Décima Primeira Palestra em Oak Grove

Ojai, Califórnia

O que nós chamamos de alegria ou êxtase é, para mim, pensar criativo. E pensar criativo é o movimento infinito de pensamento, emoção e ação. Ou seja, quando o pensamento, que é emoção, que é ação em si, está desimpedido em seu movimento, não é compelido ou influenciado ou limitado por uma ideia e não vem da base da tradição ou do hábito, então esse movimento é criativo. Enquanto o pensamento – e não repetirei toda hora emoção e ação – enquanto o pensamento está circunscrito, preso a uma ideia fixa, ou meramente se ajusta a um fundo ou condição e, assim, se torna limitado, tal pensamento não é criativo.

Assim, a pergunta que toda pessoa ponderada se faz é como ela pode despertar este pensar criativo, porque quando há este pensar criativo, que é movimento infinito, então não pode haver ideia de uma limitação, um conflito.

Ora, este movimento de pensar criativo não busca em sua expressão um resultado, uma aquisição; seus resultados e expressões não são seu ápice. Ele não tem ápice ou meta, pois está eternamente em movimento. A maior parte das mentes busca um ápice, uma meta, uma aquisição, e se molda à ideia de sucesso, e tal pensamento, tal pensar está sempre se limitando. Ao contrário, se não existe ideia de aquisição, mas só o contínuo movimento de pensamento como compreensão, como inteligência, então esse movimento de pensamento é criativo. Ou seja, o pensar criativo cessa quando a mente está incapacitada pelo ajustamento através de influência, ou quando ela funciona com o fundo da tradição que ela não compreendeu, ou de um ponto fixo, como um animal amarrado a um poste. Enquanto esta limitação, esse ajustamento existir, não pode haver pensamento criativo, inteligência, que é liberdade.

Este movimento criativo de pensamento nunca busca um resultado ou chega a um ápice, pois resultado ou ápice são sempre resultado da alternância de cessação e movimento, ao passo que se não há procura de resultado, mas apenas contínuo movimento de pensamento, então isso é pensar criativo. Novamente, o pensar criativo está livre da divisão que cria conflito entre pensamento, emoção e ação. E a divisão só existe quando existe a procura de uma meta, quando há ajustamento e a complacência da certeza.

Ação é este movimento que, em si mesmo, é pensamento e emoção, como expliquei. Esta ação é a relação entre o indivíduo e a sociedade. É conduta, trabalho cooperativo, que chamamos de realização. Ou seja, quando a mente está funcionando sem buscar um ápice, uma meta e, portanto, pensando criativamente, esse pensar é ação, que é a relação entre o indivíduo e a sociedade. Ora, se este movimento de pensamento é claro, simples, direto, espontâneo, profundo, então não existe conflito do indivíduo contra a sociedade, pois a ação é a própria expressão deste movimento vivo, criativo.

Assim, para mim não existe arte de pensar, só existe pensar criativo. Não existe técnica de pensar, mas apenas funcionamento espontâneo, criativo da inteligência, que é a harmonia de razão, emoção e ação, não divididas ou divorciadas umas das outras.

Ora, este pensar e sentir sem a procura de um prêmio, um resultado, é experimento verdadeiro, não é? Na verdadeira experimentação, não pode haver a busca de resultado, pois essa experimentação é o movimento do pensamento criativo. Para experimentar, a mente deve estar se libertando continuamente do ambiente com o qual entra em conflito em seu movimento, o ambiente que chamamos de passado. Não pode haver pensamento criativo se a mente está impedida pela busca de um prêmio, pela busca de uma meta.

Quando a mente e coração estão em busca de um resultado ou ganho, por isso complacente e estagnado, deve haver prática, uma superação, uma disciplina, e daí vem o conflito. Muitas pessoas pensam que praticando certa ideia, vão liberar o pensamento criativo. Ora, a prática, se você observá-la, ponderá-la, não é nada mais que o resultado da dualidade. E uma ação nascida desta dualidade perpetuará essa distinção entre mente e coração, e tal ação se torna meramente a expressão de uma conclusão calculada, lógica, autoprotetora. Se existe esta prática da autodisciplina, ou desta contínua dominação ou influência das circunstâncias, então a prática é meramente uma alteração, uma mudança em direção a um fim; é meramente ação dentro das fronteiras do pensamento limitado que você chama de autoconsciência. Portanto, a prática não produz pensamento criativo.

Pensar criativamente é gerar harmonia entre mente, emoção e ação. Ou seja, se você está convencido de uma ação, sem a busca de um prêmio no final, então essa ação, sendo resultado de inteligência, libera todas as obstruções que aconteceram na mente pela falta de compreensão.

Receio que você não esteja percebendo isto. Quando eu apresento uma nova ideia pela primeira vez e você não está acostumado a ela, naturalmente acha muito difícil compreender, mas se for ponderá-la, verá sua significação.

Onde mente e coração estão presos pelo medo, pela falta de compreensão, pela compulsão, tal mente, embora possa pensar dentro das fronteiras, dentro das limitações desse medo, não está realmente pensando, e sua ação deve sempre lançar novas barreiras. Portanto, sua capacidade de pensar está sempre sendo limitada. Mas se a mente se liberta pela compreensão das circunstâncias e age, então essa própria ação é pensamento criativo.

Interrogante: Por favor, você poderia dar um exemplo do exercício prático de constante vigilância e escolha na vida cotidiana?

Krishnamurti: Você faria essa pergunta se houvesse uma cobra venenosa em seu quarto? Aí você não perguntaria “Como vou me manter desperto? Como ficar intensamente vigilante?” Você faz essa pergunta apenas porque não está certo de que há uma cobra venenosa em seu quarto. Ou você está completamente inconsciente dela, ou quer brincar com essa cobra, quer apreciar sua dor e seus encantos

Por favor, acompanhe isto. Não pode haver consciência, essa vigilância de mente e emoção, enquanto a mente está ainda presa em dor e prazer. Ou seja, quando uma experiência lhe causa dor e ao mesmo tempo prazer, você não faz nada a respeito dela. Você só age quando a dor é maior do que o prazer, mas se o prazer for maior, você não faz absolutamente nada. Porque não há um conflito agudo. Apenas quando a dor supera o prazer, é mais aguda do que o prazer, você demanda uma ação.

A maioria das pessoas espera pelo aumento da dor antes de agir, e durante este período de espera, elas querem saber como estar vigilante. Ninguém pode dizer. Elas estão esperando o aumento da dor antes de agir, ou seja, esperam que a dor pela sua compulsão as force a agir, e nessa compulsão não há inteligência. É meramente o ambiente que as força a agir de modo particular, não a inteligência. Portanto, quando a mente está presa nesta estagnação, nessa falta de tensão, haverá, naturalmente, mais dor, mais conflito.

Pela aparência das coisas políticas, a guerra pode irromper outra vez. Pode irromper em dois anos, cinco anos, dez anos. Um homem inteligente pode ver isto e agir inteligentemente. Mas o homem que está estagnado, que espera a dor para forçá-lo a agir, espera maior caos, maior sofrimento para lhe dar ímpeto para agir, sua inteligência não está funcionando. Só existe vigilância quando mente e coração estão alinhados, em grande tensão.

Por exemplo, quando você vê que a possessividade leva a incompletude, quando vê que a insuficiência, a falta de riqueza, a superficialidade deve produzir dependência, quando você reconhece isso, o que acontece com sua mente e coração? O desejo imediato é preencher essa superficialidade mas, fora isso, quando você vê a futilidade da acumulação contínua, começa a ter consciência de como sua mente está funcionando. Você vê que na simples acumulação não pode haver pensamento criativo; e, contudo, a mente persegue a acumulação. Assim, ficando consciente disso, você cria um conflito, e esse próprio conflito dissolverá a causa da acumulação.

Interrogante: De que modo um estadista que compreendeu o que você diz, pode expressá-lo em questões públicas? Ou seria mais plausível que ele se retirasse da política quando compreendesse suas falsas bases e objetivos?

Krishnamurti: Se ele compreendesse o que digo, não separaria política da vida em sua inteireza, e não vejo por que deveria se retirar. Afinal, política hoje é meramente instrumento de exploração; mas se ele considera a vida como um todo, não só política – e por política ele quer dizer apenas seu país, seu povo e a exploração de outros – e vê os problemas humanos não como nacionais, mas como problemas mundiais, não como problemas americanos, hindus ou alemães, então, se ele compreendesse do que estou falando, seria um verdadeiro ser humano, não um político. E para mim, essa é a coisa mais importante, ser um ser humano, não um explorador, ou simplesmente um especialista numa linha particular. Eu tentei explicar isso ontem em minha palestra. Penso que está aí a confusão. O político trata apenas de política; o moralista de moral, o chamado mestre espiritual de espírito, cada um se considerando o especialista e excluindo todos os outros. Toda a nossa estrutura social se baseia nisso, e assim estes líderes dos vários departamentos criam maior devastação e maior miséria. Por outro lado, se nós como seres humanos víssemos a íntima conexão entre tudo isto, entre política, religião, a vida econômica e social, se víssemos a conexão, então não agiríamos separativamente, individualisticamente.

Na India, por exemplo, há milhões de famintos. O hindu que é um nacionalista diz: “Vamos primeiro nos tornar intensamente nacionais, então seremos capazes de resolver este problema da fome”. Ao passo que para mim, a maneira de resolver o problema da fome não é se tornar nacionalista, mas o contrário; a fome é um problema do mundo, e este processo de isolamento aumenta a fome. Assim, se o político trata os problemas da vida humana meramente como político, tal homem cria maior caos, maior confusão, maior miséria; mas se ele considera a totalidade da vida sem diferenciação entre raças, nacionalidades e classes, então ele é um verdadeiro ser humano, embora possa ser um político.

Interrogante: Você disse que, com dois ou três outros que compreendam, você podia mudar o mundo. Muitos acreditam que eles mesmos compreenderam e que há outros também, tais como artistas e homens da ciência e, contudo, o mundo não está mudado. Por favor, fale da maneira pela qual você mudaria o mundo. Não está você agora mudando o mundo, talvez lentamente e sutilmente, mas, no entanto definitivamente, com sua fala, seu viver, e a influência que, indubitavelmente, terá sobre o pensamento humano nos próximos anos? É esta a mudança que você tinha em mente, ou era uma coisa que afetaria imediatamente a estrutura política, econômica e racial?

Krishnamurti: Receio nunca ter pensado na imediação da ação e seus efeitos. Para ter um resultado duradouro, verdadeiro, deve haver por trás da ação grande observação, pensamento e inteligência, e muito poucas pessoas querem pensar criativamente ou se livrarem de influência e tendências. Se você começa a pensar individualmente, será então capaz de cooperar inteligentemente; e enquanto não há inteligência, não pode haver cooperação, mas apenas compulsão e, por isso, caos.

Interrogante: Até que ponto pode uma pessoa controlar suas próprias ações? Se somos, em qualquer época, a soma de nossa experiência prévia, e não existe ego espiritual, é possível para uma pessoa agir de algum outro modo além  daquele determinado por sua herança original, a soma de seu treinamento passado e o estímulo que atua sobre ela na ocasião? Se for assim, o que causa as mudanças no processo físico, e como?

Krishnamurti: “Até que ponto pode uma pessoa controlar suas próprias ações?” Uma pessoa não controla suas próprias ações se ela não compreendeu o ambiente. Assim ela age sob compulsão, a influência do ambiente; tal ação não é absolutamente ação, mas é simplesmente reação ou autoproteção. Mas quando a pessoa começa a compreender o ambiente, vê toda sua significação e valor, então ela é senhora de suas próprias ações, então ela é inteligente; e, assim, não importa a condição, ela funcionará inteligentemente.

Novamente, o que eu disse aplica-se a isto. Ou seja, se ela age meramente a partir do fardo do passado, seja sua herança individual ou racial, tal ação é meramente a reação de medo; mas se ela compreende o subconsciente, isto é, suas acumulações passadas, então ela está livre do passado e, portanto, está livre da compulsão do ambiente.

Afinal, o ambiente é do presente bem como do passado. Não se compreende o presente porque a mente está sombreada pelo passado; e libertar a mente do subconsciente, dos obstáculos inconscientes do passado, não é reduzir a memória ao passado, mas estar totalmente consciente no presente. Nessa consciência, nessa total consciência do presente, todos os obstáculos passados entram em atividade, se movimentam, e nessa movimentação, se você estiver vigilante, verá o completo significado do passado e, consequentemente, compreenderá o presente.

O interrogante quer saber o que produz esta ação, esta ação que é imposta a ele pelo ambiente. Ele age de uma maneira particular, compelido pelo ambiente, mas se ele compreendesse o ambiente inteligentemente, não haveria qualquer compulsão; haveria compreensão, que é a própria ação.

Interrogante: Eu vivo num mundo de caos, politicamente, economicamente e socialmente, preso a leis e convenções que restringem minha liberdade. Quando meus desejos estão em conflito com estas imposições, devo violar a lei e assumir as consequências, ou reprimir meus desejos. Onde, então, em tal mundo, existe alguma fuga da autodisciplina?

Krishnamurti: Falei sobre isto algumas vezes, mas tentarei explicar novamente. Autodisciplina é meramente uma adaptação ao ambiente, gerada pelo conflito. É isso que eu chamo de autodisciplina. Você estabeleceu um padrão, um ideal, o que atua como uma compulsão, e você fica forçando a mente para adaptar-se a esse ambiente, forçando-a, modificando-a, controlando-a. O que acontece quando você faz isso? Você está realmente destruindo a criatividade; está pervertendo, suprimindo a afeição criativa. Mas se você começa a compreender o ambiente, então não há mais repressão ou mera adaptação ao ambiente, o que você chama de autodisciplina.

Então, como você pode compreender o ambiente? Como pode compreender seu completo valor, o significado? O que o impede de ver sua significação? Em primeiro lugar, medo. O medo é a causa da busca por proteção ou segurança, que é ou física, espiritual, religiosa, ou emocional. Enquanto houver essa busca, haverá medo, o que cria uma barreira entre sua mente e seu ambiente e, consequentemente, cria conflito; e esse conflito você não pode dissolver enquanto só estiver preocupado com adaptação, modificação, e nunca com a descoberta da causa fundamental do medo.

Assim, onde existe esta busca por segurança, por uma certeza, por uma meta impedindo o pensar criativo, deve haver adaptação, a chamada autodisciplina, que não é nada mais que compulsão, a imitação de um padrão. Ao contrário, quando a mente vê que não existe tal coisa como segurança na acumulação de coisas ou de conhecimento, então a mente fica liberada do medo, e a mente é inteligência, e aquilo que é inteligência não disciplina a si mesmo. Só existe autodisciplina onde não existe inteligência. Onde existe inteligência, existe compreensão, livre de influência, de controle e dominação.

Interrogante: Como é possível despertar o pensamento em um organismo onde o mecanismo necessário para a apreensão de ideias abstratas está ausente?

Krishnamurti: Pelo simples processo do sofrimento, pelo processo da contínua experiência. Mas veja, nos abrigamos tanto atrás de falsos valores que paramos de pensar realmente, e então perguntamos “O que vamos fazer? Como despertar o pensamento?” Nós cultivamos medos que foram glorificados como virtudes e ideais, atrás dos quais a mente se abriga, e toda ação vem desse abrigo, desse molde. Assim não há pensar. Você tem convenções, e a adaptação da pessoa a estas convenções é chamada de pensamento e ação, o que não é absolutamente pensamento e ação, porque nasceu do medo e, por isso, incapacita a mente.

Como você pode despertar o pensamento? Circunstâncias, ou a morte de alguém que você ama, ou uma catástrofe, ou depressão forçam você ao conflito. Circunstâncias, circunstâncias externas forçam você a agir, e nessa compulsão não pode haver o despertar do pensamento, pois você está agindo pelo medo. E se você começa a ver que não pode esperar que as circunstâncias o forcem a agir, então você começa a observar as próprias circunstâncias; e começa a penetrar e compreender as circunstâncias, o ambiente. Você não espera a depressão para fazê-lo uma pessoa virtuosa, mas liberta sua mente da possessividade, da compulsão.

O sistema aquisitivo se baseia na ideia de que você pode possuir, e que é legal possuir. A posse glorifica você. Quanto mais você tem,  melhor e  mais nobre você é considerado. Você criou esse sistema, e se tornou escravo desse sistema. Você pode criar outra sociedade, não baseada na aquisição, e essa sociedade pode impeli-los como indivíduos a conformar-se com suas convenções, exatamente como esta sociedade os impele a conformarem-se com a aquisição. Qual é a diferença? Nenhuma. Vocês como indivíduos estão meramente sendo forçados pelas circunstâncias ou pela lei a agir numa direção particular e, assim, não existe absolutamente pensamento criativo; ao contrário, se a inteligência está começando a funcionar, então você não é escravo da sociedade, ou da aquisição ou não-aquisição. Mas para libertar a mente deve haver grande intensidade; deve haver contínua vigilância, observação, que ela mesma cria conflito. Esta vigilância produz uma perturbação, e quando há essa crise, essa intensidade de conflito, então a mente, se não estiver fugindo, começa a pensar de uma nova maneira, pensar criativamente, e esse próprio pensar é eternidade.

30 de junho de 1934.