Mary Cadogan

ESCRITORA, LONDRES, INGLATERRA

EB: Mary, como foi seu primeiro contato com Krishnamurti, e o que os ensinamentos significaram para você?

MC: É interessante discutir isso, porque sou de uma geração que chegou a Krishnamurti de uma nova forma no fim dos anos 1940, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial. Antes disso, sua audiência era majoritariamente teosófica. Pessoas que haviam participado da Ordem da Estrela, principalmente. Após a guerra, de repente, Krishnamurti começou a buscar pessoas mais jovens que não haviam qualquer histórico e que o viam em um contexto completamente novo. Isso foi o lento começo do que viria a se tornar uma explosão de interesse no início dos anos 1960.

Ele esteve nos Estados Unidos durante a guerra, afastado do contato com o público e com os leitores europeus. Nos anos 1940, eu era uma jovem mulher e, como outros que haviam sobrevivido à guerra, tinha uma enorme consciência da vida como algo infinitamente precioso. Nós realmente queríamos descobrir como usufruir dela e não sermos pegos nos terríveis conflitos nacionalistas. Sentia que o que eu estava buscando seria encontrado no campo das religiões, mas eu não saberia dizer exatamente o que era. Eu considerava a religião com a qual eu havia crescido, o Cristianismo, e descobri que, para mim, ela não fornecia todas as respostas.

Era simplesmente o meu condicionamento.

Durante os anos de guerra eu havia percebido que o condicionamento político e religioso era aparentemente um acidente de nascimento, e que deveria haver algo acima e superior às limitadas opiniões ortodoxas recebidas. Se, por exemplo, eu houvesse nascido apenas poucas centenas de quilômetros a leste, eu teria sido alemã, e teria estado “no outro lado” durante o conflito. Eu tinha enorme consciência do histórico cultural do povo judeu, porque uma grande parte deles havia vindo para o sul da Inglaterra como refugiados do nazismo. Havia frequentado a escola com meninas de vários países diferentes que eu nunca haveria conhecido se não fosse pela guerra.

Assim, em meio aos anos 1940, eu estava estudando outras abordagens religiosas, tal como ioga, Ramakrishna Vedanta, e então a teosofia. A teosofia era atraente devido a seu internacionalismo, mas no tocante a mim, parecia muito superficial em algumas de suas explanações místicas. Porém, através dela eu tive contato com os livros de Krishnamurti e, assim que comecei a lê-los, percebi que ali havia algo diferente do que eu conhecia, escrito por alguém que usava as palavras de forma única.

Eu senti isso até nos primeiros trabalhos dele, porque indicavam aquilo que estava além das palavras, que era imensurável. É claro que li seus livros mais recentes também e reagi a eles. Krishnamurti não apenas usa a linguagem de uma maneira extraordinariamente sensível, até mesmo no nível lógico, o que ele disse era inexorável e impossível de negar. No entanto, a priori eu resisti um pouco. Disse a mim mesma, “Esse homem tira nossas muletas antes de nos ensinar a andar.” O que ele realmente faz! Ele falou sobre uma revolução, uma revolução pessoal e individual: uma mudança fundamental de todo valor que já tivemos, inclusive todas aquelas imagens súbitas e muito profundas de si mesmo. Até então minha busca religiosa havia sido de natureza reconfortante, mas de repente, através de Krishnamurti, vi a transparência do indumento complicado que eu havia vestido ao redor de meu ego.

EB: Poderia descrever sua reação quando conheceu Krishnamurti pessoalmente?

MC: Sim. Eu o conheci no início dos anos 1950, quando ele estava palestrando em Londres. Na época eu morava no interior, 80 km de Londres. Quando eu e meu marido ficamos sabendo que ele viria para Londres foi uma forte emoção, mas eu estava bastante confusa com o fato de ver Krishnamurti. Eu tinha uma expectativa de que ele seria bonito e carismático, o que ele era, mas o achei mais austero do que havia imaginado. Eu devo ter tido uma imagem de alguém de quem emanaria um enorme fluxo de calidez e serenidade. Na verdade, ele era enérgico, passional e intenso — mas de alguma forma extremamente firme com seu público.

Ao longo dos anos, desde que o conheci, deparei-me com mais ternura. Também com mais senso de comunicação verdadeiramente individual, de modo que até quando ele estava falando com centenas ou milhares de pessoas, ele ainda conseguia falar como se estivesse na verdade conversando com um amigo. Não penso que ele conseguisse fazer exatamente isso naqueles primeiros anos.

Tive sorte que Doris Pratt, que estava organizando as palestras em Londres, perguntou se gostaríamos de conhecer Krishnamurti após sua palestra, e obviamente eu disse “Sim.” Nós o encontramos em um cômodo pequeno, e então tivemos uma impressão bem diferente dele porque houve todo o aconchego de estar na presença de alguém que nos dá total atenção. Estar no lado receptor disso foi uma experiência profundamente satisfatória. Todos os nuances de exploração do ser humano por outro viravam cinzas na presença dele. Embora houvesse atenção vital, não houve nem remotamente qualquer uso emocional. Isso me intrigou. Eu percebi, mesmo na primeira reunião curta — e desde então senti isso muitas vezes — o quão extraordinariamente aberto ele era. De certa forma, embora ele fosse um homem, ele havia transcendido o masculino ou o feminino.

Ele não era homem ou mulher, leste ou oeste, jovem ou velho. Havia verdadeira universalidade.

EB: Um ser humano que não se enquadra em nenhum tipo de categoria.

MC: Isso mesmo. Suponho que isso possa fazê-lo soar um tanto sem graça e sem características, mas não era assim, de modo algum. Havia enorme vitalidade que eu nunca percebi em nenhuma outra pessoa.

EB: Você falou de uma qualidade diferente, uma alteridade, de certa forma. Como isso se manifestava?

MC: Há muitas anedotas que eu poderia fazer, mas talvez, para mim, isso fosse melhor expresso em sua extraordinária tranquilidade, interioridade e naquela beleza que não era da exteriorização, mas sim de algo que vinha de dentro.

EB: Após esse encontro inicial, qual foi seu próximo contato com ele?

MC: Continuei lendo seus livros — não tínhamos gravações, fitas ou vídeos na época, e quando Krishnamurti vinha a Londres eu frequentemente era convidada para participar de pequenos grupos de discussão com ele (naquela época ele reservava bastante tempo para encontrar pessoas individualmente). Minha questão era que uma parte de mim — de minha mente consciente, intelectual — recusava se calar, e eu sentia que, sem a quietude e os intervalos entre pensamentos que ele havia descrito, eu seria incapaz de continuar o ato de compreensão. Assim, minha pergunta para ele foi, “Por que não consigo ficar em silêncio?” Antes de me encontrar com ele, pensava que essa fosse uma questão valiosa. Eu entrei no cômodo e ele estava sentado lá, parado e em silêncio, em um silêncio quase opressivo. Senti que não podia nem abrir minha boca para fazer uma pergunta! De certo modo, ele já estava fornecendo elementos que eram as “respostas” para minha pergunta. Quando eu finalmente perguntei, ele recebeu a pergunta em total silêncio. Então, um tanto nervosa, porque nem sempre gostamos de sentar em silêncio com outro ser humano, encontrei-me seguindo em frente, tentando elaborar outras perguntas. Novamente, ele pouco respondeu — então eu simplesmente parei. Pensei, “Isso é uma terrível decepção, um total desperdício do meu tempo. Nunca deveria ter pedido para vê-lo. Não estou pronta. Eu deveria simplesmente sair e não voltar.”

Então ele se virou para mim e perguntou, “Agora, sobre o que você realmente queria falar?” Começou a falar um pouco sobre quietação, mas rapidamente se desviou do assunto. O que ele fez, e eu percebi que era seu maior valor, foi simplesmente segurar um espelho para mim. Eu vi a mim mesma de formas que não poderia ver antes disso. E a pergunta que eu havia pensado já não se aplicava mais. Na verdade, não era uma pergunta, e não havia uma resposta. Percebi que eu estava lidando com as coisas de uma maneira que não era produtiva, e isso foi marcante, pois ele havia dito muito pouco.

EB: Como ele segurou um espelho para você? Ele deve ter dito algo que fez você ver a si mesma.

MC: Acho que foi sua quietude total. Esse foi o espelho — e sua escuta criativa. Anteriormente, eu havia buscado uma suposta quietude de maneira artificial.

Então ele fez vários questionamentos que eu considerei irrelevantes, embora eles provavelmente não fossem. Ou talvez fossem para me acalmar. Acho que ele dizia o tempo todo, “Acorde e veja. Você não olhou de verdade para si mesma nos níveis mais profundos.” Ele estava assinalando que o que eu estava realmente fazendo era olhando através de uma tela de imagens.

Tudo o que eu posso dizer é que sai da sala como uma pessoa diferente da que havia entrado. Era como se eu tivesse olhado através de um tipo de espelho de raio X que havia mostrado todas as minhas camadas.

Após isso, senti que meu relacionamento com o que ele dizia se tornou completamente verdadeiro. Em 1958, após conversar com Krishnamurti e Rajagopal (que era responsável pelos escritórios da Krishnamurti Writings, Inc. nos Estados Unidos, na Índia e na Grã-Bretanha), Doris Pratt perguntou se eu aceitaria assumir o escritório de Londres, que era responsável pelo trabalho na Europa,  na Comunidade Britânica de Nações e em muitas outras partes do mundo. Obviamente eu disse que gostaria, mas eu trabalharia principalmente de casa, porque eu tinha que cuidar de meu bebê. Na época, o escritório não era nem de longe tão agitado quanto veio a se tornar pouco tempo depois.

Perguntei a ele se o interesse em seu trabalho, que começou a aflorar nos anos 1960, poderia ter surgido antes. Ele insinuou que a “revolução” aconteceu naquela época porque era quando ela tinha que acontecer. As coisas estavam mudando ao redor de todo o mundo. Muitas das velhas tradições e restrições estavam se rompendo — a forma como as pessoas se vestiam, conversavam, pensavam: a transcendência das amarras da classe social ou das distinções raciais e nacionalistas. A mudança foi desencadeada em parte pela primeira publicação internacional de um livro de Krishnamurti, A Educação e o Significado da Vida, em 1953, seguido por A Primeira e a Última Liberdade. Estes livros e os subsequentes alcançaram um grande público. Muitos dos que compareciam às palestras diziam haver ouvido falar de Krishnamurti pela primeira vez através do livro A Primeira e a Última Liberdade.

Krishnamurti deu um passo decisivo em 1961, quando foram iniciadas suas reuniões internacionais em Saanen, na Suíça. Na época, as decisões de organização (se posso chamá-las assim) não eram discutidas com Krishnamurti. Creio que foi mais ou menos nessa época que ele renunciou ao comitê da Krishnamurti Writings, Inc., mas ele já não era um membro ativo há algum tempo.

EB: Ele estava lá como um líder figurativo?

MC: Ele sentia ser correto que se envolvesse porque, afinal, muito dinheiro e esforço havia sido fornecido em seu nome. Ele havia confiado outros para o trabalho, mas provavelmente começou a perceber de forma mais crítica que ele tinha que participar de forma mais ativa e séria. Porque o trabalho não estava florescendo do modo como se esperava.

Recordo de ter falado para ele bem cedo nos anos 1960, “Gostaria que você se interessasse mais pelo modo como o trabalho é realizado”, e ele deixou claro que pretendia fazê-lo. Devo dizer que ele sempre honrou isso, mesmo em situações muito difíceis ocasionalmente.

Anteriormente, em 1961, ele sugeriu que fizéssemos a reunião internacional na Suíça porque o país era tradicionalmente  neutro. Ele também conhecia e amava o terreno montanhoso da região de Oberland Bernês. Saanen foi estabelecida, e ele trouxe alguns de nós para o comitê nas reuniões de Saanen, que não era diretamente ligada a Krishnamurti Writings, Inc. ou a outras organizações. A reunião anual de várias semanas deu um ímpeto totalmente novo para o trabalho. Ela se originou na Europa porque, na época, não parecia haver muita coisa acontecendo na Califórnia que, alguns anos antes, havia sido o centro do trabalho. As coisas estavam indo bem na Índia no entanto, onde havia escolas da Fundação da Nova Educação, que foi inspirada em Krishnamurti.