Primeira palestra em Santiago, Chile

Amigos,

Nossos problemas humanos exigem pensamento claro, simples e direto. Alguns de vocês podem imaginar que, simplesmente ouvindo algumas palestras que vou proferir, seus problemas se resolverão. Vocês desejam remédio imediato para as muitas dores e sofrimentos, e alterações superficiais que vão revolucionar seus pensamentos, todo seu ser. Existe apenas um caminho para encontrar felicidade inteligente, e é por meio de sua própria percepção, discernimento; e só pela ação você pode dissolver os muitos impedimentos que aparecem no caminho da realização. Se você puder perceber por si mesmo, simples e diretamente, as limitações que impedem o viver completo e profundo, e como elas foram criadas, então você mesmo será capaz de resolvê-las.

Eu pediria a vocês que, ao me ouvirem, se afastassem da ilusão conveniente e satisfatória que divide o pensamento em oriental e ocidental. A verdade está além de todos os climas, pessoas e sistemas. Embora eu venha da Índia, o que digo não está condicionado pelo pensamento daquele país. Eu estou interessado no sofrimento humano, que existe pelo mundo afora, E, por favor, não deixem de lado o que digo por pensarem que não é prático mas, simplesmente, alguma forma de misticismo oriental. Eu pediria a vocês que não pensassem em termos de fórmulas, sistemas, frases de efeitos, mas em libertar a mente do substrato de muitas gerações, e pensar de novo, direta e simplesmente. Por favor, não pensem que me chamando de anarquista ou comunista, ou me dando algum outro nome conveniente, vocês compreenderam o que eu disse. Nós devemos pensar de novo e compreender o problema humano como um todo e, só então, podemos viver harmoniosa e inteligentemente. Onde existe verdadeira realização individual, também haverá bem-estar do todo, do coletivo.

Se cada um de vocês puder se realizar, viver em completa harmonia – o que demanda grande inteligência e não a busca de desejos egoístas – então haverá bem-estar da totalidade. Ainda que devamos ter uma completa revolução de pensamento e desejo, ela deve ser o resultado da compreensão voluntária por parte do indivíduo, e não de compulsão. Como a maior parte de vocês estão interessados em felicidade e realização, e não vieram aqui meramente por curiosidade, se cuidadosamente compreenderem o que digo, e agirem, então haverá o verdadeiro êxtase da vida.

Existe intenso sofrimento mundo afora. Existe fome em meio à fartura. Há exploração de uma classe por outra classe, de mulheres por homens e de homens por mulheres. Há o absurdo do nacionalismo, que é apenas a expressão coletiva da busca egoísta por segurança. Este caos é a expressão objetiva do sofrimento interior do homem. Subjetivamente, existe incerteza, o medo atormentador da morte, da imperfeição, do vazio. Nossa ação no mundo subjetivo e objetivo não é mais do que a expressão egoísta do desejo de segurança. Assim, a mente criou muitos impedimentos, limitações e, até compreendermos completa e integralmente estes impedimentos e, voluntariamente, nos libertarmos deles, não pode haver realização.

Compreendendo e libertando a nós mesmos, individualmente, destas limitações, podemos criar ação verdadeira e necessária, e, portanto, mudar o ambiente. Muitas pessoas consideram que deve haver um movimento de massa a fim de provocar realização individual. Mas para criar um verdadeiro movimento de massa, deve haver, primeiro, uma completa revolução do pensamento e do desejo no indivíduo, em você. Essa, para mim, é a verdadeira revolução, esta mudança individual e voluntária. Ela deve começar com você, com o indivíduo, e não com uma massa coletiva, indefinida. Não fiquem hipnotizados com a expressão movimento de massa. Cada indivíduo que está preso no sofrimento deve mudar, deve compreender a causa de seu próprio sofrimento e dos obstáculos que criou em torno de si mesmo. É inútil, simplesmente, buscar uma substituição, pois isso não resolverá, de modo algum, nossos problemas humanos e agonias. Isso é, meramente, um ajustamento falso a uma condição falsa. A maioria de nós, na busca de substituição, está meramente se prendendo a nossas próprias buscas egoístas.

Por favor, ao final da palestra, não digam que não lhes dei um sistema positivo. Eu vou tentar explicar como nossos sofrimentos foram criados; e quando você discernir a causa por si mesmo, então haverá uma ação direta que, sozinha, será positiva. Esta ação nascida da compreensão, da inteligência, não é a imitação de um sistema.

Todo indivíduo está buscando segurança, subjetivamente e objetivamente. Sua busca subjetiva é por certeza, de modo que a mente possa se segurar nela, imperturbável. E sua busca objetiva é por segurança, poder e bem-estar. Ora, o que ocorre quando você busca segurança, certeza? Deve haver medo; e se você está consciente de seu pensamento, perceberá que ele tem sua origem no medo. Moralidade, religião e condições objetivas se baseiam fundamentalmente no medo, pois é o resultado do desejo, por parte do indivíduo, de estar seguro. Embora você possa não ter qualquer crença religiosa, ainda tem o desejo de estar seguro subjetivamente, o que não é mais do que espírito religioso. Vamos compreender a estrutura daquilo que chamamos de religião.

Como eu disse, quando a pessoa busca segurança deve haver medo; para estar subjetivamente certo, você busca o que chama de imortalidade. Na busca dessa segurança, você aceita mestres que prometem esta imortalidade, a passa a considerá-los como autoridades a serem temidas, adoradas. E onde existe medo, deve haver dogmas, credos, crenças, ideais e tradições para segurarem a mente.

O que vocês chamam de religião não é mais do que uma forma individual de autoproteção para segurança subjetiva. Para administrar esta autoridade baseada no medo, deve haver sacerdotes, que se tornam seus exploradores. Vocês são os criadores de exploradores, pois pelo medo, criaram a causa da exploração. A religião se tornou uma crença organizada, uma forma cristalizada de pensamento, de moralidade, de opressão, dominação. A religião, cujo Deus é o medo – embora usemos palavras como amor, bondade, fraternidade para encobrir esse medo profundo – não é mais do que uma submissão subjetiva a um sistema que nos garanta segurança. Eu não estou falando de uma religião ideal; estou falando da religião como ela é mundo afora, a religião da exploração, de interesses investidos.

E existe a busca objetiva de segurança por meio do poder egocêntrico, essencialmente baseada no medo e assim por diante, exploração. Se você olhar para nosso sistema atual, verá que ele não é nada além de uma série de ardilosas explorações do homem pelo homem. A família se torna o próprio centro da exploração. Por favor, não confundam o que quero dizer com família. Quero dizer o centro que faz você se sentir seguro, o que demanda a exploração de seu vizinho. A família, que deveria ser a verdadeira expressão do amor, não da exclusividade, se torna o meio para a autoperpetuação egocêntrica. Daí se desenvolvem as classes, a superior e a inferior, e os meios de adquirir riqueza acumulada nas mãos de poucos. E daí segue-se a doença do nacionalismo, nacionalismo como meio de exploração, de opressão. Esta perigosa doença do nacionalismo está dividindo as pessoas, como as religiões fazem. Disto surgem os governos soberanos, cujo negócio é a preparação para a guerra. As guerras não são uma necessidade; matar outro ser humano não é uma necessidade.

Assim, buscando sua própria segurança, você criou muitos impedimentos dos quais está inteiramente inconsciente; e estes impedimentos não estão apenas o transformando em uma máquina, mas o estão impedindo de ser um verdadeiro indivíduo. Tornando-se consciente destas limitações, surge o conflito. Você não quer conflito, deseja apenas satisfação, segurança e, assim, estes obstáculos continuam criando sofrimento e confusão. Mas você encontrará verdadeira felicidade, realização, realidade só quando entrar em conflito com os valores que, agora, oprimem e limitam a mente. Examinar estes valores intelectualmente, não revela sua verdadeira significação. O simples exame intelectual não criará conflito, e só por meio do sofrimento você começa a compreender seu significado profundo, oculto.

A maior parte das pessoas age mecanicamente em um sistema, então, é essencial que elas fiquem face a face com aqueles valores e impedimentos dos quais estão inconscientes. Nisto está o despertar da verdadeira inteligência, que pode gerar realização. Esta inteligência, que é única, revelará o eterno. Como o sol surge claro e brilhante por entre as nuvens escuras, do mesmo modo, por seu próprio discernimento e na pureza de sua própria ação chega a realização daquela vida que é sempre renovada.

Interrogante: Você está pregando ideias revolucionárias, mas como pode algum bem verdadeiro surgir a menos que você organize um grupo de seguidores que provocarão uma revolução de fato? Se você é contra a organização, como pode conseguir algum resultado?

Krishnamurti: Você não pode seguir ninguém, nem mesmo a mim. A partir de sua própria compreensão voluntária, você criará a organização que for necessária. Mas se uma organização é imposta a vocês, vocês se tornarão meros escravos dessa organização e serão explorados. Como já existem muitas organizações que os exploram, qual é o bem de acrescentar mais uma a elas? Mas o importante é que cada um de vocês compreenda fundamentalmente, e a partir dessa compreensão chegará a verdadeira organização que não impedirá a realização individual. Eu não sou contra todas as organizações. Sou contra aquelas organizações que impedem a realização individual e, especialmente, a organização chamada religião, com seus medos, crenças e interesses investidos. Supõem-se que ela ajude o homem, mas de fato ela obstrui, profundamente, sua realização.

Interrogante: Não haveria problema, caos e imoralidade na sociedade se não houvesse sacerdotes para manter e pregar a moralidade?

Krishnamurti: Certamente hoje existe no mundo completo caos, exploração e miséria. Você pode acrescentar mais a isto? Devemos considerar o que queremos dizer com sacerdotes e com imoralidade.

Quero dizer com sacerdote, a pessoa cuja ação se baseia em interesses investidos e, assim, promove o medo. Ele pode não pertencer a uma organização religiosa, mas pode pertencer a um sistema particular de pensamento e, por isso, cria dogmas, credos e medos. Um sacerdote é alguém que força o outro, sutil ou grosseiramente, a se adaptar em um modelo particular.

Para compreender o que é verdadeira moralidade, devemos compreender, primeiro, o que é moralidade agora. Se pudermos discernir como ela cresceu a nossa volta e nos libertarmos de suas muitas tolices e crueldades, então haverá inteligência, cuja ação será, verdadeiramente, moral, pois não será baseada no medo. Se você observar desapaixonadamente, verá que nossa moralidade atual se baseia em profundo egoísmo, na busca de segurança, não só aqui, mas na vida futura. Pela ganância, pelo desejo de possuir, você estabeleceu certas leis, certas opiniões que chama de moral. Se você, voluntariamente, se liberta da possessividade, da ganância – o que exige profundo discernimento – então há inteligência, que é a guardiã da verdadeira moralidade.

Você dirá: “Está certo para nós, que somos educados, não precisamos de ninguém para nos apoiar nesta moralidade; mas e o povo, a massa?” Quando você considera os outros como não sendo cultos, então você mesmo não é; pois a partir dessa dita consideração pelos outros, nasce a exploração. Quando fala dos outros, você está, realmente, preocupado com seu próprio medo do conflito e da perturbação. Se você compreendesse a presente falsa moralidade, com sua sutil crueldade, então haveria verdadeira inteligência. Só isso é a certeza de moralidade cordial, inclusiva e sem medo.

Interrogante: É o caráter um outro nome para limitação?

Krishnamurti: O caráter se torna limitação se é, meramente, defesa egoísta contra a vida. Este desenvolvimento de resistência contra o movimento da vida se torna meio de autoproteção. Nisto não pode haver inteligência, e assim, a ação só cria mais limitação e sofrimento. Nós desenvolvemos um sistema em que, para viver de fato, devemos possuir aquilo que é conhecido como caráter, que não é mais do que resistência cuidadosamente cultivada, uma autodefesa contra a vida.

Um homem que vivesse, realizasse, deve ter inteligência. O caráter está em oposição à inteligência. Caráter é, simplesmente, um obstáculo, uma limitação, e em seu desenvolvimento não pode haver realização.

Interrogante: Você, realmente, acredita no que fala?

Krishnamurti: Agora estou lhes dizendo o que para mim é verdade, não crença. É a fruição de meu próprio viver. Não é a busca de algum ideal, o que é apenas imitação. Onde existe imitação, existe crença. Mas se você está realizando, o que não é adquirir alguma coisa ou se tornar alguma coisa, então existe realidade viva.

A crença nasce da ilusão, e a realidade é livre de todas as ilusões. Você não pode julgar se eu estou vivendo o que digo. Eu sou a única pessoa que pode saber disso, mas você tem que descobrir por si mesmo se o que falo tem algum significado profundo para você. Para julgar, você deve ter uma medida, um padrão. Agora, esse padrão, como em geral acontece, é o resultado de algum preconceito ou frustração.

Por favor, examine o que eu tenho a dizer, pois no próprio exame você começará a compreender o verdadeiro significado de viver. Onde há julgamento, há ou condenação ou aprovação, e esta divisão, esta fragmentação de pensamento e emoção, não traz compreensão.

1 de setembro de 1935