4ª Palestra em Buenos Aires

Amigos,

Eu não vim à Argentina para convertê-los a algum credo particular ou estimulá-los a aderir a uma sociedade particular; mas compreendendo, através da ação, o que vou dizer, vocês perceberão essa felicidade que nasce da inteligência, da realização. Se cada um de vocês puder viver supremamente, em profunda realização, então o mundo como um todo será mais rico, mais feliz – mas a dificuldade é viver profundamente. Para viver profundamente, você tem que descobrir por si mesmo sua própria singularidade, pois só aí existe realização. É apenas através de nossa verdadeira realização que resolveremos os inumeráveis problemas sociais e econômicos. Confiar no ambiente ou numa religião para nos guiar é criar um perigoso impedimento para a realização.

Durante esta breve palestra, antes de responder às perguntas, quero falar sobre individualidade e verdadeira realização, e ver se as condições sociais, morais e religiosas existentes são uma ajuda verdadeira ou um perigoso impedimento. Antes de examinar se as condições são perigosas ou benéficas, devemos compreender o que é individualidade, o que é singularidade do indivíduo, e de que maneira ele pode se realizar.

Agora vou apresentar muito sucintamente o que para mim é individualidade. Não vou usar expressões psicológicas ou um jargão complicado. Usarei palavras comuns com seus significados comuns. Individualidade são as memórias acumuladas e condicionadas tanto do passado como do presente. Ou seja, cada indivíduo não é nada além de uma série de memórias condicionadas, o que impede completo e inteligente ajustamento ao viver presente, mutável. Estas memórias dão a cada um a qualidade da separatividade, e é isto que vocês chamam de singularidade da individualidade.

Ora, em que se baseiam estas memórias, quais as causas condicionantes que limitam a consciência? Se você examinar verá que estas memórias brotam de reações defensivas contra a vida, contra o sofrimento, contra a dor. Tendo cultivado estas reações de autoproteção, e nomeando-as com termos elevados e agradáveis tais como moralidade, virtudes, ideais, a mente vive dentro deste recinto de proteção, desta consciência limitada de segurança. Estas memórias, pelo impacto da experiência, aumentam em sua força e resistência e, assim, criam divisão da realidade viva, até haver total imperfeição; isto causa medo com suas muitas ilusões, o medo da morte e do futuro.

Mostrando de outra forma, toda pessoa tem o desejo de estar certa, segura, e com esse desejo aborda a vida, com essa intenção busca experiência. Assim, a pessoa não compreende a experiência, a vida em si, completamente. Qualquer ação nascida do desejo de segurança deve criar imperfeição. Sendo imperfeita, a pessoa sempre é guiada pelas memórias, que novamente aumentam o vazio, o isolamento de nosso ser. Assim, esta contínua ação da imperfeição impede a realização, que é a completa expressão da vida sem o obstáculo das memórias condicionadas, do egoísmo. Ou seja, quando você aborda a vida com todas as memórias baseadas em segurança e desejo de proteção, então qualquer ação vinda daí deve criar um vazio, uma imperfeição; então não há realização, nem compreensão. O significado da individualidade é que a mente, apenas através dela mesma, através de sua própria separatividade condicionada, através da profunda compreensão de sua própria limitação autocriada, deve dissolver os obstáculos e barreiras que criam a consciência limitada.

Por favor, vocês terão que pensar nisto muito profundamente e não apenas aceitar ou rejeitar. A mente, sendo condicionada pela memória baseada na segurança, pelas chamadas virtudes, moralidades autoprotetoras, é impedida em sua realização. Tendo compreendido isto, podemos descobrir se sociedade, moralidade, religião ajudam o indivíduo a se libertar e se realizar completamente.

Ou a sociedade existente, com sua moralidade e religião, é fundamentalmente verdadeira e, assim, ajuda o indivíduo a se realizar; ou, se isto não for verdade, então devemos revolucionar completamente nosso pensamento e ação. Então, a mudança depende do pensamento e da ação individual. Você tem que investigar se suas religiões, moralidades são verdadeiras. Eu digo que não são: porque a sociedade se baseia na aquisição, nos valores morais da segurança autoprotetora e na religião, que é a crença organizada, fundamentalmente no medo – embora tentemos encobrir isto chamando de amor de Deus, amor da verdade. Se for para haver verdadeira realização, não pode haver este sentido de possessividade ou aquisição, nem estes valores morais baseados na segurança defensiva egocêntrica, nem estas religiões com suas promessas de imortalidade, o que não é mais do que outra forma de egoísmo e medo.

Assim você, o indivíduo, terá que despertar para a prisão em que está e ficando consciente, atento, começará a descobrir o que é estupidez e o que é inteligência. É através de sua própria inteligência que pode haver realização, não pela aceitação da autoridade. Então o que é importante é o indivíduo, pois apenas através de sua própria inteligência existe realização, o êxtase da vida. Isto não significa que estou pregando o individualismo. Ao contrário: é o sistema individualista de fé e crença religiosa, de valores morais e conduta aquisitiva que impede a verdadeira realização. Assim, você que está ouvindo, tem que compreender, você tem que romper esta prisão com seu próprio discernimento inteligente; e isto exige contínua vigilância da mente. Não se pode seguir o outro, nem pode haver aceitação de autoridade, pois nisto existe medo e o medo destrói todo o discernimento.

Interrogante: Eu creio que não tenho qualquer apego, e ainda não me sinto livre. O que é esse sentimento doloroso de estar aprisionado, e o que faço a respeito disto?

Krishnamurti: A pessoa busca o desapego, mais do que a compreensão da causa do sofrimento. Ora, quando a pessoa sofre pela possessividade, ela tenta desenvolver o oposto, que é o desapego. Em outras palavras, a pessoa se desapega para não ser magoada e este oposto ela chama de virtude. Se a pessoa realmente descobrisse qual é a causa do sofrimento, então, ao compreender profundamente com todo o seu ser, a mente estaria livre para viver integralmente, completamente, e não cair em outra prisão, a prisão do oposto.

Interrogante: Você também é contra organizações como estradas de ferro, etc.?

Krishnamurti: Eu estava me referindo àquelas organizações que criamos por nossos medos autoprotetores. Ora, a maioria das organizações no mundo se baseia na exploração, mas eu me referia especificamente às organizações de crença religiosa mundo afora.

Eu sustento que estas organizações religiosas sectárias são impedimentos reais para o homem. Aqueles de vocês que pertencem à organização religiosa, por favor, não fiquem na defensiva quando digo isto, mas tentem descobrir por vocês mesmos se é assim ou não. Se você descobrir que não é assim, então é correto tê-las. Mas antes de dizer que organizações religiosas são necessárias, você deve examiná-las realmente com imparcialidade. Como você vai examiná-las? Para examinar qualquer coisa objetivamente, sua mente deve ser completamente impessoal. Isso significa que você deve duvidar de toda crença, todo ideal que você carregou até aqui ou que estas organizações oferecem. Através desse questionamento surge um conflito distinto, e só quando existe conflito você pode começar a compreender o correto significado das crenças organizadas. Se você as examina apenas intelectualmente, nunca compreenderá a verdadeira significação delas. Por isso muitas religiões proíbem que seus seguidores duvidem. A dúvida se tornou um grilhão religioso, um impedimento. Você desenvolveu, pelo seu próprio medo, certas crenças, ideais, ilusões, as quais você se escravizou, e é apenas por seu próprio sofrimento que você compreenderá sua verdadeira significação.

Interrogante: Há pessoas que, por um lado, exploram milhares de seres humanos e, por outro, doam milhões de dólares para instituições religiosas. Por quê? (Risos)

Krishnamurti: Vocês riem desta pergunta, mas também estão envolvidos nisto. Nós exploramos, acumulamos riqueza e, então, nos tornamos filantropos. Talvez alguns de vocês não tenham a destreza implacável para acumular riqueza, mas fazem o mesmo de outra forma, indo ao encalço da virtude.

Então, o que existe por trás desta falsa caridade dos filantropos e desta falsa avidez para acumular virtude? O filantropo, pelo medo, por muitas reações defensivas, quer compensar um pouco a vítima que ele explorou. (Risos) E você o homenageia, diz como ele é maravilhoso. Isso não é caridade. É simplesmente egoísmo.

E por que você vai ao encalço da virtude e tenta acumulá-la? É uma proteção defensiva. Uma salvaguarda contra o sofrimento. Sua virtude, se você realmente examiná-la, se baseia na ideia egoísta de repelir o sofrimento. Esta autoproteção não é virtude. Sabendo o que você é e não fugindo disto pela chamada virtude, você descobrirá a beleza, a riqueza da vida.

O filantropo, por seu desejo de segurança, se defende no poder que as posses conferem, e o homem que busca a virtude constrói em sua volta muros de proteção contra o movimento da vida. O homem virtuoso e o filantropo são semelhantes. Ambos têm medo da vida. Eles não são apaixonados pela vida.

Interrogante: Estamos felizes com nossas crenças e tradições baseadas nas doutrinas de Jesus; enquanto que, em seu país, Índia, há milhões de pessoas que estão longe de ser felizes. Tudo que você está nos dizendo, Cristo ensinou dois mil anos atrás. Qual a utilidade de sua pregação para nós no lugar de seus próprios compatriotas?

Krishnamurti: O pensamento não pertence a nenhuma nação ou a nenhuma raça. (Aplausos) A realidade não está condicionada pelas distinções religiosas ou raciais; e porque o interrogante dividiu o mundo em cristão e hindu, em Índia e Argentina, ele ajudou a criar miséria e sofrimento no mundo. (Aplausos) Quando eu falo na Índia sobre nacionalismo, eles me dizem: “Vá para a Inglaterra e diga às pessoas que o nacionalismo é estúpido, porque a Inglaterra está nos impedindo de viver”. (Risos) E quando venho aqui vocês me dizem: “Vá para algum outro lugar e nos deixe com nossa própria crença e religião. Não nos perturbe”. (Risos)

Se suas próprias crenças e tradições o satisfazem, então você não ouvirá o que digo, porque suas tradições e suas crenças são abrigos que você busca em tempos difíceis. Você não quer enfrentar a vida, e então diz: “Estou satisfeito; não me perturbe”. Se você realmente compreendesse a verdade, se conhecesse o amor, estaria livre de crenças e religiões organizadas. Não pode haver “sua religião” e “a religião do outro”, suas crenças e doutrinas contra as dos outros. O mundo será feliz quando não houver necessidade de pregador, quando cada indivíduo estiver realmente realizado e, como ele não está, eu sinto que posso ajudá-lo em sua realização.

Se você sente que estou perturbando, criando sofrimento, então, naturalmente, ficará na religião a que pertence, com suas explorações e ilusões, mas a vida não lhe deixará em paz. Nisso está a beleza da vida. Não importa quanto você se protegeu e se fechou em certezas, seguranças e crenças, a onda da vida rompe toda a sua estrutura. Mas o homem que não tem apoio, nem segurança, conhecerá a alegria da vida.

Interrogante: Que memória é essa, criada pela ação incompleta no presente, da qual você afirma que devemos nos libertar?

Krishnamurti: Na breve introdução a esta palestra, eu tentei explicar como as memórias como autodefesas estão mutilando nosso pensamento e ação. Deixe-me dar um exemplo.

Se você foi criado como cristão, com certas crenças, você aborda a vida, a experiência, com essa mentalidade limitada. Naturalmente, esses preconceitos e limitações o impedem de compreender a experiência totalmente. Assim, há imperfeição em seu pensamento e ação. Ora, esta barreira que cria imperfeição é o que chamo de memória. Estas memórias agem como um aviso de autodefesa, como um guia contra a vida para ajudá-lo a evitar o sofrimento. Assim, a maior parte de nossas memórias são reações de autodefesa contra a inteligência, contra a vida. Quando uma mente está livre de todas estas reações de autoproteção, memórias, então há o completo movimento da vida, da realidade.

Ou pegue outro exemplo: suponha que você foi criado em certa classe social, com todo seu esnobismo, restrições e tradições. Com esse obstáculo, com esse fardo, você não pode compreender ou viver a totalidade da vida. Assim, estas memórias de autoproteção são a causa real do sofrimento; e se você se libertasse do sofrimento, não haveria estes valores autoprotetores com os quais você procura se guiar.

Se você refletir sobre isto, se sua mente estiver cônscia de suas próprias criações, então você compreenderá como estabeleceu você mesmo guias, valores, que são nada mais que memórias, como uma proteção contra o incessante movimento da vida. Um homem escravizado por memórias autoprotetoras não pode compreender a vida, nem se apaixonar pela vida. Sua ação em relação à vida é de autodefesa. Sua mente está tão fechada que os mais leves movimentos da vida não podem entrar. Ele procura eternidade, imortalidade longe da vida, o eterno, o imortal, e assim vive numa contínua série de ilusões. Para tal homem, cuja consciência está limitada pelas memórias, não pode haver o eterno transformar da vida.

Interrogante Não existe perigo em buscar a divindade ou imortalidade? Isto não pode se tornar uma limitação?

Krishnamurti: É uma limitação cruel se você busca isto, pois sua busca é meramente uma fuga da vida; mas se você não foge da vida, se através da ação você compreende profundamente seus conflitos, agonias e sofrimento, então a mente se liberta de suas próprias limitações e existe imortalidade. A vida em si é imortal. Você fica tentando encontrar imortalidade, não a deixa acontecer. Um homem que fica tentando se apaixonar nunca conhecerá o amor. É isto que está acontecendo com todas aquelas pessoas que buscam imortalidade, pois para elas imortalidade é uma segurança, uma continuidade egocêntrica. Se a mente está livre da busca por segurança, que é muito sutil, então surge a alegria dessa vida que é imortal.

Interrogante: Por que você desconsidera o problema sexual?

Krishnamurti: Eu não desconsidero; mas se você quiser compreender esta questão, não tente resolvê-la separadamente, apartada do resto dos problemas humanos. Eles são todos um só.

O sexo se torna um problema quando há frustração. Quando o trabalho, que deveria ser a verdadeira expressão de nosso ser, se torna meramente mecânico, estúpido e inútil, então há frustração; quando nossas vidas emocionais, que deveriam ser ricas e completas, são contrariadas pelo medo, então há frustração; quando a mente, que deveria estar alerta, flexível, ilimitada, está sobrecarregada pela tradição, memórias autoprotetoras, ideais, crenças, então há frustração. Assim o sexo se tornou um problema super enfatizado e não natural. Onde existe realização, não existem problemas. Quando você está apaixonado, vulneravelmente, o sexo não é problema. Para o homem que considera o sexo como simples sensação, ele se torna um problema urgente, corroendo sua mente e coração. Você se libertará deste problema só quando, pela ação, a mente se libertar de todas as limitações auto-impostas, ilusões e medos.

Há perguntas tratando de reencarnação, morte e o que vem depois, de espiritualismo, mediunidade e de vários outros assuntos, que seriam impossíveis de responder, pois meu tempo é limitado. Mas se vocês estão interessados, podem ler algumas das coisas que eu já disse. Vocês buscam explicações, mas explicações são como poeira para o homem que está faminto. Só a ação desperta a mente de modo que ela começa a discernir. Onde há discernimento, as explicações não têm valor.

Tomem esta pergunta como exemplo: “Qual é sua concepção de Deus?” Se você ficar satisfeito com uma explicação, isto mostra a pobreza de seu ser, e receio que muitas pessoas fiquem satisfeitas assim. Suas religiões se baseiam em explicações, revelações, na experiência de outras pessoas. Então qual é a utilidade de eu dar outra explicação, ou dar outra crença para adicionar ao seu museu de crenças mortas? Se você refletisse profundamente na totalidade da ideia de buscar Deus, então veria que está sutilmente, ardilosamente fugindo do conflito da vida. Se você compreender a vida, se capturar a profunda significação de viver, então a própria vida é Deus, não alguma super-inteligência distante de sua vida. Mas isto demanda grande penetração de pensamento, não buscar satisfação ou explicação. Na própria compreensão do conflito e do sofrimento, quando toda segurança e apoio se tornam inúteis, quando você fica face a face com a vida sem obstáculos, aí está Deus.

22 de julho de 1935.