Palestra em Niterói

Amigos,

Muitas pessoas por todo o mundo – não importa onde elas estejam – estão descontentes, perturbadas pelas condições existentes, e elas tentam encontrar um modo duradouro de sair desta miséria e caos. Cada especialista oferece sua própria forma de solução particular, e, como geralmente acontece, ele contradiz outros especialistas. Então cada especialista forma um grupo em torno de sua teoria, e logo o propósito de ajudar a humanidade é esquecido, enquanto discussões e discórdias acontecem entre vários grupos e especialistas.

Não sendo um especialista, não estou propondo um novo sistema ou um nova teoria para a solução dos numerosos problemas; mas o que eu gostaria de fazer é acordar a inteligência individual, para que cada um, ao invés de tornar-se um escravo do sistema ou de um especialista, comece a agir inteligentemente, para que a partir disto, sozinho, possa começar uma ação cooperativa e construtiva. Se cada um de nós é capaz, sob qualquer circunstâncias, de discernir por si mesmo o que é a ação verdadeira, então não haverá exploração, então cada um realizar-se-á verdadeiramente e viverá uma vida harmoniosa e completa. Naturalmente, o que eu digo aplicar-se-á àquelas pessoas que estão descontentes, que estão indignadas, que estão tentando encontrar um modo inteligente de ação. Isto aplica-se àqueles que estão em sofrimento e desejam se libertar de toda exploração.

Todo mundo está preocupado com esse acordar, através do conflito e luta entre si mesmo e o grupo, entre si mesmo e outro indivíduo. Há autoridade estabelecida, quer seja antiga ou moderna, que está continuamente instigando, torcendo o indivíduo a funcionar de uma forma particular. Nós temos um sistema completo de pensamento cultivado ao longo de eras, para o qual cada um de nós contribuiu, em cujo movimento impiedoso, cada um, conscientemente ou inconscientemente é apanhado. Portanto, existe uma consciência coletiva e uma individual, algumas vezes correndo paralelas, mas frequentemente diametralmente opostas. Esta oposição é o acordar do sofrimento. Nosso conflito, insatisfação e luta está entre aquela que é a autoridade estabelecida e a individual, entre aquela que é tradição centenária e o desejo sequioso da parte do indivíduo que não quer ser sufocado – pela tradição, pela autoridade – mas realizar-se. Pois somente na realização há a felicidade criativa.

No mundo da ação, o qual chamamos mundo material, mundo econômico, mundo da sociologia, existe um sistema que impede a verdadeira realização do indivíduo. Ainda que cada um pense que neste sistema atual, age individualmente, se você o examinar verdadeiramente, verá que você nada mais faz do que agir como um escravo, como um autômato da ordem estabelecida. Esse sistema tem em si, a distinção de classe, baseada em exploração aquisitiva, levando ao nacionalismo e guerras; ele colocou os meios de acumulação de riqueza nas mãos de poucos. Se o indivíduo for capaz de expressar-se, de realizar-se, ele estará em constante revolta contra este sistema, porque se você examiná-lo, verá que ele é fundamentalmente sem inteligência, cruel. Se o indivíduo quiser entender este sistema externo, ele deve primeiro ficar cônscio da prisão na qual ele está detido, a prisão que ele criou através de sua própria aquisitividade agressiva, e começar a quebrá-la através de seu próprio sofrimento e inteligência individual.

Então há um sistema interno, igualmente cruel e explorador, que nós chamamos religião. Eu quero dizer por religião o sistema de pensamento organizado que prende o indivíduo na trincheira de um padrão particular. Afinal de contas, cristianismo, hinduísmo e budismo compreendem tantos conjuntos de crenças, ideias, preceitos, envelhecidos em medo e tradição, que forçam o indivíduo por meio da fé e esperança ilusória a pensar e agir ao longo de uma linha particular, cegamente e sem inteligência, com a ajuda de sacerdotes exploradores. Cada religião por todo o mundo, com seus direitos adquiridos, com suas crenças, dogmas e tradições, está separando o homem do homem, como o nacionalismo e as classes estão fazendo. É absolutamente fútil esperar que haja apenas uma religião no mundo, quer seja hinduísmo, ou budismo ou cristianismo, ainda que este seja o sonho dos missionários. Mas nós podemos abordar toda essa ideia de religião a partir de um ponto de vista totalmente diferente.

Por favor, escute pacientemente e sem preconceitos ao que tenho a dizer, porque religião, como política, é um assunto muito sensível. Se uma pessoa é religiosa, ela usualmente torna-se tão dogmática, tão violenta, quando se começa a questionar toda a estrutura da religião, que ela fica incapaz de pensar claramente e corretamente. Portanto, eu imploro àqueles que estão me ouvindo, talvez pela primeira vez, ouça sem qualquer antagonismo e com um desejo de descobrir o significado do que estou dizendo.

Se nós pudermos entender a vida e viver neste mundo com amor, supremamente e inteligentemente no presente, então a religião torna-se vã e inútil. Porque nos foi dito constantemente por exploradores que não podemos fazer isso por nós mesmos, fomos levados a acreditar que devemos ter um sistema para seguir. Portanto, sem ter sido ajudado a libertar-se, o homem é encorajado a seguir um sistema e é mantido, por meio do medo, um prisioneiro da autoridade que ele espera o guiará através dos vários conflitos e perplexidades da vida.

Livrar-se, meramente, da ideia de religião, sem um entendimento profundo, levará naturalmente a atividades, reações e pensamentos superficiais. Se nós formos realmente capazes de viver com profunda inteligência, então não criaremos um escape para nossas misérias e lutas – que é o que a religião se tornou. Isto é, porque achamos a vida tão difícil, com tantos problemas e misérias, aparentemente intermináveis, nós queremos um escape; e religiões oferecem um método muito conveniente de escape. Todo domingo, pessoas vão à igreja para rezar e praticar o amor fraternal, mas o resto da semana elas estão empenhadas na exploração impiedosa e na crueldade, cada uma procurando sua própria segurança. Logo, as pessoas estão vivendo uma vida hipócrita: domingo para Deus e o resto da semana para auto-segurança. Portanto, usamos religião como um escape conveniente ao qual nos refugiamos em momentos de dificuldade e miséria. Então, através deste sistema que chamamos religião com suas crenças e ideais, encontrou-se um escape justificado da batalha incessante do presente. Afinal de contas, ideais que religiões e entidades religiosas oferecem, nada mais são do que escapes do presente.

Agora, por que nós queremos ideais? É porque, como não podemos entender o presente, a existência diária com suas crueldades, sofrimentos e maldades, nós queremos nos guiar através desta vida por algum ideal. Logo os próprios ideais tornam-se fundamentalmente uma fuga do presente. Nossa mente é apanhada criando várias fugas do presente, o qual só ele é o eterno. Estando aprisionada naqueles ideais, a mente deve naturalmente estar em constante batalha com o presente. Assim, ao invés de procurar novos métodos, novas prisões, nós deveríamos entender por nós mesmos como a mente cria para ela própria estas vias de fuga. Portanto a questão é: você está satisfeito em viver nesta prisão de ilusão, nesta prisão de faz de conta com sua estupidez e sofrimento. Ou você está como indivíduo insatisfeito, em revolta? Você quer desenredar-se a si mesmo deste sistema, e então descobrir por si mesmo o que é a verdade? Se você estiver meramente satisfeito em permanecer na prisão, então a única coisa que irá acordá-lo é o sofrimento; mas quando o sofrimento chega, você procura uma fuga dele, e assim você cria outra prisão. Assim você vai de um sofrimento a outro, somente para entrar em um cativeiro ainda maior. Mas se você perceber a absoluta futilidade da fuga de qualquer tipo, quer seja de ideais, quer seja de crenças, então você irá perceber com intensa consciência, o verdadeiro significado das crenças, tradições e ideais. Em entendendo seus significados profundos, a mente, liberta de toda ilusão é capaz de discernir a verdade eterna.

Então, ao invés de meramente procurar novos sistemas, novos métodos para substituir o modo atual de pensamento, de exploração, de fugas sutis, tome a realidade como ela é – com todas as suas explorações, crueldades, bestialidades – e entenda o significado completo deste sistema. E isto pode ser feito somente quando há grande sofrimento. A partir deste questionamento e indagação intenso você perceberá por si mesmo esta realização de toda existência humana, que é inteligência. Sem essa realização a vida torna-se rasa, vazia, e o sofrimento simplesmente uma recorrência constante sem um fim.

Logo, se aqueles que estão sofrendo tentarem entender o significado completo do presente, sem qualquer medo ou qualquer desejo de escapar, então, sem a necessidade de sacerdotes e salvadores, há o percebimento daquilo que é eterno, daquilo que não pode ser medido por palavras.

Interrogante: Se a inteligência da maioria das pessoas é tão limitada que elas não podem encontrar a verdade por elas mesmas, os Mestres e professores não são necessários para mostrarem a elas o caminho?

Krishnamurti: se considerarmos somente que o não inteligente precisa do inteligente, manteremos o não inteligente para sempre não inteligente. Se você acha que um homem estúpido precisa de um guia, um Mestre, então criará circunstâncias para mantê-lo na estupidez. Se o inteligente percebe a necessidade de ajudar o estúpido, não em direção a qualquer sistema em particular ou crença ou dogma, mas para ser inteligente, então o não inteligente não será explorado. Mas a questão não é se o homem estúpido precisa de Mestres, salvadores, mas se você precisa deles. Na verdade, questionando essa necessidade, você descobrirá que ninguém pode salvá-lo, que ninguém pode lhe dar entendimento, pois o entendimento encontra-se por meio de seu próprio discernimento. Inteligência não é um presente de Mestres e professores, mas de sua própria percepção criativa e ação.

Interrogante: O homem não pode ser libertado por meio da ciência?

Krishnamurti: Ela pode salvar o homem de muitos sofrimentos, mas há uma grande quantidade de sofrimento, miséria e exploração, ainda que a ciência seja muito avançada. Cada um sabe da bestialidade e maldade da guerra, o resultado de interesses e nacionalismo. De que maneira a ciência impediu este sofrimento, esta doença? É o coração do homem que deve ser mudado, mas por que esperar por algum dia futuro, quando é agora que você tem o poder de provocar uma alteração inteligente e sadia?

Interrogante: Eu gostaria de saber se nós precisamos rezar e como rezar?

Krishnamurti: Senhor, não é a ideia fundamental da oração procurar ajuda e compreensão além de nós mesmos? Se assim for, nós estamos dependendo de algo, o que nos faz mais fracos em nossa própria inteligência.

Interrogante: A alma é uma realidade?

Krishnamurti: Novamente gostaria de pedir à audiência para ouvir sem preconceito, sem intolerância, este ponto. Quando você fala sobre a “alma”, você quer dizer algo entre o material e o espiritual, entre o corpo e Deus. Logo você dividiu a vida em matéria, espírito e Deus. Não é assim? Se eu posso falar, você fala sobre “alma” não sabendo nada sobre ela, você a aceita meramente pela autoridade ou baseia-se em alguma esperança, em algum desejo não preenchido. Você aceitou com base na autoridade muitas ideias fundamentais, assim como você aceitou a “alma” como sendo uma realidade.

Por favor, considere o que eu disser sem qualquer preconceito tanto a favor ou contra a ideia da alma, e sem qualquer ideia preconcebida, para descobrir o que é verdadeiro. A única realidade que somos conhecedores completos, que temos que nos preocupar, é o sofrimento; nós somos conscientes desta constante insatisfação, limitação, incompletude que causa conflito e sofrimento. Esta consciência do sofrimento é a única realidade a partir da qual você pode começar, e é somente no entendimento da causa do sofrimento e estando inteligentemente livre dele que começa o êxtase da realidade. Quando a mente desenredou-se de todas as ilusões e esperanças, então há a alegria da realidade.

Através de todo este conflito e miséria, sente-se que deve haver uma realidade, um Deus, uma inteligência infinita ou qualquer que seja o nome que se possa dar a isso. Esta sensação pode ser meramente uma reação desta agonia, e portanto irreal, e consequentemente sua busca deve levar a ilusões ainda maiores; ou ela pode ser o desejo intrínseco de descobrir a verdade que não pode ser medida ou sistematizada. Se nós pudermos descobrir o que cria o conflito e quem é o criador do sofrimento, então em arrancando pela raiz sua causa pode haver a verdadeira felicidade do homem. Esta quase incessante batalha, este sofrimento aparentemente sem fim é criado pela consciência limitada que chamamos de “Eu”. Nós criamos muitos falsos valores, falsos ideais sobre nós mesmos, aos quais a mente tornou-se uma escrava. Há uma constante luta acontecendo entre estas ilusões e o presente, e deverá haver conflito enquanto estas ilusões autoprotetoras existirem. Este conflito cria em nossas mentes a ideia do particular, do “Eu”. Logo a partir desta consciência limitada ergue-se a divisão como o “Eu”, o impermanente, e o “Eu”, o permanente, o eterno. Quando a mente estiver totalmente livre das ilusões autoprotetoras e dos falsos valores que são as causas da consciência limitada e de suas muitas bobagens, então cada um perceberá por si mesmo se há verdade ou não.

Se eu meramente disser que há uma alma, eu deverei não mais que adicionar outra crença às suas muitas crenças. Logo, qual valor isso teria? Por outro lado, a única realidade que temos consciência é esta luta, este sofrimento, esta exploração da qual tornamo-nos escravos; e em libertando-nos inteligentemente, não fugindo disso, discerniremos o eterno no transitório, o real na ilusão.

28 de maio de 1935.