https://jkrishnamurti.org/content/ommen-3rd-public-talk-4th-august-1937

Terceira Conversa em Ommen, Holanda

Todo conflito é uma relação, um ajuste entre duas resistências, dois indivíduos. Resistência é um condicionamento, limitando ou condicionando a energia que pode ser chamada de vida, pensamento, emoção. Esse condicionamento, essa resistência, não teve início; tem sempre existido, e podemos ver que isso pode ser continuado. Existem muitas e complexas causas para esse condicionamento.

Este condicionamento é ignorância, que pode ser levada a um fim. A ignorância é o desconhecimento do processo de condicionamento, que consiste de muitos desejos, medos, memórias aquisitivas, e assim por diante.

Crença é parte da ignorância. Qualquer ação provinda da crença apenas fortalece ainda mais a ignorância.

A ânsia por compreensão, por felicidade, a tentativa de se livrar dessa qualidade particular e adquirir aquela virtude particular – todo esse esforço nasce da ignorância, que é resultado desse constante querer, e assim, a luta e o conflito continuam no relacionamento. Enquanto houver desejo, toda experiência condiciona o pensamento e emoção ainda mais, continuando, assim, o conflito.

Onde há desejo, a experiência não pode ser completa, fortalecendo a resistência. Uma crença, o resultado do desejo, é uma força condicionante; a experiência baseada em qualquer crença é limitante, por mais ampla e grande que esta possa ser. Qualquer esforço que a mente faça para quebrar seu próprio círculo vicioso de ignorância, reforçará ainda mais com a continuação da ignorância. Se não se compreende o total processo de ignorância e meramente se faz um esforço para se livrar dele, o pensamento está ainda agindo dentro do círculo da ignorância.

Então o que alguém deve fazer, discernindo que qualquer ação, qualquer esforço que se faça só fortalece a ignorância? O próprio desejo de romper o círculo da ignorância ainda faz parte da ignorância. Então o que tem alguém a fazer?

Agora, isso é uma questão vital para você? Se for, então verá que não há resposta direta e positiva, pois respostas positivas só podem trazer mais esforço, o que fortalece o processo de ignorância. Portanto, há apenas uma abordagem negativa, que é estar integralmente consciente do processo de medo ou ignorância. Essa consciência não é um esforço para superar, destruir ou encontrar um substituto, mas é uma quietude de nem aceitação nem negação, uma quietude integral sem nenhuma escolha. Esse despertamento rompe o círculo da ignorância de dentro, por assim dizer, sem o fortalecer.

Interrogante: Como podemos saber, com certeza, se a mente é incondicionada, já que lá há uma possibilidade de ilusão?

Krishnamurti: Não nos preocupemos com a certeza de uma mente incondicionada, mas ao contrário fique consciente das limitações do pensamento-emoção.

Interrogante: Há uma diferença real entre não ter consciência do nosso condicionamento e imaginar que estamos incondicionados.

Krishnamurti: Certamente, isso é óbvio. Investigar o estado incondicionado quando a mente de alguém está limitada é absolutamente fútil. Temos de nos preocupar com as causas que mantêm o pensamento-emoção na escravidão.

Interrogante: Sabemos que há realidade e irrealidade, e do irreal devemos nos mover para o real.

Krishnamurti: Certamente que isto é outra forma de condicionamento. Como você sabe que existe o real?

Interrogante: Porque isto está lá.

Krishnamurti: Você parou de pensar, se assim posso dizer, quando afirma que está lá.

Interrogante: Eu acho que percebemos continuamente que estamos condicionados, porque estamos sempre sofrendo e em conflito.

Krishnamurti: Então conflito, sofrimento, a tensão do relacionamento, indicam um condicionamento. Podem haver muitas causas para o condicionamento, mas você está ciente de, pelo menos, uma delas?

Interrogante: O medo e o desejo são as causas da limitação.

Krishnamurti: Quando faz essa declaração você está consciente de que, em sua vida, medo e desejo causam conflito, miséria? Quando você diz que o medo está condicionando sua vida, está ciente desse medo? Ou é porque leu isso ou me ouviu falar sobre isso que você repete: “O medo é condicionamento?” O medo não pode existir por si só, mas apenas em relação a algo.

Agora, quando você diz que está consciente do medo, isso é causado por algo fora de si mesmo, ou isso está dentro de você? Tem-se medo de um acidente, ou do vizinho, ou de alguma relação imediata, ou de alguma reação psicológica, e assim por diante. Em alguns casos, são as coisas exteriores da vida que nos fazem temer, e se podemos nos libertar delas, pensamos que estaremos sem medo.

Você pode se livrar de seu vizinho? Você pode ser capaz de escapar de um determinado vizinho, mas onde quer que esteja, você está sempre em relação com alguém. Você pode ser capaz de criar uma ilusão em que você pode retirar, ou construir uma parede entre o seu vizinho e você mesmo e, assim, proteger-se. Você pode se separar através da divisão social, através de virtudes, crenças, aquisições, e assim se libertar do seu vizinho. Mas isso não é liberdade.

Depois há o medo de doenças contagiosas, acidentes, e assim por diante, contra os quais se tomam precauções naturais, sem exagerar indevidamente.

A vontade de sobreviver, a vontade de ser satisfeito, a vontade de continuar – esta é a própria raiz da causa do medo.

Você sabe que isso é assim? Se você sabe, então o que quer dizer com ”saber ”? Você conhece isso meramente intelectualmente, como um quadro de palavras, ou você está ciente dela integralmente, emocionalmente?

Você conhece o medo como uma reação quando sua resistência é enfraquecida, quando as paredes de sua autoproteção foram quebradas; então você está consciente do medo e sua reação imediata é remendar novamente essas paredes, para fortalecê-las de modo a estar seguro.

Interrogante: Você vai nos dizer o que é o medo?

Krishnamurti: Eu vou te dizer o que é medo?! Você não sabe o que é?

Se em sua casa não há nada de valor ao qual você está ligado, então você não tem medo de seu vizinho – suas janelas e portas estão abertas. Mas o medo está em seu coração quando você está preso; então você fecha suas janelas, tranca suas portas. Você se isola.

A mente reuniu certos valores, tesouros, e pretende guardá-los. Se o valor dessas possessões é questionado, há um despertar do medo. Através do medo os guardamos mais de perto, ou vendemos o velho e adquirimos o novo que protegemos mais astutamente. Esse isolamento chamamos de vários nomes.

Estou perguntando se você tem algo precioso em sua mente, em seu coração, que você está guardando. Se você tem, então você é obrigado a criar paredes contra o medo, e essa resistência é chamada por muitos nomes – amor, vontade, virtude, caráter. Você tem algo precioso? Você tem algo que pode ser tirado de você, sua posição, suas ambições, desejos, esperanças?

O que é que você tem, na verdade? Você pode ter posses mundanas que você tenta guardar em um cofre; para protegê-los você tem imperialismo, nacionalismo, distinções de classe. Cada indivíduo, cada nação está fazendo isso, criando ódio e guerra. O medo da perda pode ser removido? Cada sinal indica que esse medo não pode ser retirado por uma maior proteção, maior nacionalismo, maior imperialismo. Onde há apego, há medo.

Interrogante: É deixando os objetos irem, ou estabelecendo uma relação diferente entre nós mesmos e eles, que o medo é dissipado?

Krishnamurti: Certamente ainda não chegamos à questão de como nos livrarmos do medo. Estamos tentando descobrir quais são as coisas preciosas que cada um de nós agarra tão astuciosamente, e só então podemos descobrir os meios de se livrar do medo.

Interrogante: É muito difícil saber. Eu não sei o que eu estou protegendo.

Krishnamurti: Sim, essa é uma das dificuldades, mas a menos que você saiba disso, o medo deve continuar, embora você possa querer se livrar dele. Você está consciente com todo o seu ser de que está se protegendo de uma forma ou de outra com crença, aquisições, virtude, ambição?

Quando você começar a considerar profundamente, perceberá como a crença ou qualquer outra forma de exclusão está segregando você, seja como um grupo ou como um indivíduo, e essa crença age como uma resistência contra o movimento da vida.

Alguns de vocês podem dizer que a mente não está protegendo uma crença, mas que isso é parte da própria mente, que sem alguma forma de crença, a mente, o pensamento, não pode existir. Ou você pode dizer que a crença não é realmente uma crença, mas intuição, a ser protegida, a ser encorajada.

Interrogante: Comigo, parece que a crença está lá e eu não sei o que fazer sobre ela. Não sei se a estou protegendo ou não.

Krishnamurti: É só isso. Isso é parte de você, você diz. Por que está lá? Por que é parte de você? Vocês foram condicionados pela tradição, educação; você adquiriu a consciência, consciente ou inconscientemente, como uma proteção contra várias formas de medo, ou através da propaganda aceitou a crença como uma cura para tudo. Você pode não ter crença em uma teoria particular, mas pode ter em uma pessoa. Existem várias formas de crença. O desejo de conforto, de segurança, força a pessoa a algum tipo de crença, a qual se protege, pois sem ela nos sentimos completamente perdidos. Portanto, há a tentativa constante de justificar a crença ou encontrar um substituto no lugar da antiga.

Onde há apego, há medo, mas a liberdade do medo não é uma recompensa do não-apego. O sofrimento faz com que decidamos ser completamente separados, mas esse distanciamento é realmente uma forma de proteção contra o sofrimento. Agora, como a maioria de nós tem algo – amor, posses, ideais, crenças, concepções – para proteger, que compensarão essa resistência que é o “eu”, o “mim”, é inútil perguntar como se livrar do “eu”, do “mim”, com suas muitas camadas de desejos, medos, sem compreender plenamente o processo de resistência. O próprio desejo de se libertar deles é outra forma segura de autoproteção.

Se você está ciente deste processo de proteção, de construção de paredes para defender o que você é e tem, se você está consciente disto, então nunca vai perguntar qual é o caminho, o método, para se livrar do medo, da ânsia. Assim, você encontrará na quietude do despertar, o rompimento espontâneo das várias causas que condicionam o pensamento-emoção.

Você não estará despertado meramente ouvindo uma ou duas conversas. É como um fogo que deve ser construído, e você deve construí-lo. Você deve começar, por pouco que seja, a ser consciente, a estar ciente, e isso pode ser quando você fala, quando ri, quando entra em contato com as pessoas ou quando você está firme. Essa consciência se torna uma chama, e esta chama consome todo o medo que causa isolamento. A mente deve revelar-se espontaneamente a si mesma. E isso não é dado apenas a alguns, nem é uma impossibilidade.

4 de agosto de 1937.