4ª palestra em Ojai

 

tradução: João Clemente Moura

 

Pode aquele que é responsável pelos conflitos e sofrimento em si mesmo, e assim no mundo, permitir que a mente-coração seja entorpecida por filosofias e ideias errôneas? Se você, que criou essa luta e sofrimento, não mudar fundamentalmente, poderiam sistemas, conferências e projetos trazer ordem e boa vontade? Não é imperativo que você se transforme? Se você é o mundo, sim. Seus conflitos internos se expressam como desastres externos. O seu problema é o problema do mundo, e só você pode resolvê-lo, não outra pessoa, você não pode delegá-lo a outros. O político, o economista, o reformista é assim como você um elaborador astuto de artifícios; mas o nosso problema, o conflito e a infelicidade dos seres humanos, essa existência vazia que produz desastres tão agonizantes, precisa de algo mais do que artifícios elaborados, mais do que reformas superficiais de políticos e propagandistas. É necessária uma mudança radical da mente humana, e nenhuma outra pessoa pode provocar essa transformação em você, salve a si próprio. O que você é, seu grupo, sua sociedade, seu líder também é. Sem você o mundo não é; em você está o começo e o fim de todas as coisas. Nenhum grupo, nenhum líder pode estabelecer valores eternos, salve a si próprio.

Catástrofes e infelicidade surgem quando valores sensoriais temporários se sobrepõem ao valor eterno. O valor eterno, permanente, não é resultado de crenças; sua crença em Deus não significa que você está vivenciando o valor eterno, seu modo de vida por si só vai te mostrar essa realidade. Opressão e exploração, agressividade e crueldade econômica é o que inevitavelmente ocorre quando perdemos a realidade. Você a perde quando, professando o amor de Deus, você absolve e justifica a matança dos seus semelhantes, quando você justifica assassinato em massa em nome da paz e liberdade. Enquanto você der importância suprema a valores sensoriais, haverá conflito, confusão e tristeza. Matar alguém é algo que nunca pode ser justificado, e nós perdemos a imensa significância do ser humano quando valores sensoriais permanecem predominantes.

Nós teremos infelicidade e tribulações enquanto a religião for organizada para ser uma parte do Estado, a aia do Estado. Ela ajuda a tolerar a força organizada como política do Estado e, assim, encoraja a opressão, a ignorância e a intolerância. Como então a religião aliada ao Estado pode cumprir sua única função verdadeira — a de revelar e manter o valor eterno? Quando a realidade se perde e não é procurada, há desunião e o homem fica contra o homem. A confusão e a infelicidade não serão banidas pelo processo amnésico do tempo, pela reconfortante ideia de evolução, que apenas gera preguiça, aceitação presunçosa e a contínua marcha em direção à catástrofe; não devemos deixar que o curso de nossas vidas seja dirigido por outros, para os outros ou em nome do futuro. Somos responsáveis por nossa vida, não outra pessoa; somos responsáveis por nossa conduta, não outra pessoa; ninguém pode nos transformar. Cada um deve descobrir e vivenciar a realidade, e somente nisso há alegria, serenidade e sabedoria mais elevada.

Como então podemos chegar a essa experiência — através da mudança de circunstâncias externas, ou através da transformação interior? Mudanças externas implicam controle do ambiente por meio de legislação, por meio de reformas econômicas e sociais, por meio do conhecimento dos fatos e melhorias inconstantes, sejam violentas ou graduais. Mas será que a modificação das circunstâncias externas traz transformação interior fundamental? Não seria necessário primeiro haver uma transformação interna para então obter um resultado externo? Você pode, através da legislação, proibir a ambição, pois a ambição gera crueldade, auto-afirmação, competição e conflito. Mas pode a ambição ser arrancada por fora? Suprimida de uma maneira, não se afirmará de outra? O motivo interno, o pensamento-sentimento privado, não determina sempre o exterior? Para uma transformação pacífica externa, não deveria ocorrer primeiro uma profunda mudança psicológica? O exterior, por mais agradável que seja, pode trazer satisfação duradoura?

A aspiração interior sempre modifica o exterior. Psicologicamente, o que você é sua sociedade é, seu estado é, sua religião é; se você é luxurioso, invejoso, ignorante, seu ambiente é o que você é. Criamos o mundo em que vivemos. Para provocar uma mudança radical e pacífica, deve haver uma transformação interna voluntária e inteligente; certamente essa mudança psicológica não deve ser feita compulsoriamente; se for, haverá conflito e confusão internos que atirarão novamente a sociedade no desastre. A regeneração interna deve ser voluntária, inteligente, não forçada. Precisamos primeiro buscar a realidade e só então pode haver paz e ordem em nós.

Quando você aborda o problema da existência a partir do exterior, tem início imediatamente o jogo do processo dual; na dualidade, há conflitos sem fim, e tais conflitos apenas entorpecem a mente-coração. Quando você aborda o problema da existência a partir do interior, não há divisão entre o interior e o exterior; a divisão cessa porque o interior é o exterior, o pensador e seus pensamentos são um, inseparáveis. Mas separamos falsamente o pensamento do pensador e tentamos lidar apenas com uma parte, tentamos educar e modificar a parte, esperando assim transformar o todo. A parte fica cada vez mais separada e, portanto, há cada vez mais conflitos. Portanto, devemos nos preocupar com o pensador que há dentro, e não com a modificação da parte, seu pensamento.

Infelizmente, porém, a maioria de nós está presa entre a incerteza do exterior e a incerteza do interior. É essa incerteza que deve ser entendida. É a incerteza de valor que traz conflito, confusão e tristeza e impede que sigamos um curso claro de ação, seja exterior ou interior. Se seguíssemos o exterior com plena consciência, percebendo todo o seu significado, esse caminho inevitavelmente levaria ao interior, mas infelizmente nos perdemos no exterior, pois não somos suficientemente maleáveis em nossa auto-indagação. Quando você examina os valores sensoriais que dominam nossos pensamentos-sentimentos, e toma plena consciência deles, você percebe que o interior se torna claro. Essa descoberta trará liberdade e alegria criativa. Mas essa descoberta e sua vivência não podem ser feitas para você por outra pessoa. Sua fome será saciada assistindo ao outro comer? Através de sua própria autoconsciência, você deve despertar para os valores falsos e, assim, descobrir o valor eterno. Uma mudança fundamental dentro e fora somente pode existir quando o pensamento-sentimento se desembaraça daqueles valores sensoriais que causam conflito e tristeza.

Interrogante: Nas obras de arte, poesia e música verdadeiramente grandiosas, é expressado e transmitido algo indescritível que parece refletir a realidade ou a verdade ou Deus. No entanto, é fato que, em suas vidas privadas, a maioria daqueles que criaram essas obras nunca conseguiu se libertar do círculo vicioso do conflito. Como se explica que um indivíduo que não libertou a si mesmo é capaz de criar algo que transcende o conflito dos opostos? Ou, para inverter a questão, não precisaríamos concluir que a criatividade nasce do conflito?

Krishnamurti: O conflito é necessário para a criatividade? O que queremos dizer com conflito? Almejamos ser, positiva ou negativamente. Esse anseio constante gera conflito. Consideramos esse conflito inevitável, quase virtuoso; consideramos essencial para o crescimento humano. O que acontece quando você está em conflito? Através do conflito, a mente-coração se torna cansada, entediada e insensível. O conflito fortalece as capacidades de autoproteção, o conflito é a substância sobre a qual o eu prospera. Em sua própria natureza, o eu é a causa de todos os conflitos e, onde o eu está, a criação não está. O conflito é necessário para o ser criativo? Quando você sente esse êxtase criativo e avassalador? Somente quando todo conflito cessa, somente quando o eu estiver ausente, somente quando houver tranquilidade completa. Essa quietude não pode ocorrer quando a mente-coração está agitada, quando está em conflito; isso apenas fortalece o processo de fechamento em si. Como a maioria de nós está em constante luta interior, raramente temos momentos de alta sensibilidade ou quietude e, quando estes ocorrem, são acidentais. Por isso tentamos recapturar aqueles momentos acidentais e somente adicionamos carga à nossa mente-coração com o passado morto.

O poeta, o artista, não passa pelo mesmo processo que nós? Talvez ele seja mais sensível, mais alerta e então mais vulnerável, aberto, mas certamente ele, também, experimenta a criação em momentos de autoabnegação, de autoesquecimento, em momentos de completa quietude. Ele tenta expressar essa experiência no mármore ou na música; mas o conflito não surge ao expressar a experiência, ao aperfeiçoar a palavra, e não no momento da própria experiência? A criação só pode ocorrer quando a mente-coração está quieta, e não presa na rede do devir. A passividade aberta à realidade não é resultado do anseio, com sua vontade e conflito.

Como nós, o artista tem momentos de quietude nos quais a criação é vivenciada; assim ele coloca esses momentos na pintura, na música, na forma. Sua expressão assume grande valor, pois ele a pintou, é sua obra. Ambição e fama se tornam importantes e, em uma luta interminável e estúpida, ele é pego. Ele assim contribui para a infelicidade, inveja, derramamento de sangue, paixão e má vontade do mundo. Ele se perde nessa luta e, quanto mais se perde, mais recua sua sensibilidade, sua vulnerabilidade à verdade. Seus conflitos mundanos obscurecem a clareza alegre, embora sua capacidade técnica o ajude a continuar com suas visões vazias e endurecedoras.

Mas não somos grandes artistas, músicos ou poetas; não temos dons ou talentos especiais; não nos expressamos através do mármore, da pintura ou da grinalda das palavras. Estamos em conflito e tristeza, mas também temos momentos ocasionais de imensidão da verdade. Então nos esquecemos momentaneamente de nós mesmos, mas logo voltamos à nossa turbulência diária, embotando e endurecendo nossa mente-coração. A mente-coração nunca está quieta; se estiver, é o silêncio da fadiga, mas esse estado não é o silêncio do entendimento, da sabedoria. Esse vazio criativo e expectante não é provocado pela vontade ou pelo desejo; surge quando o conflito do eu cessa.

O conflito cessa apenas quando há uma revolução completa no valor, não mera substituição. Somente através da autoconsciência o coração-mente se liberta de todos os valores; essa transcendência de todos os valores não é fácil, não vem com a prática, mas com o aprofundamento da consciência. Não é um presente, um talento de poucos. Todos os que são esforçados e ávidos podem experimentar a realidade criativa.

Interrogante: O presente é um horror trágico sem mitigação. Por que você insiste na ideia de que no presente está o eterno?

Krishnamurti: O presente é conflito e tristeza, com lampejos ocasionais de alegria passageira. O presente costura, indo e voltando, o passado e o futuro, e assim o presente é inquieto. O presente é o resultado do passado, nosso ser é fundado sobre ele. Como você pode entender o passado a não ser através de seu resultado, o presente? Você não é capaz de investigar o passado com qualquer outro instrumento a não ser aquele que você tem, que é o presente. O presente é a porta de entrada para o passado e, se você quiser, para o futuro. O que você é, é o resultado do passado, do ontem, e para entender o ontem, você deve começar com o hoje. Para entender a si mesmo, você deve começar a partir de você como você é hoje.

Sem compreender o presente, que está enraizado no passado, você não entenderá. A infelicidade presente do homem é compreendida quando, através da porta do presente, ele é capaz de estar ciente das causas que a produziram. Você não pode deixar de lado o presente para tentar entender o passado, pois somente através da consciência do presente o passado começa a se desdobrar. O presente é trágico e sangrento; certamente não é negando-o, nem justificando-o, que vamos entendê-lo. Temos que encará-lo como ele é e descobrir as causas que delinearam o presente. A maneira como você considera o presente, a maneira como sua mente está condicionada a ele, revela o processo do passado; se você é preconceituoso, nacionalista, se tem ódio, o que você é agora perverte a sua compreensão do passado; sua paixão, má vontade e ignorância — o que você é agora — corrompe seu entendimento das causas do presente. Ao entender a si mesmo, como você é agora, o tapete do passado se desdobra.

O presente é da maior importância; o presente, embora trágico e doloroso, é a única porta para a realidade. O futuro é a continuação do passado através do presente; através da compreensão do presente o futuro é transformado. O presente é o único momento de entendimento, pois se estende ao ontem e ao amanhã. O presente é o tempo em sua totalidade; na semente do presente estão o passado e o futuro; o passado é o presente e o futuro é o presente. O presente é o eterno, o atemporal. Mas consideramos o presente, o agora, como uma passagem para o passado ou para o futuro; no processo do devir, o presente é um meio para atingir um fim e, assim, ele perde seu imenso significado. O devir cria continuidade, perenidade, mas não é o atemporal, o eterno. O desejo de vir a ser tece o padrão do tempo. Você nunca experimentou, em momentos de grande êxtase, a suspensão do tempo? — não há passado, nem futuro, mas uma consciência intensa, um presente atemporal. Tendo experimentado tal estado, a ganância inicia suas atividades e recria o tempo, lembrando, revivendo, olhando para o futuro em busca de mais experiências, reorganizando o padrão de tempo para capturar o atemporal. Assim, a ganância, o devir, mantêm o pensamento-sentimento na escravidão do tempo.

Portanto, esteja atento em relação ao presente, por mais triste ou agradável que seja; então, ele se desdobra como um processo temporal, e se o pensamento-sentimento puder seguir seus caminhos sutis e tortuosos e transcendê-los, então essa consciência  extensional é o presente atemporal. Olhe apenas para o presente, nem para o passado nem para o futuro, pois o amor é o presente, o atemporal.

Interrogante: Você condena a guerra e, no entanto, não a está ajudando?

Krishnamurti: Não estamos todos nós apoiando este terrível assassinato em massa? Somos responsáveis, cada um, pela guerra; a guerra é um resultado final da nossa vida diária; é trazida à existência através de nosso pensamento-sentimento-ação diário. O que somos em nossas relações profissionais, sociais e religiosas que projetamos; o que somos, o mundo é.

A menos que entendamos as questões primárias e secundárias envolvidas na responsabilidade pela guerra, estaremos confusos e incapazes de nos ver livres do seu desastre. Precisamos saber onde colocar a ênfase, e só então entenderemos o problema. O fim inevitável dessa sociedade é a guerra; ela é voltada para a guerra, sua industrialização leva à guerra; seus valores promovem a guerra. Tudo o que fazemos dentro dos limites da sociedade contribui para a guerra. Quando compramos algo, o imposto vai para a guerra; os selos postais ajudam a sustentar a guerra. Não podemos escapar da guerra, onde quer que você vá, especialmente agora, pois a sociedade é organizada para a guerra total. O trabalho mais simples e inofensivo contribui para a guerra de uma maneira ou de outra. Quer gostemos ou não, pela nossa própria existência, estamos ajudando a manter a guerra. Então, o que devemos fazer? Não podemos nos retirar para uma ilha ou para uma comunidade primitiva, pois a cultura atual está em todo lugar. Então o que nós podemos fazer? Devemos recusar a apoiar a guerra não pagando impostos, nem comprando selos? Essa é a questão principal? Se não for, e se for apenas a secundária, não nos deixemos distrair com ela.

Não seria a questão principal muito mais profunda, aquela da causa da própria guerra? Se pudermos entendê-la, a questão secundária poderá ser abordada através de um ponto de vista diferente; se não entendermos, estaremos perdidos nela. Se pudermos nos libertar das causas da guerra, talvez o problema secundário possa nem surgir.

Portanto, a ênfase precisa estar na descoberta dentro de si da causa da guerra; essa descoberta deve ser feita por cada um de nós, e não por um grupo organizado, pois as atividades em grupo tendem a gerar falta de consideração, mera propaganda e slogans, que apenas criam mais intolerância e conflito. A causa deve ser autodescoberta, e assim, cada um, através da experiência direta, se liberta dela.

Se pararmos para pensar, estamos bem cientes das causas da guerra: paixão, má vontade e ignorância; sensualidade, mundanismo e desejo de fama e continuidade pessoais; ganância, inveja e ambição; nacionalismo com suas soberanias apartadas, fronteiras econômicas, divisões sociais, preconceitos raciais e religião organizada. Não pode cada um de nós estar ciente de sua ganância, má vontade, ignorância e, portanto, libertar-se deles? Nós nos apegamos ao nacionalismo, pois ele é uma saída para nossos instintos cruéis e criminosos; em nome de nosso país ou ideologia, podemos matar ou liquidar impunemente, nos tornar heróis, e quanto mais matamos nossos semelhantes, mais honra recebemos de nosso país.

Agora, não seria nossa libertação da causa do conflito e da tristeza a questão principal? Se não enfatizarmos isso, como a solução dos problemas secundários poderá interromper a guerra? Se não erradicarmos as causas da guerra em nós mesmos, de que vale alterar os resultados externos de nosso estado interior? Cada um de nós deve mergulhar profundamente e limpar a luxúria, a má vontade e a ignorância; devemos abandonar completamente o nacionalismo, o racismo e as causas que geram hostilidade. Devemos nos preocupar totalmente com o que é de primordial importância e não nos confundir com questões secundárias.

Interrogante: Você é muito desanimador. Busco inspiração para continuar; você não nos anima com palavras de coragem e esperança. É errado buscar inspiração?

Krishnamurti: Por que você quer ser inspirado? Não é porque em si mesmo você está vazio, não criativo, solitário? Você quer preencher essa solidão, esse vazio dolorido; você deve ter tentado diferentes maneiras de preenchê-la e espera escapar novamente dela ao vir aqui. Esse processo de encobrir a árida solidão é chamado de inspiração. Inspiração que se torna um mero estímulo e, como todo estímulo, logo traz seu aborrecimento e sua insensibilidade próprios. Então, passamos de uma inspiração, de um estímulo, para outro, cada um trazendo sua própria frustração e seu próprio cansaço; assim, a mente-coração perde sua maleabilidade, sua sensibilidade; a capacidade interna de tensão é perdida por esse processo constante de alongamento e relaxamento. A tensão é necessária para descobrir, mas uma tensão que exige relaxamento ou estímulo logo perde sua capacidade de se renovar, de ser flexível e de estar alerta. Essa flexibilidade alerta não pode ser induzida de fora; ocorre quando não depende de estímulo, de inspiração.

Não é toda estimulação semelhante em efeito? Quer você tome uma bebida ou seja estimulado por uma imagem ou uma ideia, se você vai a um concerto ou a uma cerimônia religiosa, ou se encoraja para desempenhar um papel, por mais nobre ou ignóbil — tudo isso não atrapalha a mente e o coração? Uma raiva justa, que é um absurdo, por mais estimulante e inspiradora que possa ser, gera insensibilidade; e não é a forma mais elevada de inteligência, sensibilidade, receptividade, necessária para experimentar a realidade? A estimulação gera dependência, e a dependência, digna ou indigna, causa medo. É relativamente sem importância como alguém é estimulado ou inspirado, seja através da igreja organizada ou política ou através da distração, pois o resultado será o mesmo — insensibilidade causada pelo medo e dependência.

Distrações tornam-se estímulos. Nossa sociedade incentiva principalmente a distração, distração em todas as formas. Nosso próprio pensamento-sentimento tornou-se um processo de afastamento do centro, da realidade. Portanto, é extremamente difícil se desvencilhar de todas as distrações, pois nos tornamos quase incapazes de estarmos conscientes do que é. Assim, o conflito nasce, que então distrai ainda mais nosso sentimento-pensamento, e é somente através da consciência constante que o pensamento-sentimento é capaz de se livrar da rede de distrações.

Além disso, quem pode lhe dar alegria, coragem e esperança? Se confiarmos no outro, por mais grandioso e nobre que seja, estaremos totalmente perdidos, pois a dependência gera possessividade na qual há luta e dor sem fim. Alegria e felicidade não são fins em si mesmas; são, como coragem e esperança, incidentes na busca de algo que é um fim em si mesmo. É esse fim que deve ser buscado com paciência e diligência, e somente através de sua descoberta que nosso turbilhão e nossa dor cessarão. A jornada em direção à sua descoberta reside em si mesma; qualquer outra jornada é uma distração que leva à ignorância e ilusão. A jornada dentro de si deve ser empreendida não para um resultado, não para resolver conflitos e tristezas; pois a busca em si é devoção, inspiração. Então a jornada em si é um processo revelador, uma experiência que é constantemente libertadora e criativa. Você não notou que a inspiração vem quando você não a procura? Vem quando todas as expectativas cessam, quando a mente-coração está quieta. O que é cobiçado é autocriado e, portanto, não é o real.

Interrogante: Você diz que vida e morte são a mesma coisa. Por favor, elabore esta declaração surpreendente.

Krishnamurti: Conhecemos nascimento e morte, existência e inexistência; estamos cientes desse conflito entre os opostos: o desejo de viver, de continuar, e o medo da morte, da não continuidade. Nossa vida é mantida no padrão de devir e de não devir. Podemos ter teorias, crenças e, consequentemente, experiência, mas elas ainda estão no campo da dualidade, do nascimento e da morte.

Pensamos em termos de tempo, de viver, de se tornar, ou de não se tornar, ou de morte, ou de estender esse devir para além da morte. O padrão de nosso pensamento-sentimento se move do conhecido para o conhecido, do passado para o presente e para o futuro; se há medo do futuro, ele se apega ao passado ou ao presente. Somos mantidos no tempo e como é que nós, que pensamos-sentimos em termos de tempo, podemos experimentar a realidade da atemporalidade, na qual a vida e a morte são uma?

Você não experimentou em momentos de grande intensidade a cessação do tempo? Essa cessação geralmente vem de maneira forçada a alguém; é acidental, mas, dependendo do nosso prazer, desejamos repetir a experiência novamente. Então, nos tornamos mais uma vez prisioneiros do tempo. Não seria possível para a mente-coração parar de formular, ficar totalmente quieta e não ser forçada à quietude, por um ato de vontade? Vontade e determinação ainda são autocontinuadas e, portanto, dentro do campo do tempo. A determinação de ser, a vontade de se tornar, implica autocrescimento, tempo, que gera o medo da morte.

Como o tronco de uma árvore morta no meio de um riacho junta os resíduos flutuantes, assim nós juntamos, nos apegamos à nossa acumulação; assim nós e o fluxo imortal da vida estão separados. Sentamos no tronco morto da nossa acumulação e refletimos sobre a vida e a morte; nós não abandonamos o processo de sempre-acumular para estarmos em águas livres. Para estar livre da acumulação deve haver um profundo autoconhecimento, não o conhecimento superficial das poucas camadas de nossa consciência. A descoberta e a experiência de todas as camadas da consciência são o início da verdadeira meditação. Na tranquilidade da mente-coração estão a sabedoria e a realidade.

A realidade deve ser experimentada, não especulada. Essa experiência só pode ocorrer quando a mente-coração deixa de acumular. A mente-coração não deixa de acumular através da negação ou através da determinação, mas apenas através da autoconsciência; através do autoconhecimento a causa da acumulação é descoberta. Só é vivenciada quando cessa o conflito dos opostos. Somente o pensamento correto, que vem do autoconhecimento e da meditação correta, pode trazer a unidade da vida e da morte. É apenas morrendo a cada dia que pode haver renovação eterna.

É difícil morrer se você estiver no processo de devir, se estiver acumulando, sentado no toco da acumulação morta. Você deve abandoná-la, mergulhar na água corrente; você deve todos os dias morrer para a acumulação diária, morrer tanto para o agradável quanto para o desagradável. Nos apegamos ao agradável e deixamos o desagradável ir; então fortalecemos a gratificação e conhecemos a morte. Sem buscar recompensa, abandonemos nossas coletas e só então poderá haver o imortal. Então a vida não se opõe à morte nem a morte é um escurecimento da vida.

 

17 de junho de 1945