2ª  Palestra no Rio de Janeiro

Amigos,

Nessa breve palestra introdutória, antes de responder algumas das questões levantadas, eu gostaria de expressar algumas ideias que deveriam ser analisadas com inteligência crítica. Eu não quero entrar em detalhes, mas quando você refletir sobre o que eu digo e transformá-lo em ação, você verá sua importância prática nesse mundo de caos cruel e aterrorizador.

A primeira coisa que temos que entender é que enquanto houver distinção entre o indivíduo e o grupo, haverá conflito, haverá exploração, haverá sofrimento. O conflito no mundo é realmente entre o indivíduo que procura realização e o grupo. Na expressão de sua força única como indivíduo, ele deve inevitavelmente entrar em conflito com o coletivo, e este conflito somente aumenta a divisão entre ambos. A mera imposição superficial de um sobre o outro, ou o extermínio de um pelo outro, não pode livrar o mundo da exploração e das crueldades repressivas. Enquanto não entendermos as verdadeiras relações entre o indivíduo e o grupo, e sua função verdadeira no coletivo, haverá um contínuo estado de guerra. Para mim, esta distinção entre indivíduo e grupo é artificial e falsa, ainda que ela tenha assumido uma realidade. Enquanto nós não entendermos verdadeiramente, como a consciência de grupo veio a existir e quem é o indivíduo e qual sua função, haverá um atrito contínuo.

Antes de responder às questões desta noite, eu quero tentar explicar o que quero dizer com indivíduo. A consciência de grupo nada mais é que a expansão da consciência do indivíduo, portanto vamos nos preocupar com o pensamento e a ação do indivíduo. Ainda que, o que eu vou dizer possa parecer novo a vocês, por favor, examine-o sem preconceito.

O indivíduo é o resultado do passado que expressa-se a si mesmo por meio do ambiente presente – o passado sendo o herdado, o incompleto, e o presente, o qual é criado pela incompletude. O passado não é nada a não ser pensamento, emoção e ação incompleta – isto é pensamento, emoção ou ação condicionada e limitada pela ignorância.

Para colocar de outro modo, se uma pessoa desenvolveu certa experiência por meio de tradições, por meio do ambiente econômico, por meio da hereditariedade, por meio do treinamento religioso, e está tentando expressar-se através dessa experiência que é limitada, naturalmente suas ações, pensamentos e sentimentos devem ser limitados, condicionados. Isto é, sua mente é pervertida, distorcida pelo seu passado, e com essa limitação ele tenta viver a vida e entender suas experiências. Portanto, ignorância é a acumulação dos resultados da ação através dos muitos obstáculos, cujos significados o indivíduo não entendeu completamente. Estes obstáculos foram construídos pela mente para sua própria autoproteção.

Cada um está constantemente procurando e criando segurança para si próprio, e portanto toda sua reação para a vida é aquela de autodefesa contínua. Enquanto a mente e o coração estiverem procurando medidas para se protegerem, por meio de ideais e valores defensivos, haverá ignorância, a qual impede a mente de agir inteiramente, completamente. E assim ela desenvolve sua própria particularidade que nós chamamos de individualidade, a qual deverá inevitavelmente entrar em conflito com as muitas outras individualidades. Esta é a causa fundamental do sofrimento.

Agora, para mim, o verdadeiro significado da individualidade consiste em libertar a mente de seu passado, de sua ignorância, do seu ambiente limitado. Neste processo de liberação, há o nascimento da verdadeira inteligência, que sozinha libertará o homem do sofrimento, da crueldade e exploração. Portanto quando a mente é livre do hábito e da tradição, de procurar e criar valores para sua própria autoproteção por meio da acumulação, que é ignorância, e ir para a vida completamente, absolutamente nu, livre, somente então haverá o discernimento duradouro do que é verdade.

Interrogante: É possível viver sem exploração, individual e comercial?

Krishnamurti: A maioria de nós é tomada pela sensação de posse. Nós desejamos adquirir, e portanto começamos a acumular mais e mais, pensando que pela acumulação encontraremos felicidade, segurança. Enquanto houver desejo de acumular e adquirir, haverá exploração, e podemos libertarmo-nos dessa exploração somente quando começarmos a despertar a inteligência, por meio da destruição dos valores de autoproteção. Contudo, se tentamos meramente descobrir quais são nossas necessidades e limitarmo-nos a elas, então nossa vida torna-se pequena, rasa e sem importância; por outro lado, se vivêssemos inteligentemente, sem acumulações autoprotetoras, então não haveria exploração, com suas muitas crueldades. Tentar resolver este problema meramente controlando as condições econômicas do homem ou pela mera renúncia, parece para mim, uma abordagem errada a esse problema complicado. Somente pelo entendimento voluntário e inteligente da futilidade e ignorância da autoproteção haverá libertação da exploração.

Despertar a inteligência é descobrir, através da dúvida e do questionamento, o verdadeiro significado dos valores que adquirimos, das tradições – quer seja religiosa, social ou econômica – pela qual nós herdamos ou conscientemente construímos. Em tal questionamento, se é real e vital, existe a descoberta inteligente das necessidades. Essa inteligência é a garantia da felicidade.

Interrogante: Nós deveríamos quebrar nossa espadas e torná-las arados, mesmo que nosso país seja atacado por um inimigo? Não é nossa obrigação moral defender nosso país?

Krishnamurti: Para mim a guerra é fundamentalmente errada, quer seja defensiva ou agressiva. O sistema de aquisições no qual toda a civilização está baseada cria naturalmente distinções de classe, racial e de nacionalidade, levando inevitavelmente a guerra, que você pode chamar de ofensiva ou defensiva de acordo com os ditames de líderes comerciais e políticos. Enquanto esse sistema econômico explorador existir, haverá guerra. E o indivíduo que confronta-se com o problema da obrigação de lutar ou não, decidirá de acordo com sua ambição de posse, a qual ele algumas vezes chama patriotismo, ideal e assim por diante. Ou, entendendo que todo este sistema deve inevitavelmente levar à guerra, ele, como indivíduo, começará a libertar-se inteligentemente desse sistema. E esta é exclusivamente para mim a verdadeira solução.

Pela nossa ambição de posse, nós construímos por muitos séculos esse sistema de exploração esmagador, que está destruindo toda nossa sensibilidade, nosso amor ao próximo. E quando nós perguntamos, “Nós não deveríamos lutar por nosso país, não é essa nossa obrigação moral?” há alguma coisa inerentemente errada, algo fundamentalmente cruel na própria pergunta. Para ser livre dessa extrema estupidez – a guerra – o homem tem que reaprender a pensar desde os primórdios. Enquanto a humanidade estiver dividida por religião, por sectos, por crenças, por classes, por nacionalidades, haverá guerra, haverá exploração, haverá sofrimento. Somente quando a mente começar a libertar-se, ela mesma, dessas limitações, somente quando a mente fluir, por si mesma para o coração, então haverá inteligência verdadeira, a qual sozinha é a solução duradoura para as bárbaras crueldades dessa civilização.

Interrogante: Como podemos ajudar a humanidade a entender e viver seus ensinamentos, da melhor maneira possível?

Krishnamurti: Isso é muito simples: vivendo-os você mesmo. O que é que estou ensinando? Eu não estou lhe oferecendo um novo sistema, ou um novo conjunto de crenças; mas eu diria, olhe para a causa que gerou esta exploração, falta de amor, medo, guerras contínuas, ódio, distinção de classes, divisão do homem contra o homem. A causa é, fundamentalmente, o desejo da parte de cada um de proteger-se por meio do desejo de adquirir, por meio do poder. Todos nós desejamos ajudar o mundo, mas nós nunca começamos com nós mesmos. Queremos reformar o mundo, mas a mudança fundamental deve primeiro acontecer em nós mesmos. Portanto, comece a libertar a mente e coração desse senso de possessividade. Isto demanda não apenas renúncia, mas discernimento, inteligência.

Interrogante: Qual é sua atitude em relação ao problema do sexo, que exerce tal parte dominante em nossa vida diária?

Krishnamurti: O sexo tornou-se um problema porque não há amor. Não é assim? Quanto nós realmente amamos não há problema, há um ajuste, há um entendimento. Somente quando perdemos o senso de afeição verdadeira, aquele amor profundo no qual não há senso de possessividade que levanta-se o problema do sexo. Somente quando nos rendemos completamente as meras sensações é que surgem os muitos problemas em relação ao sexo. Como a maioria das pessoas perderam o contentamento do pensar criativo, naturalmente elas voltam-se para a mera sensação do sexo que torna-se um problema, corroendo suas mentes e corações. Enquanto você não começar a questionar e entender o significado do ambiente, dos muitos valores que você construiu sobre você mesmo para autoproteção e que está esmagando o pensamento fundamental, criativo, naturalmente você deve recorrer a muitas formas de estimulação. Disso levantam-se problemas inumeráveis para os quais não há solução, exceto o entendimento fundamental e inteligente da própria vida.

Por favor, experimente o que estou dizendo. Comece a descobrir o significado verdadeiro da religião, do hábito, da tradição, desse inteiro sistema de moralidade que está continuamente forçando-o, exortando-o para uma direção particular; comece a questionar seu significado completo sem preconceito. Então você acordará aquele pensamento criativo que dissolverá os vários problemas nascidos da ignorância.

Interrogante: Você acredita em reencarnação? Ela é um fato? Você pode nos dar provas de sua experiência pessoal?

Krishnamurti: A ideia de reencarnação é tão velha quanto as montanhas – a ideia que o homem, por meio de vários renascimentos, passando por inumeráveis experiências, chegará afinal à perfeição, à verdade, à Deus. Agora o que é que renasce, o que é que continua? Para mim, a coisa que supostamente continua não é mais nada que uma série de camadas de memórias, de certas qualidades, certas ações incompletas que foram condicionadas, afetadas pelo medo nascido da autoproteção. Agora, essa consciência incompleta é o que chamamos de ego, o “Eu”. Como eu expliquei no começo, em minha curta palestra inicial, individualidade é a acumulação de resultados de várias ações que foram interrompidas, prejudicadas por certos valores herdados e adquiridos, limitações. Espero que não esteja tornando isso muito complicado e filosófico, tentarei deixar mais simples.

Quando você fala do “Eu”, você refere-se a um nome, uma forma, certas ideias, certos preconceitos, certas distinções de classes, qualidades, preconceitos religiosos, e assim por diante, os quais desenvolveram-se por meio da autoproteção, segurança, conforto. Então, para mim, o “Eu”, baseia-se em uma ilusão, não tem realidade. Portanto, a questão não é se existe reencarnação, se existe a possibilidade de um crescimento futuro, mas se a mente e o coração podem se libertar dessa limitação do “Eu”, o “meu”.

Você pergunta-me se eu acredito em reencarnação ou não, porque você espera que por meio de minha garantia você possa adiar o entendimento e a ação no presente e que você irá eventualmente, realizar o êxtase de vida ou imortalidade. Você quer saber se, estando forçado a viver em um ambiente condicionado com oportunidades limitadas, você ultrapassará esta miséria e conflito e virá a realizar o êxtase de vida, imortalidade. Como está ficando tarde eu tenho que colocar isso rapidamente, e espero que você pense a respeito.

Agora, eu digo que há imortalidade, para mim é uma experiência pessoal; mas ela somente pode ser realizada quando a mente não está olhando para um futuro na qual ela viverá mais perfeitamente, mais completamente, mais ricamente. Imortalidade é o presente infinito. Para entender o presente com seu significado completo, rico, a mente precisa libertar-se do hábito da aquisição autoprotetora; somente quando há uma nudez absoluta haverá imortalidade.

Interrogante: Para que nós possamos alcançar a verdade, devemos trabalhar sozinhos ou coletivamente?

Krishnamurti: Se eu posso sugerir, deixe a questão da verdade de lado; antes vamos considerar se é inteligente trabalhar para o ganho individual ou coletivo. Por séculos cada um pensou em sua própria segurança, e assim temos sido impiedosos, agressivos, exploradores, portanto criando confusão e caos. Considerando tudo isso, você, o indivíduo, voluntariamente começará a trabalhar para o bem estar do todo. Nesse ato voluntário, o indivíduo nunca tornar-se-á mecânico, automático, um mero instrumento nas mãos do grupo; portanto, nunca haverá conflito entre o grupo e o indivíduo. A questão da expressão criativa individual como oposto, e em conflito com o grupo desaparecerá somente quando cada um agir integralmente na completude do entendimento. Isso exclusivamente trará cooperação inteligente na qual compulsão, tanto por medo ou cobiça não terá lugar. Não espere ser dirigido para agir coletivamente, mas comece a acordar aquela inteligência, despojando-se de toda estupidez aquisitiva, e então haverá a alegria do trabalho coletivo.

17 de abril de 1935.