Décima palestra em Oak Grove,

Ojai, Califórnia

Das questões que me foram colocadas, minhas palestras parecem ter criado certa confusão, acho que porque fomos apanhados pelas palavras em si e não fomos profundamente em seus significados ou as usamos como meio de compreensão.

Para mim, existe uma realidade, uma verdade viva imensa; e para compreendê-la, deve haver absoluta simplicidade do pensamento. O que é simples é infinitamente sutil, o que é simples é muito delicado. Há uma grande sutileza, uma sutileza infinita e delicada, e se você usar palavras apenas como um meio de chegar a essa delicadeza, a essa simplicidade de pensamento, então eu temo que você não irá compreender o que eu quero transmitir. Mas se você usasse o significado das palavras como uma ponte para atravessar, então as palavras não virariam uma ilusão onde a mente está perdida.

Eu digo que há uma realidade viva, chamem de Deus, verdade, ou como quiserem, e ela não pode ser encontrada ou percebida através da busca. Onde há o envolvimento da busca, deve haver contraste e dualidade; sempre que a mente está procurando, deve inevitavelmente implicar uma divisão, uma distinção, um contraste – o que não significa que a mente deve estar satisfeita, estagnada. Há aquela atitude sensível, que não é nem contentamento, nem aquele esforço incessante nascido da busca, desse desejo de atingir, de alcançar; e nessa delicadeza de atitude reside a simplicidade, não a simplicidade de ter poucas roupas ou poucos bens. Eu não estou falando de tal simplicidade, que é apenas uma forma crua, mas da simplicidade nascida dessa delicadeza do pensamento, onde não existe busca ou contentamento.

Como eu disse, busca implica dualidade, contraste. Agora, onde há contraste, dualidade, deve haver identificação com um dos opostos, e a partir daí nasce a compulsão. Quando dizemos que estamos procurando, nossa mente está rejeitando algo e buscando um substituto que irá satisfazê-la, criando dualidade, e a partir daí nasce a compulsão. Isto é, a escolha de um é a superação do outro, não é?

Quando dizemos que procuramos ou cultivamos um novo valor, não é nada mais do que a superação daquilo em que a mente já está presa, que é o oposto. Essa escolha é baseada na atração de um ou medo do outro, e esse apego através da atração, ou rejeição através do medo, cria influência sobre a mente. Influência, então, é a negação do entendimento e só pode existir onde há divisão, a divisão psicológica da onde nascem as distinções que chamamos de classe, religião, sexo. Essa dualidade influencia a mente, e por isso uma mente influenciada pela dualidade não consegue entender o significado do ambiente ou o significado da causa do conflito. Essas influências psicológicas são apenas reações aos ambientes daquele centro de consciência do “eu”, de gostar ou não gostar, ou antítese, e naturalmente onde há antítese, opostos, não pode haver compreensão. Dessa distinção surge a classificação das influências como benéficas ou do mal. Assim, enquanto a mente for influenciada – a influência nasce da atração, opostos, antítese – deve haver a dominação ou compulsão do amor, do intelecto, da sociedade, e essa influência é um obstáculo para aquela compreensão que é a beleza, verdade, e amor em si.

Agora, se você pode se tornar consciente dessa influência, então você pode discernir a sua causa. A maioria das pessoas parecem estar conscientes superficialmente, não de forma profunda. Somente quando há consciência de forma profunda na percepção, no pensamento e na emoção, é que você pode discernir a divisão que é criada pela influência, que nega a compreensão.

Interrogante: Após ouvir sua palestra sobre memória, eu perdi completamente a minha, e eu acho que não consigo me lembrar das minhas enormes dívidas. Eu me sinto feliz. Isto é  libertação?

Krishnamurti: Pergunte a pessoa a quem você deve o dinheiro. Temo que haja uma certa confusão em relação ao que eu tenho tentado falar a respeito da memória. Se você depende da memória como um guia para conduzir, como uma forma de atividade na vida, então essa memória deve impedir a sua ação, sua conduta, porque assim essa ação ou conduta é apenas o resultado de cálculos, e, portanto não tem espontaneidade, não tem riqueza, não tem plenitude da vida. Não significa que você deve esquecer as suas dívidas. Você não pode esquecer o passado. Você não pode apagá-lo de sua mente. Isso é uma impossibilidade. Subconscientemente ele vai existir, mas se esse subconsciente, a memória adormecida, está influenciando você inconscientemente, está moldando as suas ações, sua conduta, a sua visão da vida, então essa influência deve sempre criar mais limitações, impondo encargos maiores sobre o funcionamento da inteligência.

Por exemplo, eu recentemente voltei da Índia; eu estive na Austrália e na Nova Zelândia, onde conheci várias pessoas, tive muitas idéias e vi muitas paisagens. Eu não consigo esquecer isso, embora essa memória possa desaparecer. Mas a reação ao passado pode impedir minha total compreensão do presente, pode prejudicar o funcionamento inteligente da minha mente. Isto é, se minhas experiências e lembranças do passado estão se tornando obstáculos no presente através de suas reações, então eu não posso compreender ou viver completamente, intensamente, no presente.

Você reage ao passado porque o presente perdeu seu significado, ou porque você quer evitar o presente; então você volta ao passado e vive naquela sensação emocional, naquela reação de memória que está surgindo, porque o presente tem pouco valor. Então, quando você diz, “Eu perdi completamente a minha memória”, temo que você esteja ajustado somente a um lugar. Você não pode perder a memória, mas vivendo completamente no presente, na plenitude do momento, você se torna consciente de todos os envolvimentos subconscientes da memória, suas esperanças adormecidas e anseios que surgem adiante e o impedem de funcionar de forma inteligente no presente. Se você está consciente disso, se você está consciente do impedimento, consciente de forma profunda, não superficialmente, então, a memória subconsciente adormecida, que não é nada além da falta de compreensão e incompletude da vida, desaparece, e assim você encontra cada movimento do ambiente, cada rapidez de pensamento outra vez.

Interrogante: O senhor diz que o entendimento completo do ambiente externo e interno do indivíduo o liberta da escravidão e tristeza. Agora, mesmo nesse estado, como pode uma pessoa se libertar da tristeza indescritível que na natureza das coisas é causada pela morte de alguém que ele realmente ama?

Krishnamurti: Qual é a causa do sofrimento neste caso? E o que é isso que chamamos de sofrimento? Não é o sofrimento apenas um choque para a mente despertar a sua própria insuficiência? O reconhecimento dessa insuficiência cria o que chamamos de sofrimento. Suponha que você dependa do seu filho, ou do seu marido, ou da sua esposa para satisfazer essa insuficiência, essa incompletude; através da perda dessa pessoa que você ama, cria-se a plena consciência daquele vazio, vácuo, e dessa consciência vem o sofrimento, e você diz, “Eu perdi alguém.”

Assim, através da perda, há, primeiramente, a completa consciência do vazio, o qual você tem cuidadosamente evitado. Conseqüentemente, onde existe dependência deve haver vazio, superficialidade, insuficiência e, portanto, tristeza e dor. Nós não queremos reconhecer isso; nós não vemos que isso é a causa fundamental. Então, começamos a falar, “Eu sinto falta do meu amigo, do meu marido, da minha esposa, do meu filho. Como vou superar essa perda? Como vou superar esse sofrimento?”

Agora, toda superação não é nada além de substituição. Nisso não há entendimento e, portanto pode haver somente mais sofrimento, embora momentaneamente você possa encontrar uma substituição que irá colocar a mente para dormir completamente. Se você não procura uma superação, então você se volta para sessões espíritas, médiuns, ou refugia-se na prova científica de que a vida continua após a morte. Assim, você começa a descobrir vários meios de fuga e substituição, que momentaneamente aliviam você do sofrimento. Enquanto que, se houvesse a cessação desse desejo de superar e se houvesse realmente o desejo de compreender, de descobrir, fundamentalmente, o que causa dor e sofrimento, então você descobriria que enquanto há solidão, superficialidade, vazio, insuficiência, que em sua expressão externa é a dependência, deve haver dor. E você não pode preencher essa insuficiência através da superação de obstáculos, através da substituição, através da fuga ou acumulação, que são apenas a astúcia da mente perdida na busca de ganhos.

O sofrimento é apenas aquela claridade de pensamento e emoção forte, intensa, que força você reconhecer as coisas como elas são. Mas isso não significa aceitação, resignação. Quando você vê as coisas como elas são no espelho da verdade, que é inteligência, então há uma alegria, um êxtase; aí não há dualidade, não há sensação de perda, não há divisão. Eu garanto a você que isso não é teórico. Se você considerar o que eu estou falando agora, com a minha resposta à primeira questão sobre a memória, você verá como ela cria uma dependência cada vez maior, olhar de forma contínua emocionalmente para trás para um evento, reagir a isso, impede a completa expressão da inteligência no presente.

Interrogante: Que sugestão ou conselho você poderia dar para alguém que está impedido por forte desejo sexual?

Krishnamurti: Afinal, onde não há expressão criativa da vida nós damos uma importância excessiva ao sexo, que se torna um problema sério. Portanto, a questão não é qual conselho ou sugestão eu daria, ou como alguém pode superar paixão, desejo sexual, mas como libertar esse viver criativo e não apenas resolver uma parte dele, que é sexo; isto é, como entender o todo, a plenitude da vida.

Agora, através da educação moderna, através das circunstâncias e do ambiente, você é levado a fazer algo que você odeia. Você é repelido, mas é forçado a fazer aquilo por causa da falta de equipamento e treinamento adequados. No seu trabalho você está sendo impedido pelas circunstâncias, pelas condições, de se expressar fundamentalmente, criativamente, e assim deve haver uma saída; e essa saída se torna o problema sexual, ou o problema com a bebida, ou algum problema idiota, fútil. Todas essas saídas se tornam problemas.

Ou você está propenso artisticamente. Há muito poucos artistas, mas você pode estar propenso, e essa inclinação está continuamente sendo pervertida, torcida, frustrada, de modo que você não tem meios de verdadeira auto-expressão, e, portanto, uma importância excessiva é dada para aquelas coisas que deveriam ser normais. Então, até você entender de forma abrangente os seus desejos religiosos, políticos, econômicos e sociais, e seus obstáculos, as funções naturais da vida terão uma importância imensa, e o primeiro lugar na sua vida. Por isso, todos os inúmeros problemas da ganância, da possessividade, do sexo, das distinções sociais e raciais têm sua medida falsa e valor falso. Mas se você tivesse que lidar com a vida, não em partes, mas como um todo, de forma compreensiva, de forma criativa, com inteligência, então você veria que esses problemas, que estão debilitando a mente e destruindo o viver criativo, desaparecem, e assim a inteligência funciona normalmente, e nisso há o êxtase.

Interrogante: Eu tenho tido a impressão que estou colocando as suas ideias em ação; mas eu não tenho alegria em viver, nenhum entusiasmo para nenhuma busca. Minhas tentativas de conscientização não esclareceram a minha confusão, e nem trouxeram alguma mudança ou vitalidade para a minha vida. Minha vida não tem mais o significado para mim agora como tinha quando comecei a ouvi-lo, há sete anos. O que há de errado comigo?

Krishnamurti: Eu me pergunto, em primeiro lugar, se o questionador entendeu o que eu falei antes de tentar colocar minhas ideias em ação. E por que ele deveria colocar as minhas ideias em ação? E o que são as minhas ideias? E por que são minhas idéias? Eu não estou dando-lhe um molde ou um código pelo qual você pode viver, ou um sistema que você pode seguir. Tudo o que eu estou dizendo é que, para viver de forma criativa, com entusiasmo, de forma inteligente, vital, a inteligência deve funcionar. Essa inteligência é pervertida, impedida, pelo que se chama de memória, e eu expliquei o que eu quero dizer com isso, então eu não vou entrar neste assunto novamente. Enquanto houver essa constante batalha para realização, enquanto a mente for influenciada, deve haver dualidade, e, consequentemente, dor, luta; e a nossa busca pela verdade ou pela realidade é apenas uma fuga da dor.

E como eu disse, se torne consciente de que seu esforço, sua luta, sua memórias estão destruindo sua inteligência. Tornar-se consciente não é estar consciente superficialmente, mas investigar toda a profundidade da consciência, de modo que nenhuma reação inconsciente seja deixada. Tudo isso exige pensamento; tudo isto exige um estado de alerta da mente e do coração, não uma mente que está confusa com as crenças, credos e ideais. A maioria das mentes está sobrecarregada com isso e com desejos de obedecer. Conforme você se torna consciente da sua responsabilidade, não diga que você não deve ter ideais, que você não deve crer, e repita todo o resto dos jargões. O próprio” muito” cria outra doutrina, outro credo; apenas tornar-se consciente e na intensidade dessa consciência, na intensidade da percepção, naquela chama você irá criar tal crise, tal conflito, onde o próprio conflito vai dissolver o obstáculo.

Sei que algumas pessoas vêm aqui ano após ano, e eu tento explicar essas idéias de maneiras diferentes a cada ano, mas temo que muito poucas entre as pessoas dizem: ”Ouvimos você durante sete anos.” Quero dizer com pensamento, não mero raciocínio intelectual, o que é nada mais do que cinzas, mas aquele equilíbrio entre emoção e razão, entre afeto e pensamento; e esse equilíbrio não é influenciado, não é afetado pelo conflito dos opostos. Mas se não há nem a capacidade de pensar com clareza, nem a intensidade do sentimento, como você pode despertar, como pode haver equilíbrio, como pode haver este estado de alerta, consciência? Assim, a vida torna-se inútil, fútil, sem valor.

Por isso, a primeira coisa a fazer, se é que posso sugerir isso, é descobrir porquê você está pensando de uma certa maneira, e porque você está sentindo de uma determinada maneira. Não tente alterá-la, não tente analisar seus pensamentos e suas emoções, mas torne-se consciente de porque você está pensando em uma ranhura particular e por qual motivo você age. Embora você possa descobrir o motivo através da análise, embora você possa descobrir algo através da análise, não será real; será real somente quando você estiver intensamente consciente no momento do funcionamento do seu pensamento e da sua emoção, assim você vai ver sua sutileza extraordinária, sua fina delicadeza. Enquanto você tiver um” devo” e um” não devo”, nesta compulsão você nunca vai descobrir aquela rápida mudança de pensamento e emoção. E tenho certeza de que vocês foram educados na escola do ”devo” e” não devo” e, portanto, destruíram o pensamento e o sentimento. Vocês foram amarrados e mutilados por sistemas, métodos, por seus professores. Então deixem todos os ”devo” e ”não devo”. Isso não significa que não haverá licenciosidade, mas tornar-se consciente de uma mente que está sempre dizendo: ” Eu devo,” e ”Eu não devo”. Dessa forma, como uma flor se abre diante de uma manhã, assim que a inteligência acontece, está lá, funcionando, criando compreensão.

Interrogante: O artista é muitas vezes mencionado como a pessoa que tem essa compreensão sobre a qual você fala, pelo menos enquanto trabalha criativamente. Mas se alguém o perturba ou o cruza ele pode reagir violentamente, dando a desculpa de que a sua reação é uma manifestação de temperamento. Obviamente ele não está vivendo completamente no momento. Será que ele realmente entende já ele tão facilmente volta em auto-consciência?

Krishnamurti: Quem é essa pessoa que você chama de artista? Um homem que está em um momento criativo? Para mim ele não é um artista. O homem que apenas em raros momentos tem esse impulso criativo e expressa essa criatividade através da perfeição da técnica, certamente você não iria chamá-lo de artista. Para mim, o verdadeiro artista é aquele que vive completamente, harmoniosamente, que não divide sua arte de viver, cuja vida é essa expressão, seja ela uma imagem, música ou seu comportamento; que não tenha se divorciado de sua expressão em uma tela ou na música ou na pedra da sua conduta diária, a vida diária. Isso exige a maior inteligência, a maior harmonia. Para mim, o verdadeiro artista é o homem que tem essa harmonia. Ele pode expressá-la em telas, ou ele pode falar, ou ele pode pintar; ou ele pode não expressá-la em tudo, ele pode sentir. Mas tudo isso exige esse raro equilíbrio, essa intensidade da consciência e, portanto, sua expressão não está divorciada da continuidade da vida diária.

29 de Junho, 1934.