Segunda Palestra no Town Hall

Nova Iorque

Amigos,

Antes de responder algumas perguntas que me foram enviadas, gostaria de dizer que aquilo que tenho falado e o que vou dizer não é um novo brinquedo intelectual, nem um novo conjunto de teorias a respeito das quais podemos debater para mero estímulo intelectual; nem pretende oferecer uma nova sensação para uma emoção já gasta. O verdadeiro e profundo significado de seu propósito só é descoberto quando você o experimenta; de outro modo, isto não terá nenhum valor num mundo onde há constante conflito.

Para fazer um experimento, a pessoa tem que começar com ela mesma. Afinal, você não pode começar experimentando com o outro. Você não saberá o resultado ou o significado desse experimento se não testá-lo por si mesmo. Assim, em vez de considerar seu vizinho, você deveria começar a descobrir como experimentar verdadeiramente com você mesmo. Para ajudar o mundo a pessoa deve começar consigo mesma. Se a pessoa puder realmente experimentar consigo mesma de modo que haja um constante ajustamento, não o ajustamento a uma autodisciplina estereotipada, não seguir cegamente um padrão, não a prática incessante de uma ideia, então tal experimento em viver gerará uma mudança significativa na ação, na conduta, em todo o ser da pessoa. Eu sugeriria que, em vez de considerar superficialmente as ideias que apresento, você experimente com elas para ver se tem algum valor prático em sua vida diária.

Muitos de nós são criados em certos preconceitos, tradições e medos, forçados pelo ambiente a seguir e obedecer, e através dessa base pensamos e agimos. Esta base se tornou uma parte inconsciente de nós, e a partir deste centro inconsciente começamos a pensar, sentir e agir. Todas as nossas ações, nascidas dessa limitação da mente e coração, naturalmente se tornam mais e mais limitadas, mais e mais superficiais, mais e mais condicionadas. Assim, o ser inconsciente – aqueles pensamentos e sentimentos habituais que não questionamos ou compreendemos – ficam continuamente pervertendo, interferindo e obscurecendo as ações conscientes. Se nós não compreendermos e, assim, nos libertarmos dessa base com a qual crescemos, naturalmente esses preconceitos, esses medos estarão continuamente interferindo e condicionando o consciente. Consciência é ação, é discernimento. Então nossa ação vai sendo continuamente limitada, condicionada pelo medo, pela tradição. Em vez de nos libertar a ação aumenta nosso conflito, nossos problemas, e viver se torna nada mais que uma série de conflitos, uma série de lutas.

Para fugir destas lutas, criamos certas ilusões como escapes, que se tornaram realidades para nós. Ou seja, temos inumeráveis problemas e conflitos, e para fugir deles estabelecemos certos escapes regulares, reconhecidos. Estes escapes são a religião organizada, a ambição, estabelecer e seguir uma tradição, e as muitas fugas através da sensação.

Se você está consciente de suas ações, perceberá que é isto que acontece com a maioria de vocês: que você funciona através de uma base estabelecida de tradição, ou de medo, e assim, aumenta seu conflito, suas lutas. Em vez de se libertarem pela ação, vocês estabelecem vários escapes ou fugas, e elas se tornam tão reais, tão exigentes, que a mente acha imensamente difícil se libertar delas.

Libertarem a vocês mesmos da causa da ação limitada crescente, ou seja, do inconsciente, não é mergulhar no passado, mas estar cônscio na ação no presente. Em vez de olhar para ver se vocês são escravos da tradição, do medo, do preconceito, fiquem totalmente conscientes em sua ação, e nessa chama de consciência a causa da limitação, tal como o medo, se revelará. Ou seja, se você está totalmente desperto, totalmente consciente na ação que exige seu ser completo, então perceberá que todas estas perversões ocultas, inconscientes, brotam e impedem sua ação total, completa. Aí é a hora de lidar com elas, e se a chama da consciência for intensa, essa chama consome estas causas limitadoras.

Em vez de seguir um padrão, uma linha de ação determinada, que, novamente, vai mutilar o pensamento e a emoção, se a pessoa estiver totalmente consciente no momento da ação – e isso só pode ocorrer quando o pensamento e o sentimento são intensos – então as profundezas ocultas e inexploradas da consciência da pessoa se revelam. Por outro lado, se você meramente examina o inconsciente através da auto-análise, descobrirá que suas ações se tornam mais e mais restritas, mais e mais superficiais perdendo, assim, sua significação, sua profundidade, e a vida se torna vazia e superficial. Se você começar a se conscientizar, a lidar com a questão integralmente, como um todo, completamente, então verá como se insinuam em sua mente todos os vários condicionamentos, os pensamentos defensivos, herdados ou adquiridos. Então você descobrirá – se realmente experimentar isto – que a mente e o coração não estão em conflito, não estão em contradição um com o outro, mas são a própria fonte, a origem disso que você busca, esse êxtase criativo, a verdade.

Em vez de buscar a paz, a felicidade – ou tentar descobrir o que é a verdade ou a imortalidade, ou se existe Deus – se, na chama da conscientização, a mente e o coração podem libertar-se de medo, preconceito, perversões, causas condicionadas, então essa conscientização é o real êxtase da vida, da verdade.

Interrogante: O que a pessoa deveria fazer para se libertar da solidão e do medo?

Krishnamurti: Primeiro vamos descobrir o que fazemos hoje, e então podemos investigar o que devíamos fazer. Se estamos sozinhos, o que fazemos? Nós tentamos fugir da solidão através de companhia, do trabalho, diversão, adoração, oração, todas as fugas conhecidas e astuciosamente bem estabelecidas. Por que fazemos isto? Nós pensamos que podemos encobrir a solidão com estas fugas, com estas folgas. Podemos nós encobrir aquilo que é inerentemente doentio? Podemos encobrir a solidão momentaneamente, mas ela continua o tempo todo.

Então, onde há fuga, haverá a continuação da solidão. Para a solidão não há substituição. Se pudermos compreender isto com todo nosso ser, completamente, se pudermos compreender que não há possibilidade de fuga da solidão, do medo, então o que acontece? A maioria de vocês não será capaz de responder, porque vocês nunca encararam completamente o problema. Vocês não sabem o que aconteceria se todas as rotas de fuga fossem completamente bloqueadas e não houvesse a menor possibilidade de fuga.

Eu sugiro que vocês experimentem com isso. Quando você está sozinho, esteja completamente cônscio e verá que sua mente quer escapar, quer fugir. Quando a mente está cônscia de que está fugindo, e ao mesmo tempo percebe o absurdo da fuga, nessa compreensão a solidão verdadeiramente desaparece. Por favor, quando você for confrontado com um problema e não houver possibilidade de saída, então o problema cessa, o que não significa a aceitação dele. Agora você está buscando um remédio para a solidão, uma substituição, e, portanto, o problema não é o significado da solidão mas qual é o remédio para a solidão, qual o melhor caminho para fugir dela ou encobri-la. Mas quando a mente não está mais buscando uma fuga, então a solidão ou o medo têm um significado muito diferente.

Agora, você não pode aceitar o que eu digo: tudo o que pode dizer é que não sabe. Você não sabe se a solidão e o medo desaparecerão, mas experimentando, compreenderá toda a significação da solidão. Se nós simplesmente buscarmos um remédio para a solidão ou o medo, nos tornaremos muito superficiais, não é? Para o homem que tem tudo que quer, ou o homem que tem tudo, a vida se torna muito superficial. Simplesmente buscando remédios, a vida se torna sem sentido, vazia; ao contrário, se você é confrontado com um problema ardente e não há possibilidade de fuga, então verá que esse problema faz uma coisa milagrosa em você. Não é mais simplesmente um problema; ele é intensamente vital, tem que ser examinado, tem se que viver com ele, compreendê-lo.

Interrogante: Você acha que devemos nos comprometer na vida diária?

Krishnamurti: Você considera que existe possibilidade de se comprometer à guerra e à paz? Ou seja, se você realmente pensa que a guerra – matar por alguma razão patriótica ou por qualquer outra razão – está fundamentalmente errada, acha que poderia se comprometer a criar ou tomar parte na guerra? Do mesmo modo, entre ganância e não-ganância, você acha que pode haver algum comprometimento?

Existe comprometimento se você é num momento ganancioso e no seguinte é não-ganancioso. Se a pessoa não é gananciosa, se não está realmente buscando aquisição, se a pessoa não é levada por isto, então não há comprometimento. Mas quando você é possessivo e vai sendo levado pelas circunstâncias, por ideias e ideais, a ser não-ganancioso, então você começa a se comprometer, começa a buscar o melhor e menos doloroso meio de se adaptar. Se você está realmente livre da ganância, embora possa viver neste mundo de posses, não há comprometimento. Você tem que descobrir se você é ganancioso. Isto é muito simples. Para fazer isto, não comece a analisar suas ações, o que apenas levará à limitação da ação, mas esteja totalmente cônscio no momento da própria ação.

O tempo não vai lhe dar liberdade da ganância. Ou seja, você não pode aprender a não-ganância com o adiamento para um futuro; você só pode se libertar da ganância no presente, e não no final. Você só pode discernir sua seu significado agora, instantaneamente. Mas, como não queremos discernir imediatamente, dizemos, nos iludindo, que aprenderemos a não-ganância mais tarde, nos próximos anos. Só no presente podemos compreender a estupidez da ganância, e não no futuro. A liberdade da ganância não é o resultado do crescimento evolucionário lento da mente e do coração.

Um amigo meu se tornou sacerdote a cerca de dez anos atrás. Ele me disse outro dia que levou dez anos para ver a tolice de sua atitude. Imaginei se ele tinha – ou estava tão empolgado por seus desejos, suas emoções, seus medos, pelas tradições, e não foi capaz então de pensar claramente, e começou a pensar claramente somente quando estava desiludido? Aconteceu que ele foi levado e influenciado pelo medo, pela autoridade, pela tradição. Se ele estivesse totalmente cônscio no momento de sua decisão, não teria levado dez anos para descobrir a tolice de sua atitude.

A pergunta é: deveria haver comprometimento? Naturalmente, há comprometimento quando você é ganancioso e ao mesmo tempo não quer ser ganancioso. Nesse conflito de opostos deve haver comprometimento. Não há solução para isso, e quando a vida se torna um contínuo conflito entre opostos, então é uma luta sem significado e estúpida. Mas se você verdadeiramente discernir todo o significado da ganância, então nessa liberdade existe riqueza, a eterna beleza da vida.

Interrogante: Você diz que a memória é uma barreira. Por quê?

Krishnamurti: Qualquer coisa que percebemos diretamente, compreendemos diretamente, ela não deixa cicatrizes na mente. Se você vive uma experiência integralmente, embora possa relembrar o incidente, isto não produzirá aquelas reações para autodefesa a que você está acostumado. Se eu tenho uma experiência cujo significado não compreendi completamente, então a mente se torna um centro de conflito e este conflito continua até eu compreender aquela experiência integralmente. Enquanto a mente estiver sobrecarregada com estes conflitos, ela não é mais do que um depósito de reações defensivas, chamadas memórias, e com tais memórias protecionistas abordamos a vida, criando assim uma barreira entre a vida e nós mesmos, de onde surge todo conflito, medo e sofrimento. É isto que fazemos a maior parte do tempo. Em vez de ficar nesse estado de vazio criativo, a mente se torna meramente um depósito de memórias defensivas. Este fardo de reações defensivas nós chamamos “Eu”, essa consciência limitada.

Com essa consciência limitada, que não é mais do que camadas de memórias invulneráveis, autoprotetoras, você aborda a vida e todas as suas experiências. As experiências, em vez de dissiparem estas muitas camadas e, assim, liberarem a força criativa da vida, simplesmente criam e adicionam mais memórias defensivas, e assim a vida se torna um conflito continuado, confusão e sofrimento. Em vez de estar completamente vulnerável à vida, estar completamente vazio – não no sentido negativo da palavra – estar totalmente sem autodefesa, a mente se tornou uma máquina de alarme, de direção, para proteger e defender a si mesma. Para mim, tais memórias defensivas, autoprotetoras são barreiras fundamentais, pois impedem a completa fruição da vida, que é a verdade.

Considere por você mesmo como sua mente não é vulnerável. Completa vulnerabilidade é sabedoria. Quando você tem uma experiência, observe o que acontece. Todos os seus preconceitos, suas memórias, suas respostas defensivas aparecem e lhe dizem como agir, como se conduzir. Então você já preparou sua mente para como lidar com o novo, o vivo. Afinal, para compreender a verdade, Deus, o desconhecido, ou que nome você queira dar a isto, mente e coração devem chegar despreparados, inseguros. Na vitalidade da insegurança está o eterno. Protegendo a vocês mesmos, vocês construíram seguranças astuciosas, memórias sutis, e é preciso grande inteligência para se libertar delas. Você não pode afastá-las ou tentar esquecê-las; você só pode descobrir estas barreiras na completa conscientização da própria ação.

Você me ouvir deve ser também uma experiência. Se você está realmente interessado e desperto para o que estou falando, verá que está chegando nisto com todos os tipos de objeções. Você não aborda abertamente, com o desejo de descobrir, experimentar. Só quando a mente e o coração estão flexíveis, alertas, e não são escravos de teorias, certezas, garantias, você começa a descobrir as barreiras de memórias como autoprotetoras, a reação defensiva. Estas cicatrizes, que chamamos memórias, ficam continuamente entre o movimento da vida, que é eterno, e nós mesmos, causando conflito, sofrimento.

Interrogante: Como posso despertar a inteligência?

Krishnamurti: Por que você quer despertar a inteligência? Você pode realmente despertar a inteligência, ou a mente se despe da estupidez e assim se descobre inteligente? Por favor, veja o significado da pergunta. O interrogante quer saber o que ele deveria fazer para despertar a inteligência. Ele quer saber o método, a maneira, a técnica. Quando a mente deseja saber “como”, ela está realmente buscando um sistema definido, e se torna então escrava desse sistema. Por outro lado, se você começa a descobrir por si mesmo o que é estúpido, então a mente fica perfeitamente, delicadamente alerta. É na descoberta e compreensão da estupidez, e abstendo-se dela, que há o verdadeiro despertar da inteligência.

Quando você pergunta, “Como despertar a inteligência?”, está realmente pedindo por regras e regulamentações, de modo que possa forçar sua mente ao longo de uma rota particular. Você chamaria isto de um modo positivo de lidar com a vida, dizer a você exatamente o que fazer. Isto é realmente uma negação do pensamento, tornar você escravo de certo sistema. Por outro lado, se você realmente começasse a se conscientizar de seu ambiente, passado e presente, de seu próprio pensamento, suas próprias ações, então ao descobrir o que é estupidez, despertaria verdadeira inteligência. Definições de inteligência tendem a escravizar a mente e o coração.

Podemos descobrir por nós mesmos a estupidez; não é preciso fazer uma lista completa das coisas estúpidas. Podemos descobrir por nós mesmos a verdadeira causa da estupidez. Se pudermos fazer isso, então não precisamos de um inventário da estupidez.

Qual é a causa da estupidez? Todo pensamento, emoção e ação nascidas da consciência limitada, do “Eu”, dá ensejo à estupidez. Enquanto a mente for meramente uma entidade gananciosa, autoprotetora, qualquer ação nascida daí levará à confusão e sofrimento.

Interrogante: O que exatamente você quer dizer com ambiente?

Krishnamurti: Existe um ambiente externo, como o país, o lugar, a classe, e assim por diante; e existe o ambiente interno da tradição, das ideias herdadas e adquiridas. Então podemos dividir o ambiente em externo e interno, mas realmente não existe tal divisão definida, já que os dois estão intimamente entrelaçados.

Tome, por exemplo, uma pessoa nascida na Índia. Ela é criada em um certo sistema religioso, com muitas crenças, com preconceitos de castas, com vantagens sociais e econômicas e incapacidades, e assim por diante. Com essa base herdada, ela desenvolve mais condicionamento da mente e no coração. Ela não apenas herdou de seus pais, de sua religião, de seu país e sua raça certo condicionamento, mas também vai acrescentando suas próprias reações, suas próprias memórias, preconceitos, baseados em seu conteúdo herdado.

O conteúdo de preconceitos herdados e adquiridos está o tempo todo com ela, pensamentos herdados e adquiridos, medos, desejos, anseios, esperanças, memórias. Tudo isso constitui o ambiente. Com esse conteúdo, com essa mente condicionada, a pessoa aborda a vida; ela tenta compreender este constante movimento da vida. Ou seja, de um ponto fixo, ela tenta encontrar a vida que está eternamente acenando. Naturalmente, então, deve haver conflito entre esse ponto fixo e essa coisa que está sempre viva, mudando. Onde existe conflito, existe o desejo de alivío, fuga; e a religião se torna uma das reações de defesa contra a inteligência. As religiões, a consciência de classes, a ganância, todas se tornam vias de escape, os abrigos para o conflito que resulta entre aquele ponto fixo ou preconceito – memórias, medos, a consciência limitada, o “Eu” – e o movimento da vida.

Pode haver verdadeira compreensão, real alegria de viver, apenas quando existe completa unidade ou quando não existe mais o ponto fixo, ou seja, quando mente e coração podem seguir livremente e suavemente os caminhos da vida, da verdade. Nisso existe êxtase. Isso é imortalidade.

Enquanto a pessoa não discernir o verdadeiro significado do ambiente, a mente e o coração ficam nesse ponto fixo de consciência limitada. Daí brota o conflito e o sofrimento, a batalha constante entre aquele ponto fixo e o eterno movimento da vida. Daí nasce uma reação defensiva contra a vida, contra a inteligência. A vida se torna uma série de conflitos e relaxamentos. Você se rodeou tão completamente com estas ilusões, com estas fugas, que para você elas se tornaram realidades com as quais você espera ter felicidade e paz, mas elas não podem lhe dar isto. Através de contínua conscientização, pela penetração, pela constante vigilância da mente, questionando, duvidando, as paredes desse ponto fixo de consciência, esse centro com suas ilusões, devem se gastar. Só então existe imortalidade.

Para compreender a imortalidade, a vida, é preciso grande inteligência, não algum misticismo estúpido. É preciso incessante discernimento, que só pode existir quando há constante penetração, desfazer as paredes da tradição, da ganância, as reações de autoproteção. Você pode fugir por alguma ilusão a que chama de paz, de imortalidade, Deus, mas isto não tem realidade, pois haverá ainda dúvida, sofrimento. Mas o que libertará a mente e o coração do sofrimento, das ilusões, é a completa consciência do eterno movimento da vida. Isto só pode ser discernido quando a mente estiver livre desse centro, daquele centro fixo de consciência limitada.

13 de março de 1935.