https://jkrishnamurti.org/content/ommen-camp-holland-4th-public-talk-29th-july-1936

Quarta Palestra em Ommen, Holanda

A ação que nasce do processo de autopreservação da consciência com suas muitas camadas de ignorância, tendências, desejos, medos, não pode libertar a mente de sua própria limitação auto criada, mas simplesmente intensifica o sofrimento e a frustração. Enquanto esse processo continua, enquanto não existe compreensão deste processo do “Eu”, não apenas na sua forma e expressão mais óbvia, mas também em suas prodigiosas sutilezas, deve haver sofrimento e confusão. Contudo, este próprio sofrimento, do qual estamos sempre tentando fugir, pode nos levar à compreensão do processo do “Eu”, ao profundo conhecimento de si mesmo, mas todas as fugas pela ilusão devem cessar. Quanto maior o sofrimento, mais forte é a indicação de limitação. Mas se você não sofre, isto não significa, necessariamente, que você está livre de limitações. Ao contrário, pode ser que sua mente esteja estagnada dentro de paredes auto protetoras de modo que nenhuma provocação da vida, nenhuma experiência, pode agitá-la para a atividade despertando-a, assim, para o sofrimento. Tal mente é incapaz de discernir a realidade. O sofrimento pode provocar a compreensão de si mesmo se você não tenta evitá-lo ou fugir dele.

Como podemos levar a um fim o processo do “Eu”, de modo que nossa ação não crie mais limitações e sofrimento? Para levar este processo do “Eu” a um fim, deve haver consciência do sofrimento, não a simples concepção de sofrimento. A menos que haja a provocação vital da vida, a maioria de nós se conforta no sono e permite, inconscientemente, que o processo do “Eu” continue. A necessidade essencial para o discernimento do processo do “Eu” é estar totalmente consciente do sofrimento. Daí deve haver certeza absoluta de que não existem saídas para o sofrimento. Toda busca por conforto e remediações cessa totalmente então. Todos os paliativos ritualistas deixam de ter qualquer significação. Começamos a perceber, então, que nenhum agente externo pode nos ajudar a levar este processo de ignorância autossustentável a um fim. Quando a mente está neste processo de abertura, quando está totalmente capaz de confrontar a si mesma, então ela se torna seu próprio espelho, então existe a consciência não dividida; ela não julga suas ações por padrões, nem é controlada pela autoridade de um ideal. Ela é, então, seu próprio criador e destruidor. O ambiente com suas influências condicionantes, e a hereditariedade com suas características limitantes, perdem sua força com a compreensão do processo do “Eu”. Quando a mente discerne este processo integralmente, ela se vê como o processo, utilizando toda a ação, toda relação para se sustentar. Na renovação de si mesma de momento a momento, por meio de suas próprias atividades volitivas, o processo do “Eu” está se perpetuando e, simplesmente, engendrando sofrimento.

A maioria de nós tenta fugir do sofrimento por meio de ilusões, definições lógicas e conclusões, e gradualmente, a mente se torna embotada, incapaz de perceber a si mesma. Apenas quando a mente percebe a si mesma como ela é – como a vontade de si mesma, com suas muitas camadas de ignorância, medo, desejo, ilusão – quando ela discerne como, por meio de suas próprias atividades volitivas, o processo do “Eu” está se perpetuando, só então surge a possibilidade deste processo chegar ao seu próprio fim. Quando a mente discerne que ela mesma está criando sofrimento, perpetuando o processo do “Eu”, e que ela é o próprio processo do “Eu”, então há uma mudança de vontade, mudança da consciência. O fim do processo do “Eu” é o começo da sabedoria, alegria.

Nós, diligentemente, desenvolvemos a ideia de uma vontade superior e inferior na consciência. Esta divisão, simplesmente, gera conflito, que nós tentamos acabar com disciplina. Onde existe desejo ou medo, sua ação é como o combustível para uma chama – simplesmente sustenta o processo do “Eu”. A compreensão deste processo exige grande atenção e não o esforço da escolha ou da disciplina.

Interrogante: O medo é uma parte fundamental da vida, de modo que sua compreensão simplesmente nos habilita a aceitá-lo? Ou ele é uma coisa que pode ser transmutada em outra coisa? Ou, ainda, é uma coisa que pode ser eliminada totalmente? Algumas vezes a pessoa parece capaz de determinar a causa de um medo particular e, contudo, sob outras formas o medo continua. Por que deveria ser assim?

Krishnamurti: O medo vai existir em diferentes formas, grosseiramente ou sutilmente, enquanto houver o processo ativo de ignorância engendrado pelas atividades do desejo. Pode-se eliminar totalmente o medo, ele não é parte fundamental da vida. Se existe medo, não pode haver inteligência, e para despertar a inteligência deve-se compreender integralmente o processo do “Eu” em ação. O medo não pode ser transmutado em amor; ele deve permanecer sempre como medo mesmo quando tentamos racionalizá-lo, mesmo que tentemos encobri-lo chamando de amor. Nem pode o medo ser compreendido como parte fundamental da vida a fim de nos habilitar a suportá-lo. Você não descobrirá a causa profunda do medo simplesmente analisando cada medo que surgir. Só existe uma causa fundamental do medo, embora ele possa se expressar de diferentes formas. Com a mera dissecação das várias formas de medo, o pensamento não pode se libertar da causa original do medo. Quando a mente não aceita nem rejeita o medo, não foge dele nem tenta transmutá-lo, só então pode haver a possibilidade de seu término. Quando a mente não está presa no conflito dos opostos, então ela é capaz de discernir sem escolha a totalidade do processo do “Eu”. Enquanto este processo continua deve haver medo, e a tentativa de escapar dele apenas aumenta e fortalece o processo. Se você quiser se libertar do medo, deve compreender totalmente a ação nascida do desejo.

Interrogante: Estou começando a pensar que as posses materiais tendem a fomentar a vaidade e, além disso, são um fardo; e agora, eu decidi limitar minhas próprias exigências materiais. No entanto, considero difícil chegar a uma decisão em relação a deixar herança para meus filhos. Devo eu, como pai deles, tomar uma decisão sobre este assunto? Sei que eu não transmitiria, conscientemente, uma doença contagiosa se eu puder evitar. Eu estaria correto em assumir uma visão semelhante em relação à herança e, assim, privar meus filhos disto?

Krishnamurti: O próprio interrogante diz que não transmitiria, voluntariamente, uma doença contagiosa. Ora, a herança é tal doença? Possuir ou adquirir dinheiro sem trabalhar para isto produz uma forma de doença mental. Se você concorda com esta afirmação e age segundo ela, então deve querer encarar as consequências de sua ação. Você ajudará a desordenar o sistema social atual com sua exploração, seu poder cruel e estúpido por meio da acumulação de dinheiro e os privilégios do interesse investido. Se possuir ou adquirir dinheiro sem trabalhar para isto é uma doença ou não, você deve descobrir por si mesmo.

Quando vocês, como indivíduos, começarem a se libertar da doença do medo, não perguntarão ao outro se devem deixar sua riqueza para seus filhos ou não. Sua ação terá, então, uma significação profunda e diferente. Então sua atitude em relação à família, classe, trabalho, riqueza, ou pobreza passará por uma profunda mudança. Se não há esta mudança significativa, que é provocada pela compreensão e não pela compulsão, então problemas artificiais só podem ser respondidos superficialmente, sem nenhuma consequência ou valor.

Interrogante: Você falou sobre o impulso vital, o estado vigilante constante que, se compreendi corretamente, seria possível apenas depois que a pessoa tivesse passado por total solidão. Você considera que é possível para alguém ter esse grande impulso e ser casado? Para mim parece que conquanto livres possam ser marido e mulher, haverá sempre ligações entre os dois que devem, inevitavelmente, impedir que sejam integralmente responsáveis por si mesmos. O estado vigilante não levará, portanto, ao total e completo desapego de cada um e de todos?

Krishnamurti: Você não pode existir exceto em relação com pessoas, com o ambiente, com a tradição, com o substrato do passado. Ser é existir em relação. Você pode, ou fazer a relação vital, forte, expressiva, harmoniosa, ou pode transformá-la em conflito e dor. É o sofrimento que força você a se recolher da relação, e como você não pode existir sem estar em relação com alguma coisa, você começa a cultivar o desapego, uma reação auto protetora contra o sofrimento. Se você ama, está em relação correta com o ambiente; mas se o amor se transforma em ódio, em ciúme e cria conflito, então a relação se torna opressiva e dolorosa, e você inicia o processo artificial de desapegar-se daquilo que lhe causa dor. Você pode, intelectualmente, criar uma barreira auto protetora de desapego e viver nessa prisão auto criada, que lentamente destrói a plenitude da mente-coração. Viver é estar em relação. Não pode haver relação harmoniosa e vital se existem desejos de autoproteção e reações que provocam sofrimento e conflito.

Interrogante: Se eu o compreendi corretamente, a atenção só e em si mesma é suficiente para dissolver o conflito e sua fonte. Estou perfeitamente atento, e tenho estado durante longo tempo, de que sou “arrogante”. O que me impede de me livrar da arrogância?

Krishnamurti: O interrogante não compreendeu o que eu quis dizer com atenção. Se você tem um hábito, o hábito da arrogância, por exemplo, não é bom meramente superar este hábito com outro, seu oposto. É futilidade dominar um hábito com outro hábito. O que livra a mente do hábito é inteligência. Atenção é o processo de despertar inteligência, não criar novos hábitos para dominar os antigos. Assim, você deve se tornar consciente de seus hábitos de pensamento, mas não tentar desenvolver qualidades ou hábitos opostos. Se você está totalmente atento, se está nesse estado de observação sem escolha, então você perceberá todo o processo de criar um hábito e, também, o processo oposto de dominá-lo. Este discernimento desperta a inteligência que põe de lado todos os hábitos do pensamento. Nós ficamos ansiosos para nos livrar daqueles hábitos que nos causam dor, ou que descobrimos serem inúteis, com a criação de outros hábitos de pensamento e afirmações. Este processo de substituição é completamente não inteligente. Se você observar, descobrirá que a mente não é mais do que uma massa de hábitos de pensamento e memórias. Mas meramente dominando estes hábitos com outros, a mente continua, ainda, na prisão, confusa e sofrendo. Só quando compreendemos profundamente o processo das reações auto protetoras, que se tornam hábitos de pensamento, limitando toda ação, é que existe a possibilidade de despertar a inteligência, que pode dissolver o conflito dos opostos.

Interrogante: Você, por favor, explicaria a diferença entre mudança na vontade e mudança de vontade?

Krishnamurti: Mudança na vontade é meramente resultado da dualidade na consciência, e a mudança de vontade acontece na plenitude da totalidade do ser. Uma é mudança no grau e a outra na espécie. O conflito do desejo, ou a mudança no objeto do desejo é, meramente, uma mudança na vontade, mas com a cessação de todo desejo há uma mudança da vontade.

A mudança na vontade é submissão à autoridade do ideal e da conduta. A mudança de vontade é discernimento, inteligência, em que não existe conflito de antítese. Na última há profundo e espontâneo ajustamento; na primeira há compulsão através da ignorância, desejo e medo.

Interrogante: A renovação do indivíduo é suficiente para a solução dos problemas do mundo? A inteligência abrange a ação para a libertação de todos?

Krishnamurti: Quais são os problemas do mundo? Pão, desemprego, guerras, conflitos, grupos políticos opostos, o prazer dos poucos ricos do mundo, divisões de classe, fome, morte, imortalidade – estes são os problemas do mundo. Estes também não são problemas individuais? Os problemas do mundo podem ser compreendidos apenas através desse processo focalizado em cada pessoa, o processo do “Eu”. Por que criar esta divisão artificial do indivíduo e o mundo? Nós somos o mundo, nós somos a massa. Se você, como um indivíduo, compreende o processo de divisão como nacionalismo, conflito de classe e antagonismo racial, se você não é mais holandês, francês, alemão, ou inglês, com todos os absurdos da separatividade, então, certamente, você se torna um centro de inteligência. Você está, então, combatendo a estupidez onde você estiver, embora isto possa levá-lo à fome e ao trabalho árduo. Se nós compreendemos isto integralmente pela ação, podemos ser um oásis no meio de desertos. O processo de ódio e divisão é tão antigo quanto os séculos. Você não pode afastar-se dele, mas no meio dele você pode ser claro, simples, verdadeiro, sem as incrustações de antigas tolices. Então você verá que imensa compreensão e alegria você pode trazer à vida. Mas, infelizmente, em momento de grandes revoltas e guerras, você fica paralisado. Seus próprios ódios e medos potenciais surgem e arrastam você. Você não é o oásis tranquilo onde a humanidade sofrida pode chegar.

Assim, é da máxima importância compreender o processo que engendra estas limitações, ódios, sofrimentos. A ação originada da compreensão integral será uma força libertadora, embora os efeitos de tal ação possam não se mostrar na sua vida ou dentro de um período determinado. O tempo não tem importância. Uma revolução sangrenta não traz paz duradoura ou felicidade para todos. Em vez de, simplesmente, desejar paz imediata neste mundo de confusão e agonia, considere como você, o indivíduo, pode ser um centro, não de paz, mas de inteligência. A inteligência é essencial para a ordem, harmonia e o bem estar do homem.

Existem muitas organizações pela paz, mas existem muito poucos indivíduos que são livres, que são inteligentes no verdadeiro sentido da palavra. Vocês podem começar como indivíduos a compreender a realidade; então a chama da compreensão se espalhará sobre a face da terra.

29 de julho de 1936