primeiro. A raiz da compreensão está na própria pessoa, e sem a compreensão de si, não há compreensão do mundo; pois o mundo é você mesmo. O outro – o amigo, a relação, o inimigo, o vizinho, próximo ou distante – é você mesmo. O autoconhecimento é o começo do pensar correto, e no processo do autoconhecimento, o infinito é descoberto.

O livro do autoconhecimento não tem início nem fim. É um constante processo de descoberta, e o que é descoberto é verdadeiro, e a verdade é libertadora, criativa. Se neste processo de autoconhecimento buscarmos um resultado, tal resultado será comprometido, fechado e impeditivo, e assim, o imensurável, o infinito, não é descoberto. Buscar um resultado é procurar valor, ou seja, cultivar o anseio e produzir ignorância, conflito e sofrimento. Se buscarmos compreender, ler este livro complexo, rico, então descobriremos suas infinitas riquezas. Ler esse livro de autoconhecimento é se tornar consciente. Através da consciência de si cada pensamento-sentimento é examinado sem julgamento e pode, assim, florescer, o que traz compreensão; porque acompanhando cada pensamento-sentimento totalmente, nós descobriremos que nele todo o pensar está contido. Podemos pensar-sentir completamente apenas quando não estamos em busca de um resultado, de um fim.

Nesse processo de autoconhecimento, o pensar correto aparece; e o pensar correto liberta a mente do anseio. A liberdade do anseio é virtude. A mente deve se libertar do anseio, causa de ignorância e sofrimento. Para a mente ser virtuosa, estar livre do anseio, é essencial completa franqueza, honestidade, que vem com a humildade. E tal integridade não é virtude, não um fim em si mesma, mas é um subproduto do pensamento se libertando do processo do anseio, que se expressa, principalmente, na sensualidade, na prosperidade ou mundanismo, na imortalidade pessoal ou fama. O pensamento, se libertando do anseio, compreenderá a natureza do medo, e transcendendo-o, haverá amor que é em si eterno. A vida simples não consiste, meramente, no contentamento com poucas coisas, mas antes na liberdade da aquisição, da dependência, e da distração – interna e externa. Por meio de constante conscientização, a ligação ao tempo, o processo de identificação da memória que constrói o ego, é dissolvido. Só então a realidade derradeira pode surgir.

Compreender a si mesmo, essa entidade complexa, é o mais difícil. Uma mente sobrecarregada de valor e preconceito, julgamento e comparação, não pode compreender a si mesma. O autoconhecimento vem com a conscientização sem escolha, e quando o anseio não distorce mais o pensamento-sentimento, então, nesta integridade, quando a mente está totalmente imóvel, criativamente vazia, aí o mais elevado está.

Interrogante: Eu tive um filho que foi morto nesta guerra. Ele não queria morrer. Ele queria viver e impedir que esse horror se repetisse. Foi minha falha ele ter sido morto?

Krishnamurti: É falha de todos nós que este atual horror esteja acontecendo. Ele é o resultado exterior de nossa vida interior cotidiana de ganância, má vontade e luxúria, de competição, ambição e religião especializada. É falha de todos que, cedendo a essas coisas, criamos esta terrível calamidade. Porque somos nacionalistas, singularistas, passionais, cada um de nós está contribuindo para este assassinato em massa. Você foi ensinado a matar e a morrer, mas não a viver. Se você abominasse sinceramente matança e violência sob qualquer forma, então encontraria modos e meios para viver pacificamente e criativamente. Se esse fosse seu principal e básico interesse, então você procuraria cada causa, cada instinto que gera violência, ódio, assassinato em massa. Você está sinceramente interessado em cessar a guerra? Se estiver, então deve erradicar em você mesmo as causas da violência e de matar por qualquer que seja a razão. Se você quer cessar as guerras, então tem que acontecer uma profunda revolução interior de tolerância e compaixão; então o pensamento-sentimento deve se libertar do patriotismo, de sua identificação com qualquer grupo, da ganância e daquelas causas que geram animosidade.

Uma mãe me disse que abrir mão dessas coisas seria não só extremamente difícil, mas também significaria grande solidão e completo isolamento, o que ela não poderia enfrentar. Então não era ela responsável por essa incalculável miséria? Você pode concordar com ela e, com sua preguiça, negligência, adicionar combustível às sempre crescentes chamas da guerra. Se, ao contrário, você tentasse seriamente erradicar as causas da animosidade e da violência em você mesmo, haveria paz e alegria em seu coração e isso teria efeito imediato em você.

Devemos nos reeducar para não matar; não liquidarmos uns aos outros por causa alguma – conquanto justa ela possa parecer para a felicidade futura da humanidade – por uma ideologia, mesmo promissora: não simplesmente sermos educados tecnologicamente, o que gera inevitavelmente desumanidade, mas ficarmos contentes com pouco, sermos compassivos e buscarmos o supremo.

A prevenção desta crescente destruição e horror depende de cada um de nós, não de alguma organização ou planejamento, não de alguma ideologia, nem da invenção de maiores instrumentos de destruição, nem da algum líder, mas de cada um de nós. Não pense que as guerras não podem ser interrompidas com um início tão humilde e pequeno – uma pedra pode alterar o curso de um rio. Para ir longe você tem que começar perto. Para compreender o caos e miséria do mundo, você deve compreender sua própria confusão e sofrimento, pois a partir daí surgem as questões ampliadas do mundo. Para compreender a si mesmo deve haver constante conscientização meditativa que trará para a superfície as causas da violência e do ódio, da ganância e da ambição, e estudando-as sem identificação, o pensamento irá transcendê-las. Pois ninguém pode guiá-lo para a paz exceto você mesmo; não há líder, nem sistema que possa dar fim à guerra, à exploração, à opressão exceto você mesmo. Apenas por seu cuidado, por sua compaixão, por sua vigilante compreensão, pode ser estabelecida a boa vontade e a paz.

Interrogante: Embora você tenha explicado na semana passada como se livrar do ódio, se importaria de investigar novamente já que sinto que o que você disse é de grande importância?

Krishnamurti: O ódio é o resultado de uma mente mesquinha, de uma mente pequena. Uma mente estreita é intolerante. Uma mente que está escravizada é capaz de ressentimento. Agora, uma mente pequena dizendo a si mesma que não deve odiar continua sendo pequena. Uma mente ignorante é causa de animosidade e de conflito.

Então o problema não é como se livrar do ódio, mas antes como destruir a ignorância, o ego, que causa a limitação do pensamento-sentimento. Se você simplesmente suprime o ódio sem compreender os caminhos da ignorância, então essa ignorância produzirá outras formas de antagonismo, e o pensamento-sentimento será violento e sempre em conflito. Então como você liberta a mente da ignorância, da estupidez? Por meio de constante conscientização – se tornando consciente de que seu pensamento-sentimento é pequeno, mesquinho e estreito e não tendo vergonha dele, compreendendo as causas que o fizeram pequeno, fechado em si mesmo. Compreendendo as causas profundas e extensas, a inteligência, a generosidade desinteressada e a bondade surgem, e o ódio cede à compaixão. Por meio de constante conscientização, a causa da ignorância, o processo do ego com seu fardo de “eu” e de “meu” – minha conquista, meu país, minhas posses, meu deus – vai sendo descoberto, compreendido e dissolvido. Para compreender não deve haver julgamento ou comparação, nem aceitação ou negação, pois toda identificação impede aquela conscientização passiva onde se faz a descoberta do que é verdadeiro. E é essa descoberta que é criativa e libertadora. Se a mente estiver consciente negativamente, passivamente, então, estando aberta, ela é capaz de descobrir a escravidão, a influência ou ideia limitadora, e, assim, se libertar delas.

Portanto nenhum problema pode ser resolvido em seu próprio nível; ele é para ser resolvido num nível diferente de abstração. Pensar é um processo de expansão, de investigação inclusiva, não uma negação ou afirmação concentrada. Tentando compreender o ódio e suas causas, tentando libertar o pensamento-sentimento de obstáculos, de ilusões, a mente se torna mais profunda e mais extensa. No maior o menor deixa de existir.

Interrogante: Existe alguma coisa depois da morte ou ela é o fim? Alguns dizem que existe uma continuação, outros, aniquilação. O que você diz?

Krishnamurti: Muitas coisas estão envolvidas nessa pergunta; e como ela é complexa, teremos que investigá-la, se quiserem, profundamente e abertamente. Em primeiro lugar, o que nós queremos dizer com individualidade? Porque não estamos considerando a morte abstratamente, mas a morte de um indivíduo, do particular. O ego individual, com nome e forma, continuará, ou ele deixará de existir? Ele vai nascer novamente? Antes de podermos responder a essa pergunta, devemos descobrir o que forma a individualidade. Uma pergunta errada não tem resposta correta; só a pergunta correta pode ter uma resposta. E todas as perguntas relacionadas aos profundos problemas da vida não têm resposta categórica, pois cada pessoa deve descobrir o que é verdade por si mesmo. Só a verdade confere liberdade.

A individualidade, embora possa ter nome e forma diferentes, não é o resultado de uma série de respostas acumuladas e memórias do passado, de ontem? Cada um de nós é o resultado do passado e o passado contém o você e os muitos, o você e o outro. Você é o resultado de seu pai e sua mãe, de todos os pais e mães; você é o pai, o produtor do passado, o pai do futuro. Assim, pela memória identificada, o ego é criado, o “eu” e o “meu”; e o ego se torna a ligação ao tempo. Daí surge a pergunta se o ego continua ou é aniquilado depois da morte. Só quando o ego, o que se torna e o que não-se torna, o criador do passado, o presente, e o futuro, o que se liga ao tempo, é transcendido, só aí está aquilo que é imortal, infinito.

Aí também existe a questão de causa e efeito. Causa e efeito estão separados ou o efeito está na causa? Eles fluem juntos, existem juntos e são um fenômeno articulado, que não se separa. Embora o efeito possa levar “tempo” para surgir, a semente do efeito está na causa, ele coexiste com a causa. Não é mais causa e efeito, mas um problema muito mais sutil e delicado para ser ponderado, para ser experimentado. Causa-efeito se torna o meio de restringir, condicionar a consciência, e essas restrições produzem conflito e sofrimento. Essas restrições, sutis e internas, devem ser descobertas e compreendidas, o que, ao final, libertará o pensamento da ignorância e da dor.

Nessa questão de nascimento e morte, de continuidade e aniquilação, não está implicado progresso, gradualismo? Alguns de nós não pensamos que gradualmente, por meio de repetidos nascimento e morte, através do tempo, o ego, se tornando mais e mais perfeito, vai, finalmente, realizar a felicidade suprema? O ego é uma entidade permanente, uma essência espiritual? O ego não é construído, reunido e, por isso, não permanente? O ego não é um resultado e por isso, em si, não é uma essência espiritual? O ego não tem uma continuidade por meio da memória identificada, sujeito ao tempo e, portanto não permanente e transitório? Aquilo que é em si mesmo não permanente, construído, um resultado – como isso pode alcançar aquilo que não tem causa, o eterno? Aquilo que é causa de ignorância e sofrimento – como pode atingir a suprema felicidade? Aquilo que é produto do tempo – como pode conhecer o infinito?

Percebendo a não permanência do ego, existem aqueles que dizem que o permanente é para ser encontrado ao se descartar as muitas camadas do ego, o que requer tempo, e por isso reencarnar é necessário. O ego, o resultado do anseio, a causa de ignorância e sofrimento, continua, como observamos; mas para compreendê-lo e transcendê-lo, não devemos pensar em termos de tempo. Por meio do tempo o infinito não é percebido. Esta abordagem da realidade por meio de gradualismo, de lento processo evolutivo, de nascimento e morte, não está errada? Ela não é a racionalização do pensamento condicionado, de adiamento, de preguiça e ignorância? Esta ideia de gradualismo existe – não? – porque nós não pensamos-sentimos diretamente e simplesmente. Nós escolhemos uma explicação satisfatória, uma racionalização de nosso esforço confuso e indolente. Por meio do pensamento condicionado, do adiamento, pode o real ser descoberto? O ego, a causa de ignorância e sofrimento – ele pode, gradualmente, ao longo do tempo, se tornar perfeito? Ou ele pode se dissolver ao longo do tempo? Aquilo que é em sua própria natureza a causa da ignorância – pode se tornar iluminado? Ele não tem que cessar de existir antes que possa haver luz?  É a cessação uma questão de tempo, um processo horizontal, ou a iluminação só é possível quando pensamento-sentimento abandona esse processo horizontal de tempo e, assim, pode pensar-sentir verticalmente, diretamente? Neste caminho horizontal de tempo, de adiamento, de ignorância, a verdade não está; ela é para ser encontrada verticalmente em qualquer ponto ao longo do processo horizontal se o pensamento-sentimento puder sair dele, libertando-se do anseio e do tempo. Essa liberdade não depende do tempo, mas da intensidade da conscientização e da integridade do autoconhecimento.

Deve o pensamento passar pelos estágios da família, do grupo, da nação, do internacional para a percepção da unidade humana? Não é possível pensar-sentir a unidade humana diretamente, sem passar por esses estágios? Nós somos impedidos – não somos? – por nosso condicionamento. Se racionalizarmos nosso condicionamento e o aceitarmos, então nunca perceberemos a unidade humana e, assim, haverá infindáveis guerras e terríveis desastres. Racionalizamos nosso condicionamento porque é mais fácil aceitar o que existe, ser preguiçoso, ser negligente, do que examiná-lo vigorosamente, descobrir o que é verdadeiro. Temos medo de examinar, pois isso pode revelar medos ocultos, trazer maiores conflitos e sofrimento, nos forçar a ir em busca de ações que podem trazer incerteza, insegurança, isolamento e assim por diante. Então aceitamos nosso condicionamento, inventando uma teoria de crescimento gradual em direção à unidade humana final, e forçamos pensamento-sentimento-ação a se adaptar à nossa gratificante teoria.

Do mesmo modo, não aceitamos gratamente essa teoria do gradualismo, do crescimento evolutivo em direção à perfeição? Não a aceitamos porque ela acalma nosso aflitivo medo da morte, da insegurança, do desconhecido? Ao aceitar isso, o condicionamento acontece, e nos tornamos escravos de ideias erradas, de falsas esperanças. Temos que romper esses condicionamentos não no tempo, não no futuro, mas no presente. No presente está o eterno.

Só o pensar correto pode libertar nosso pensamento-sentimento da ignorância e do sofrimento; o pensar correto não é resultado do tempo, mas de se tornar intensamente consciente no presente de todo condicionamento que impede a clareza e a compreensão.

A percepção daquilo que é imortal, infindo, não está ao longo do caminho da continuidade do ego, nem em seu oposto. Por meio da autoconscientização e na clareza do autoconhecimento, acontece o pensar correto. A capacidade de perceber a verdade está em nós. Cultivando o pensar correto que chega com o autoconhecimento, pensamento-sentimento de desdobra no real, no infinito.

Poderão me dizer que eu não respondi à pergunta, que fugi dela, fiquei rodeando-a. O que você quer que eu diga – que existe ou não existe? Não é mais importante saber como descobrir por si mesmo o que é verdadeiro do que lhe dizerem? Uma coisa será simplesmente verbal e de pouca significação enquanto a outra trará verdadeira experiência e, por isso, é de grande importância. Mas se eu meramente afirmo que existe continuidade ou que não existe, tal afirmação só reforçará a crença, e essa é exatamente a coisa que fica no caminho do real. O necessário é ir além de nossas estreitas crenças e formulações, nossos anseios e esperanças para experimentar aquilo que é imortal e infinito.

Interrogante: Os cientistas não salvarão o mundo?

Krishnamurti: O que você quer dizer com cientistas? Aqueles que trabalham nos laboratórios e fora deles são seres humanos, como nós, com preconceitos nacionais e raciais, gananciosos, ambiciosos, cruéis. Eles vão salvar? Eles estão salvando o mundo? Eles não estão usando seu conhecimento técnico para destruir mais do que para curar? Em seus laboratórios eles podem estar em busca de conhecimento e compreensão, mas eles não são levados pelo ego, pelo espírito competitivo, por paixões como outros seres humanos?

É preciso estar em guarda, vigilantemente atento ao grupo organizado; quanto mais você é organizado, controlado, moldado mais é incapaz de pensar integralmente, completamente. Então você fica pensando parcialmente, o que causa calamidade e miséria. Deve-se estar vigilante com os profissionais; eles têm seus interesses investidos, suas estreitas demandas. Deve-se estar em guarda com os especialistas de qualquer linha. Através da especialização na parte, o todo não é compreendido. Quanto mais você confia neles e deixa a libertação do mundo da miséria e do caos com eles, mais confusão e catástrofes haverá. Pois quem é o salvador exceto você mesmo? Pois o líder, o partido, o sistema é criado em seu próprio ser e o que você é, eles são; se você é ignorante e violento, competitivo e ambicioso, eles vão representar o que você é.

Os cientistas e os leigos somos nós mesmos; nós pensamos parcialmente, rejeitando o todo; descuidadamente nos permitimos ser moldados pela luxúria, pela má vontade e ignorância. Através do medo e da dependência nos permitimos ser arregimentados, oprimidos. O que poderá nos salvar exceto nossa própria capacidade de nos libertar daqueles obstáculos que causam conflito e miséria? Ninguém pode nos reeducar salvo nós mesmos, e essa reeducação é uma árdua tarefa.

Em nós mesmos está o todo, o início e o fim. Consideramos o livro do autoconhecimento difícil de ler e, sendo impacientes e ansiosos por resultados, nos voltamos para os cientistas, para os grupos organizados, para os profissionais, para os líderes. Assim nunca estamos salvos, ninguém pode nos libertar, pois a liberdade da ignorância e do sofrimento vem através de nossa própria compreensão. Reeducar a nós mesmos é uma tarefa extenuante exigindo constante conscientização e grande flexibilidade, não opinião e dogma, mas compreensão. Para compreender o mundo, cada pessoa deve compreender a si mesma, pois ela é o mundo; a partir do autoconhecimento chega o pensar correto. Só o pensar correto produzirá ordem, clareza e paz criativa. Para sentir-pensar de maneira nova a dor da existência, cada pessoa deve se tornar consciente de modo a pensar, sentir cada pensamento-sentimento, e isso é impedido se existe identificação ou julgamento.

Interrogante: Eu não estou particularmente interessado em nacionalidade ou em virtude. Mas estou muito impressionado com o que você fala sobre o não-criado. Poderia investigar um pouco mais, embora seja difícil?

Krishnamurti: Você não pode pegar e escolher; pois nacionalidade, virtude e o não-criado estão inter relacionados. Você não pode aceitar o que agrada e rejeitar o desagradável; o agradável e o desagradável, ritualismo e sofrimento, virtude e maldade estão inter relacionados; escolher um e rejeitar o outro é estar preso na rede da ignorância.

Pensar no não-criado sem a mente se libertar verdadeiramente do anseio é ceder à superstição e à especulação. Para experimentar o não-criado, o imensurável, a mente deve deixar de criar. Ela deve deixar de ser aquisitiva, deve se libertar da má vontade, da cópia. A mente deve deixar de ser depósito de memórias acumuladas. Aquilo que adoramos é nossa criação e, por isso, não é o real. O pensador e seu pensamento devem chegar a um fim para o não-criado surgir.

O não-criado só pode surgir quando a mente for capaz de completa imobilidade. Uma mente rachada, queimando de anseio, nunca está tranquila. Não existe virtude se o pensamento não estiver livre do anseio. Quando o pensamento começa a se libertar do anseio, há pensar correto. É o pensar correto que vai, finalmente, gerar clareza de percepção. Certamente existe uma diferença entre aquilo que é imaginável e aquilo que é experimentável. A partir da formulação, a partir da imaginação, a partir do conhecido nós experimentamos, mas poucos são capazes de experimentar sem símbolos, sem imaginação, sem formulações. A compreensão negativa liberta a mente da cópia, do criado. Nossas mentes estão cheias de memórias, de conhecimento, de ação e reação às relações e coisas; não há quietude sem pretensão e desejo e, assim, não existe vazio criativo. Uma mente rica em atividade, rica em posses, rica em memória não está consciente de sua própria pobreza. Tal mente é incapaz de compreensão negativa; tal mente é incapaz de experimentar o não-criado. A sabedoria suprema é negada a ela.

Interrogante: A prática de uma disciplina regular não é necessária?

Krishnamurti: Um dançarino ou um violinista praticam por muitas horas ao dia para manter seus dedos maleáveis, seus músculos flexíveis. Agora, você mantém sua mente flexível, atenta, compassiva, praticando algum sistema particular de disciplina? Ou, você a mantém alerta, aguçada, pela constante conscientização do pensamento-sentimento? Pensar, sentir não é pertencer a algum sistema. Nós deixamos de pensar se pensamos em termos de sistemas, e porque pensamos dentro de sistemas, nosso pensamento precisa de reforço. Um sistema apenas produzirá uma forma especializada de pensamento, mas não pensar, é? A simples prática de uma disciplina para obter um resultado só força o pensamento a funcionar numa trilha e, assim, o limita; mas se nos tornamos cônscios e percebemos que estamos pensando em termos de um sistema, fórmulas e padrões, então pensamento-sentimento, libertando-se deles, começa a ficar maleável, alerta e aguçado. Se pudermos pensar cada pensamento até o fim, seguir com ele tão longe quanto possível, então seremos capazes de compreender e experimentar ampla e profundamente. Essa conscientização expansiva e profunda gera sua própria disciplina – uma disciplina não imposta externamente ou internamente segundo um sistema ou padrão, mas o resultado de autoconhecimento e, portanto, de pensar correto e compreensão. Tal disciplina é criativa sem formar hábitos e encorajar a preguiça.

Se você se tornar consciente de cada pensamento-sentimento, mesmo trivial, e refletir sobre ele, senti-lo tão profunda e extensivamente quanto possível, o pensamento romperá, então, as limitações que impôs a si mesmo. Daí vem um ajustamento compreensivo, uma disciplina muito mais efetiva e flexível do que a disciplina imposta por qualquer padrão. Sem despertar a mais elevada inteligência por meio da conscientização, a prática de uma disciplina cria hábito simplesmente, negligência. A conscientização em si, por meio do autoconhecimento e do pensar correto, traz sua própria disciplina. Hábito, negligência, como meio para um fim, termina em ignorância. Os meios corretos criam os fins corretos, pois o fim está no meio.

Interrogante: Como aquietar a mente na qual seja possível perceber algo que afetará os problemas cotidianos? Como posso conservar a mente quieta?

Krishnamurti: Assim como um lago fica calmo quando a brisa para, também quando a mente compreendeu e transcendeu os problemas conflituosos que ela criou, grande quietude surge. Essa tranquilidade não é para ser induzida pela vontade, pelo desejo; ela é o resultado da liberdade do anseio.

A maior parte de nossa chamada meditação consiste em aquietar a mente por vários métodos que só reforçam o fechamento em si, a concentração exclusiva: essa concentração restrita traz seu próprio resultado, mas não é compreensão extensiva – não a mais elevada inteligência e sabedoria que traz tranquilidade naturalmente, sem compulsão. Essa compreensão é para ser despertada, cultivada, através de constante conscientização de todo pensamento-sentimento-ação, de cada perturbação seja pequena ou grande. Compreendendo e, assim, dissolvendo os conflitos e as perturbações que estão na mente consciente, na camada exterior, e trazendo clareza, ela é capaz de ficar passiva e compreender as camadas mais profundas, as camadas inter relacionadas da consciência com suas acumulações, impressões, memórias. Assim, através de constante conscientização, o processo profundo do anseio, a causa do ego e, portanto, do conflito e da dor, é observada e compreendida. Sem autoconhecimento e pensar correto não há meditação, e sem conscientização meditativa não há autoconhecimento.

16 de julho de 1944