1ª palestra em Ojai

Para compreendermos a confusão e a infelicidade que existe em nós próprios, e portanto no mundo, temos que primeiro encontrar clareza dentro de nós próprios e esta clareza surge através do pensar correto. Esta clareza não é para ser organizada porque ela não pode ser intercambiada com outro. O pensamento de grupo organizado torna-se perigoso por muito bom que possa parecer; o pensamento de grupo organizado pode ser usado, explorado; o pensamento de grupo deixa de ser o pensar correto, é apenas repetitivo. A clareza é essencial porque sem ela a mudança e a reforma simplesmente conduzem a mais confusão. A clareza não é o resultado da asserção verbal mas da auto-consciência intensa e do pensar correto. O pensar correto não é o resultado da mero cultivo do intelecto, nem é a conformidade a um padrão, ainda que digno e nobre. O pensar correto chega com o auto-conhecimento. Sem se compreender a si próprio, não se tem nenhuma base para o pensamento; sem auto-conhecimento o que você pensa não é verdadeiro.

Você e o mundo não são duas entidades diferentes com problemas separados; você e o mundo são um. O seu problema é o problema do mundo. Você pode ser o resultado de determinadas tendências, de influências do meio, mas não é fundamentalmente diferente de outro. Interiormente somos muitos parecidos; todos somos impelidos pela ganância, pela malevolência, pelo medo, pela ambição, etc. As nossas crenças, esperanças, aspirações têm uma base comum. Nós somos um; somos uma humanidade, embora as fronteiras artificiais da economia e da política e do preconceito nos dividam. Se matar outro, está a destruir-se a si próprio. Você é o centro do todo e sem se compreender a si próprio não pode compreender a Realidade.

Temos um conhecimento intelectual desta unidade, mas guardamos o conhecimento e o sentimento em compartimentos diferentes e por isso nunca experimentamos a extraordinária unidade do homem. Quando o conhecimento e o sentimento se encontram há experiência. Estas palestras serão totalmente inúteis se não experimentar à medida que ouve. Não diga, compreenderei mais tarde, mas experimentarei agora. Não mantenha o seu conhecimento e o seu sentimento separados, porque desta separação cresce a confusão e a infelicidade. Tem que experimentar esta unidade viva do homem. Você não está separado do Japonês, do Hindu, do Negro ou do Alemão. Para experimentar esta imensa unidade esteja aberto, torne-se consciente desta divisão entre o conhecimento e o sentimento; não seja um escravo da filosofia compartimental.

Sem auto-conhecimento a compreensão não é possível. O auto-conhecimento é extremamente árduo e difícil, porque você é uma entidade complexa. Tem que abordar a compreensão do ego com simplicidade, sem quaisquer pretensões, sem quaisquer teorias. Se eu quiser compreendê-lo não posso ter nenhuma formulação preconcebida a seu respeito, não pode haver nenhum preconceito; tenho que estar aberto, sem julgamento, sem comparação. Isto é muito difícil porque, para a maior parte de nós, o pensamento é o resultado da comparação, do julgamento. Através da aproximação nós pensamos que estamos compreendendo, mas nasce a compreensão da comparação, do julgamento? Ou é o resultado do pensamento não-comparativo? Se quiser compreender algo compara-o com outra coisa ou estuda-o por si mesmo?

O pensamento nascido da comparação não é pensar correto. Contudo estudando-nos a nós próprios estamos a comparar, a aproximar. É isto que impede a compreensão de nós próprios. Porque é que nos julgamos a nós próprios? Não é o nosso julgamento o resultado do nosso desejo de virmos a ser algo, de obter, de nos ajustarmos, de nos protegermos? Este mesmo desejo impede a compreensão.

Tal como eu disse, você é uma entidade complexa, e para a compreender tem que a examinar. Não a pode compreender se a comparar com o ontem ou com o amanhã. Você é um mecanismo intricado, mas a comparação, o julgamento, a identificação impedem a compreensão. Não receie tornar-se indolente, complacente, auto-satisfeito se não competir na comparação. Uma vez tenha percebido a inutilidade da comparação há uma grande liberdade. Então já não está a esforçar-se para vir a ser mas há uma liberdade para compreender. Seja consciente deste processo comparativo do seu pensamento – experimente tudo isto a medida que estou a explicar – e sinta a sua inutilidade, a sua fundamental irreflexão; experimentará então uma grande liberdade, como se tivesse deixado uma carga fatigante. Nesta ausência de aproximação e portanto de identificação, será capaz de descobrir e compreender as suas próprias realidades. Se não comparar, julgar, então será confrontado consigo mesmo e isto conferirá clareza e força para descobrir grandes profundidades. Isto é essencial para a compreensão da Realidade. Quando não há auto-aproximação então o pensamento é libertado da dualidade; o problema e o conflito com os opostos caem. Nesta liberdade há uma compreensão revolucionária, criativa.

Não há um de nós que não seja confrontado com o problema de matar e não matar, da violência e da não-violência. Alguns de vocês podem achar que como os vossos filhos, irmãos ou maridos, não estão envolvidos neste massacre chamado guerra, não estão diretamente implicados neste problema, mas se olharem um pouco mais de perto verão como estão profundamente envolvidos. Não podem fugir. Você tem, como um indivíduo, uma atitude precisa relativamente a matar e não matar. Se não têm estado consciente dela está agora a ser confrontado com ela; têm que enfrentar o problema, o problema dualista do capitalismo e do comunismo, do amor e do ódio, de matar e de não matar, etc. Como é que há-se encontrar a verdade do assunto? Existe alguma libertação do conflito no interminável corredor da dualidade? Muitos acreditam que na própria batalha dos opostos há criatividade, que este conflito é a vida, e que fugir-lhe é estar na ilusão. É assim? Não contém o oposto um elemento do seu próprio oposto e produz assim conflito e dor infindáveis? É o conflito necessário para a criação? São os momentos de criatividade o resultado da discórdia e da dor? O estado do ser criativo não nasce quando toda a dor e toda a luta cessaram totalmente? Pode experimentar isto por si próprio. Esta ausência de opostos não é uma ilusão; só nela está a resposta a toda a nossa confusão e problemas contraditórios.

Você é confrontado com o problema de matar o seu irmão em nome da religião, da paz, do país, etc. Como encontrará a resposta em que não estejam inerentes mais problemas contraditórios, mais problemas adversos? Para encontrar uma resposta verdadeira, duradoura, não tem que sair do padrão dualista do pensamento? Mata porque os seus bens, a sua segurança, o seu prestígio são ameaçados; tal como é com o indivíduo assim é com o grupo, com a nação. Para estar livre da violência e da não-violência tem que haver ausência de aquisitividade, malevolência, luxúria, etc. Mas a maior parte de nós não investiga o problema profundamente e está satisfeita com a reforma, com a alteração dentro do padrão da dualidade. Aceitamos como inevitável este conflito da dualidade e dentro desse padrão tentamos provocar a modificação, a mudança; dentro dele manobramos para uma posição melhor, para um ponto mais vantajoso para nós próprios. A mudança ou a reforma apenas dentro do padrão da dualidade somente produz mais confusão e dor e é por isso regressão.

Você tem que ir para além do padrão da dualidade para resolver permanentemente o problema dos opostos. Dentro do padrão não há verdade, por muito que possamos estar presos nele; se procurarmos nela a verdade seremos conduzidos a muitas ilusões. Temos que ir para além do padrão dualista do eu e do não-eu, do possuidor e do possuído. Acima e para além do interminável corredor da dualidade reside a Verdade. Acima e para além do contraditório e doloroso problema dos opostos reside a compreensão criativa. Isto é para ser experimentado, não para ser especulado; não para ser formulado mas para ser compreendido através da consciência profunda dos obstáculos dualistas.

Interrogante: Tenho a certeza que a maior parte de nós viu imagens autênticas em filmes e em revistas dos horrores e das barbaridades dos campos de concentração. O que deveria ser feito, na sua opinião, com aqueles que perpetraram estas atrocidades monstruosas? Não deveriam ser castigados?

Krishnamurti: Quem os há-de castigar? Não é o juiz muitas vezes tão culpado como o acusado? Cada um de nós edificou esta civilização, cada um contribuiu para a sua miséria (da civilização); cada um é responsável pelas suas ações (da civilização). Nós somos o resultado das ações e reações uns dos outros; esta civilização é um resultado coletivo. Nenhum país ou povo está separado de outro; estamos todos inter-relacionados, somos um. Quer o reconheçamos ou não, quando acontece um infortúnio a um povo, nós participamos dele tal como da sua boa sorte. Não se pode separar para condenar ou louvar.

O poder de oprimir é mau e cada grupo que seja grande e bem organizado torna-se uma potencial fonte do mal. Gritando sonoramente as crueldades de outro país você pensa que pode desconsiderar as do seu próprio país. Não é só o derrotado, mas cada país é responsável pelos horrores da guerra. A guerra é uma das maiores catástrofes; o mal maior é matar outro. Uma vez admita um mal assim no seu coração, deixa então à solta incontáveis desastres menores. Você não condena a guerra em si mas aquele que é cruel na guerra.

Você é responsável pela guerra; você provocou-a pela sua ação quotidiana de ganância, malevolência, ira. Cada um de nós edificou esta civilização competitiva, impiedosa, em que o homem está contra o homem. Você quer extirpar as causas da guerra, da barbaridade nos outros, enquanto você próprio se entrega a elas. Isto conduz à hipocrisia e a mais guerras. Você tem que extirpar as causas da guerra, da violência, em si próprio, o que exige paciência e brandura, não a condenação sangrenta de outros.

A humanidade não precisa de mais sofrimento para a fazer compreender,  mas o que é necessário é que você seja consciente das suas próprias ações, que desperte para a sua própria ignorância e sofrimento e assim provoque em si compaixão e tolerância. Não deveria estar preocupado com castigos e recompensas, mas com a erradicação em si próprio daquelas causas que se manifestam em violência e em ódio, em antagonismo e malevolência. Assassinando o assassino você torna-se como ele; torna-se no criminoso. Um mal não é emendado através de meios errados; só através dos meios corretos se pode alcançar um fim correto. Se quiser paz tem que empregar meios pacíficos, e o massacre, a guerra, só podem conduzir a mais massacre, a mais sofrimento. Não pode haver amor através do derramamento de sangue; um exército não é um instrumento de paz. Só a boa vontade e a compaixão podem trazer paz ao mundo, não o poder e a astúcia nem a mera legislação.

Você é responsável pela miséria e pelo desastre que existem, você que na sua vida quotidiana é cruel, opressivo, ganancioso, ambicioso. O sofrimento continuará até que você erradique em si mesmo aquelas causas que geram ira, ganância e crueldade Tenha paz e compaixão no seu coração e encontrará a resposta certa às suas perguntas.

Interrogante: Nesta altura e no nosso presente modo de vida, os nossos sentimentos tornaram-se embotados e duros. Pode sugerir um modo de vida que nos torne mais sensíveis? Podemos tornar-nos mais sensíveis apesar do barulho, da precipitação, de todas as profissões competitivas e de todas as atividades? Podemos tornar-nos mais sensíveis sem dedicação a uma fonte de vida superior?

Krishnamurti: Não é necessário, para o pensar claro e correto, ser-se sensível? Para sentir profundamente não tem o coração que estar aberto? Não tem o corpo que estar saudável para avidamente responder? Nós embotamos as nossas mentes, os nossos sentimentos, os nossos corpos, com crenças e malevolência, com estimulantes fortes e endurecedores. É essencial ser sensível, responder intensa e corretamente, mas nós tornamo-nos embotados, duros, através dos nossos apetites. Não existe uma entidade separada tal como a mente, à parte do organismo como um todo, e quando o organismo como um todo é maltratado, debilitado, distraído, então a insensibilidade instala-se. O nosso meio, o nosso modo de vida atual embota-nos, debilita-nos. Como pode ser sensível quando todos os dias se satisfaz lendo ou vendo imagens da carnificina de milhares – a notícia deste massacre sendo dada como se se tratasse de um jogo de êxito. A primeira vez que lê as notícias pode sentir uma dor de alma, mas a constante repetição da crueldade brutal embrutece a sua mente-coração, imunizando-o ao total barbarismo da sociedade moderna. As rádios, as revistas, os cinemas estão sempre a debilitar as suas maleabilidades sensíveis; você é forçado, ameaçado, arregimentado e como pode, no meio de tanto barulho, precipitação e falsas atividades permanecer sensível para o cultivo do pensamento correto?

Se não quiser ter os seus sentimentos embotados e endurecidos, tem que pagar o preço; tem que abandonar a precipitação, a distração, as profissões erradas e as ocupações. Tem que se tornar consciente dos seus apetites, do seu meio limitador, e compreendendo-os corretamente, começa a redespertar a sua sensibilidade. Através da consciência constante dos seus pensamentos-sentimentos, as causas do auto-confinamento e da tacanhez caem. Se quiser ser altamente sensível e claro, tem que trabalhar deliberadamente para isso; não pode ser mundano e contudo ser puro na busca da Realidade. A nossa dificuldade é que queremos ambos, os apetites ardentes e a serenidade da Realidade. Tem que abandonar um ou a outro; não pode ter ambos. Não pode satisfazer-se e contudo estar alerta; para estar intensamente consciente, tem que haver ausência daquelas influências que são cristalizadoras, embotantes.

Desenvolvemos o intelecto em excesso à custa dos nossos sentimentos mais profundos e mais claros, e uma civilização que está baseada no cultivo do intelecto tem que originar crueldade e a veneração do sucesso. A ênfase no intelecto ou na emoção conduz ao desequilíbrio, e o intelecto está sempre à procura de se salvaguardar. A mera determinação só fortalece o intelecto e embota-o e endurece-o; é sempre auto-agressivo no vir a ser ou não vir a ser. Os processos do intelecto têm que ser compreendidos através da consciência constante e a sua reeducação tem que transcender o seu próprio raciocínio.

Interrogante: Eu acho que há conflito entre a minha ocupação e a minha relação. Vão em direções diferentes. Como posso fazê-las encontrar-se?

Krishnamurti: A maior parte das nossas ocupações são ditadas pela tradição, ou pela ganância, ou pela ambição. Na nossa ocupação somos cruéis, competitivos, falsos, astutos e altamente auto-protetores. Se enfraquecermos a qualquer altura podemos afundar-nos, portanto temos que continuar com a alta eficiência da máquina gananciosa dos negócios. É uma luta constante para manter um controle, para nos tornarmos mais perspicazes e mais espertos. A ambição jamais encontra uma satisfação duradoura; está sempre à procura de campos mais amplos para a auto-confiança.

Mas na relação está envolvido um processo bastante diferente. Nela tem que haver afeto, consideração, ajustamento, abnegação, cedência; não conquistar mas viver com felicidade. Nela tem que haver ternura modesta, ausência de dominação, de possessividade; mas o vazio e o medo geram ciúme e dor na relação. A relação é um processo de auto-descoberta, no qual há uma compreensão mais ampla e mais profunda; a relação é um ajustamento constante na auto-descoberta. Requer paciência, flexibilidade infinita e um coração simples.

Mas como podem os dois encontrar-se, a auto-confiança e o amor, a ocupação e a relação? Uma é cruel, competitiva, ambiciosa, a outra é abnegante, considerada, terna; não podem juntar-se. Com uma mão as pessoas lidam com sangue e dinheiro, e com a outra tentar ser bondosas, afetuosas, sensatas. Como um alívio para a sua irreflexão e ocupações aborrecidas procuram conforto e tranquilidade na relação. Mas a relação não produz conforto porque é um processo característico de auto-descoberta e de compreensão. O homem de ocupação tenta procurar através da sua vida de relação, o conforto e o prazer como uma compensação pelo seu negócio enfadonho. A sua ocupação diária de ambição. ganância e crueldade conduz passo a passo à guerra e às barbaridades da civilização moderna.

A ocupação correta não é ditada pela tradição, pela ganância ou pela ambição. Se cada um estiver seriamente interessado em estabelecer a relação correta, não só com um mas com todos, então encontrará a ocupação correta. A ocupação correta chega com a regeneração, com a mudança do coração, não com a mera determinação intelectual de a encontrar.

A integração só é possível se houver clareza de compreensão a todos os diferentes níveis da nossa consciência. Não pode haver integração do amor e da ambição, da ilusão e da clareza, da compaixão e da guerra. Enquanto a ocupação e a relação forem mantidas separadas, haverá conflito e infelicidade intermináveis. Toda a reforma dentro do padrão da dualidade é regressão; só para além dela existe a paz criativa.

27/05/1945